Eu dormi como uma pedra naquela noite, estava exausto psicologicamente. Lídia dormiu abraçada a mim, nem podia imaginar o que se passava por sua cabeça, mas intendia a sua dor, tinha quase a mesma idade quando meus pais se separaram, apesar de já ter sido anunciado a muito tempo, foi um período difícil pra mim e meu pai. Gisele dormiu um pouco afastada de nós dois, e eu acho que entendi o porquê. Ela é, sem duvida, quem passou pelos momentos mais difíceis entre nós três, porém, mesmo com a morte de seu marido, os últimos meses foram os que eu a vi mais feliz, talvez perder o último porto seguro que ela tinha, eu e Marie, tenha mexido mais com ela do que comigo ou Lídia, embora ela não deixasse transparecer isso.
Eu acordei cedo, e estranhamente disposto, tomei um banho e fiz minha higiene e fiquei esperando por alguma delas acordar. Não demorou muito pra Gisele acordar e, quase que simultaneamente, Lídia também se levantou.
-Bom dia.- disse as duas.
-Bom dia...- elas me responderam quase que simultaneamente.
-Não vai trabalhar, pai?- Lídia me perguntou
-Não. O paulo me deu uma folga até o fim da próxima semana, pra me acertar...
-Uhm, muito bom...
-Sim. Eu acho que vou cuidar de arrumar logo um apartamento pra alugar...
-Nós não vamos mesmo voltar pra casa?
-Não...
-E o que você vai fazer com ela?
-Não sei... não quero mais morar lá, tenho muitas lembranças... mas ao mesmo tempo, não quero vende-la, por causa dessas malditas lembranças...
-Então, deixa como está... assim, talvez possa tudo voltar a ser como antes...
-Isso é impossível, e você sabe disso, filha...
-Mas se voltar...
-Não vai.
-SE voltar.
-Ok... você quer vir comigo, Gisele?
-Onde?- Gisele respondeu voltamdo a si.
-Procurar o apartamento.
-Ah, sim. Claro...
-E eu??- Lídia perguntou um pouco exaltada.
-Calma. Você vai ligar pro seu avô e pedir pra ele fazer a sua transferência, pra sua antiga escola. Se ele perguntar algo, diga que eu já deixei tudo certo com as duas escolas.
-E depois?
-Sei lá... Vá se divertir, encontrar suas amigas, ou algum namoradinho...
-Não tem nenhum "namoradinho", pai.
-Não foi o que seu avô me disse.
-Bom... isso...
-Calma, filha, tudo bem. E você já é grande o suficiente pra saber o que é certo, então escolha bem...
-Nossa, você tá parecendo... deixa pra lá...
-Pode falar, filha...
-Tá parecendo a mamãe...- eu fiquei um pouco paralisado por alguns segundos, beijei sua testa e fui em direção a porta.
-Vou te esperar lá na recepção, Gisele. Não precisa ter pressa...- disse fechando a porta.
Desci até a recepção e lá fiquei por um bom tempo, Gisele estava mesmo sem pressa. Mas foi bom ela ter demorado, tinha mais tempo pra pensar, e estranhamente, meus pensamentos já não estavam tão focados em Marie, pelo menos agora que eu tinha algo pra fazer. Comprei um jornal e fui na sessão de classificados, procurando por um apartamento e o achei.
Quando Gisele desceu já passava das 10.
-Não teve pressa mesmo...- falei tentando brincar, embora o clima fosse um tanto pesado.
-Desculpa...- ela disse séria.
-Calma, tava só brincando.
-Eu sei mas... mesmo assim...
Fomos até o carro em silêncio, Gisele parecia um pouco tensa.
-Já tem alguma idéia de onde ir?- ela me perguntou.
-Na verdade sim. A pouco tempo, acabaram de construir um prédio próximo a escola de Lídia, muito bonito. Eu estava pensando em comprar um apartamento pra alugar, mas acabei deixando de lado. Encontrei um no mesmo prédio no jornal.
-Hum... então vamos pra lá...
-Sim...
Liguei o carro e partimos. Não demorou muito pra chegarmos lá, era um ótimo prédio, com bonitos e espaçosos apartamentos, e por um bom preço.
-Gostou do prédio?
-É bonito...
-Não parece que você tem muita certeza sobre isso.
-Ele é bonito, só estou um pouco desligada...
Eu liguei pro número no jornal pelo celular de Gisele, um senhor atendeu, muito educado. Eu contei que já estava interessado no prédio antes, e que queria conhecer o apartamento. Ele me disse que ficou até um pouco surpreso, já que não havia recebido muitas ligações para aquele apartamento. Marcamos pra mesma tarde, já que não havia empecilhos.
Como já era quase 11 horas, decidi ir ao shopping, por algum motivo me deu vontade de comer alguma besteira e ver um filme, perguntei a Gisele se iria e ela deu de ombros.
Chegamos no shopping e fomos pra praça de alimentação, comer qualquer besteira. Comi um hamburger e Gisele outro. Ela tinha o olhar perdido desde ontem a noite, mas eu tinha certo receio de perguntar, embora não soubesse o porquê. Depois de comermos, fomos ao cinema, por causa do horário, só tinha duas animações infantis, mas eu não liguei, talvez fosse até melhor, devido as circunstâncias. O filme foi agradável, até ri em alguns momentos, mas Gisele nem mesmo prestou atenção, se eu perguntasse, ela nem saberia o nome do filme. Mas eu não perguntei o que havia com ela, se fosse algo importante ela já teria dito, pensei.
Sai com um pouco de pressa, estava atrasado pra ver o apartamento. Não demorei mais do que 10 minutos pra chegar ao prédio. Liguei para o senhor, me desculpando pelo atraso, mas ele me disse que estava estacionando o carro naquele exato momento, o vi pelo retrovisor. Rimos, eu desliguei e o encontrei pessoalmente, era um senhor com mais de 60 anos. Entramos no prédio e ele me guiou até o apartamento, falando das vantagens, dos preços, e essas coisas, mas se ele tivesse ele tivesse somente aberto a porta, eu já teria fechado negócio, só não o fiz naquela tarde porque ele não tinha um contrato.
Saímos e marcamos uma reunião pra ver o contrato. Depois voltei ao shopping, comprei um celular, finalmente. Voltamos ao hotel, Gisele até parecia em outro mundo, e estva começando a ficar mesmo preocupado. Subimos pro quarto, entrei e me joguei na cama, ela se sentou olhando pra parede.
-Você tá bem, Gisele?- perguntei.
-Hum?- ela disse meio que saindo de um transe.
-Você tá bem?
-Sim... claro...
-Então por que tá assim?
-Assim como?
-Calada, desligada...
-Só estou pensativa.- ela tentou esboçar um sorriso.
-Pensativa? Pensando em que?
-Nada muito importante...
-Me parece ser importante.
-Talvez...
-E você não vai me dizer o que é??
-Talvez...
-Para com isso, Gisele. Diz o que tá te incomodando.
-Nada... Na verdade, acho que eu é que estou incomodando...
-Claro que não...
-Eu sei que sim, por isso tomei um decisão...
-Desição? Que decisão?
-Amanhã eu vou procurar um emprego e um apartamento pra mim, deixar você com sua filha...
-O quê??
-Eu vou procurar um emprego e...
-Não! Você não vai!
-O quê? Vai me impedir de trabalhar?
-Não, eu vou te impedir de me deixar!
-Eu não estou deixando ninguém. Eu vou viver minha própria vida...
-Não, Gisele, não vai embora... não agora... por favor... eu preciso de você aqui...- eu a abracei, quase chorando.
-Desculpa, Marcos. Mas eu tenho que fazer isso...
-Por que?? Estava tudo bem até agora.
-Até alguns dias você era casado...
-E o que isso tem haver??
-Tem tudo haver...
-Não, Gisele, por favor... por que não pode ser igual antes de tudo isso acontecer? Antes daquela noite...
-Por que? Por que talvez eu não queira...
-Como assim??
-Talvez eu não queira que fosse tudo igual era antes de acontecer...
-Por que??
-Por que, talvez, eu queira que tudo aconteça denovo...
-Acontecer denovo?
-Sim... e é por isso que eu estou indo, não posso fazer isso...- ela se levanta.
-Por que não?- eu seguro no seu braço.
-Por que não?? E a sua filha?
-Ela mesma disse que só queria me ver feliz...
-Por favor, Marcos. Não faça isso ser mais difícil do que já está sendo...- ela se solta e vai em direção a porta, a abre, mas para embaixo do batente. Eu me levanto, paro atrás dela, passo a mão pelo seu ombro, descendo pelos braços, e seguro na sua mão. Ela se vira, olhando nos meus olhos, se aproxima, passa mão pela minha nuca, chegando cada vez mais perto, e finalmente, o beijo. Nos beijamos com todo amor e paixão escondidos pelos anos, parecia que só nós dois existiamos, parecia.
-Pai!!!- era Lídia, boquiaberta, com raiva, e surpresa.