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Por sorte Mr. Potts ainda não tinha dado início à aula, então, toda a excitação presente perante uma reprimenda colectiva foi rapidamente esquecida. Acho que me salvei por agora.
A aula de economia aplicada corria normalmente se bem que, por vezes, apanhava Mr. Potts a lançar uns olhares inquisidores sobre mim. “Deve estar a pensar na cena de ainda há pouco” – pensei eu. A aula foi passando assim, de forma pacata, sem grandes acontecimentos.
Faltavam 5 minutos para o fim da aula quando Mr. Potts a deu por terminada. Foi a surpresa geral, até eu que não presto grande atenção a esses detalhes me surpreendi. Esse não era um comportamento normal. Mr. Potts seria capaz de surpreender um britânico em termos de pontualidade. Isto se alguma vez se viesse a cruzar com algum. Tenho de confessar que sou apaixonada pelo Reino Unido, pela cultura inglesa. E, particularmente, fascinada por Londres. É uma das viagens da minha vida.
Estava eu cogitando sobre uma eventual viagem a Londres quando sou interrompida e resgatada dos meus devaneios pela voz característica de Mr. Potts.
- Miss Zurah, agradeceria que aguarda-se um pouco, por favor. Tenho algo que gostaria de discutir consigo.
- Sim, claro. – respondi sem muito interesse.
Apercebi-me agora que aqueles olhares estavam a começar a fazer sentido. Afinal, sempre existia uma razão, algo que ele quereria saber. Não posso dizer que estava ansiosa, talvez um pouco curiosa. Sempre tentei manter boas relações com as pessoas com que me cruzava, no entanto mantinha a distância suficiente para que me fosse possível afastar sempre que necessário. E com o meu professor de Economia Aplicada não fora diferente. Sempre o suportei com educação e nunca abri espaço para qualquer pessoalidade. Ainda assim, ali estava ele, com aquele ar misterioso, a querer falar comigo. No mínimo, diria que era estranho.
Arrumei as minhas coisas e saí. Esperei que ele acabasse de falar com alguns alunos que entretanto o tinham abordado e entretanto fui pensando no que seria que ele me queria. Passados uns minutos, olhei para dentro da sala e os outros alunos já tinhas saído. Então, enquanto Mr. Potts arrumava os seus pertences, aproximei-me dele:
- O professor disse que queria falar comigo?
Ele levantou a cabeça e olhou-me directamente nos olhos. Por momentos hesitei. Não me senti intimidada porque não sou o tipo de pessoa que possa ser intimidade por um olhar. Por norma, quando me olhavam assim, eu erguia mais a cabeça e retornava o olhar. Possuo uns olhos verdes profundos e de aparência autoritária. Penso que, por isso, as pessoas têm a tendência de me ver como um ser severo. Que poder têm as expressões faciais…
No entanto, com o olhar de Mr. Potts, tao súbito e repentino e que me apanhou tao desprevenida, senti-me escortinada, avaliada.
- Sim, Zurah, é verdade. Importa-se que a trate assim? – e sem nem me deixar responder, continuou. – Para lhe ser sincero, tenho vindo a observá-la há já algum tempo e tenho uma proposta para fazer-lhe. Mas primeiro gostaria de discutir consigo a sua situação actual.
- Tudo bem. Quem mais indicado para discutir a minha situação senão eu própria? – respondi tentando não abandonar uma postura correcta.
O há vontade com que aquele homem falava comigo e a sensação de poder que me transmitia estavam a incomodar-me. Parecia ter uma grande notícia para me dar, mas ao mesmo tempo, mostrava-se relutante em fazê-lo.
Ele mostrou-se francamente surpreendido pela minha resposta. Notava-se que, embora, segundo ele, me tivesse vindo a observar ultimamente, não possuía de todo as informações necessárias para lidar comigo sem problemas. Eu tendo a ser sarcástica em todos os momentos, especialmente nos momentos em que me sinto desconfortável. E este era um desses momentos, sem dúvida.
- Directa… Gostei! – disse enquanto me encarava e continuou. – Bem, mas regressemos ao assunto que nos trouxe aqui. A Zurah tem consciência que termina o seu curso este ano. É uma das melhores alunas de uma das melhores universidades do país e não pude deixar de notar que nutre especial interesse pelas matérias que lecciono. – Ele falava sem qualquer dúvida ou interrogação.
O que ele me dizia era verdade, mas eu nunca o dei a entender. E quanto ao estatuto, que a minha situação me conferia, nunca lhe dei demasiada importância. Eu fazia o que tinha a fazer e nada mais que isso.
Vendo a minha curiosidade, continuou:
- Parece-me uma mulher perspicaz, para além de obviamente inteligente, é calma e observadora. E atrevo a dizer que pela expressão dos seus olhos deve ser muito exigente consigo própria. – e nisto calou-se para observar a minha reacção.
- É sempre óptimo receber elogio, - disse, - principalmente quando merecidos. Mas, perdoe-me a ignorância, ainda não consegui perceber aonde quer chegar.
Ele olhou de novo para mim como se tentasse descobrir algum defeito que ainda não lhe tivesse ocorrido. Após alguns segundos suspirou e foi como se tivesse rendido:
- Zurah, eu gostaria de propor-lhe um cargo de professora assistente sobre a minha alçada. Noto-lhe um talento nato para estas matérias e este cargo, para alem de lhe permitir aprofundar os seus conhecimentos, dá-lhe bases sólidas para enveredar por uma carreira de investigação. Sei que nunca discutimos sobre isto, mas pelo julgo conhecer de si, tenho plena certeza que esta proposta lhe agradará.
Fiquei sem palavras, atónita. De todas as propostas que ele me poderia fazer, eu nunca sonharia com esta.
- Mas… professor, eu tenho apenas 23 anos, não haverá candidatos mais qualificados que eu? Acha que eu sou a melhor opção?
- Acho. Se não achasse nunca teria falado consigo. – Ele mostrou-se um tanto irritado com a minha hesitação. – De todos os candidatos com que me deparei, você parece-me ser a mais competente. Não espero que me dê uma resposta agora. Tem até ao fim do semestre. Se resolver aceitar só tem de vir falar comigo.
E com estas palavras agarrou a sua pasta e saiu. Deixou-me ali sozinha, sem sequer esperar por uma resposta, um agradecimento.
Eu sentia-me alienada. Era demasiado bom para ser verdade! Eu nunca tinha pensado muito sobre o futuro, mas agora que tinha uma proposta, a ideia já não se me afigurava tao disparatada.
Quando me senti capaz resolvi ir para casa. Estava a precisar de descontrair. Pensava em talvez sair essa noite. Talvez, não sei. Por hora, precisava mesmo era de relaxar.
Sentia-me cansada. Foram demasiadas surpresas para um dia só. Talvez devesse tirar umas férias. Talvez devesse pensar mais a sério sobre a tal viagem a Londres que tanto queria fazer. E assim, dirigi-me para o estacionamento onde deixara o meu Volvo pela manhã.
O estacionamento estava movimentado a essa hora, era a hora em que a maioria dos alunos e professores deixavam a universidade. E nisto, triiiiiiiiiiim, triiiiiiiiim, o meu telemóvel toca. Comecei a fazer uma espécie de ginástica com os braços para alcança-lo dentro da mala. Esta era uma tarefa deveras difícil porque para além da mala carregava também uma série de livros e cadernos. E estava quase a alcançá-lo quando alguém se esbarra em mim e todos os meus materiais se espalham pelo chão.
- Bolas! Que inferno! – praguejo, e começo a recolher os meus bens. Vejo um par de mãos que me ajudam, mas sinceramente nem reparei bem. Porém fiquei com a sensação que talvez fosse um homem.
No meio desta trapalhada toda consigo alcançar o telemóvel. Era Anne.
- Estou, Anne?!
- Então, amiga! Demorou!!!
- Desculpa-me. Um cretino qualquer esbarrou-se em mim agora mesmo no estacionamento. – nisto ouvi uma gargalhada, pareceu-me divertida, assustei-me, não contava que ainda ali estivesse alguém. Olhei para trás, para apurar o autor de tão alegre riso e vi um homem, já de costas que se afastava de mim a passos lentos mas largos. Não tive muito tempo para reparar nele, mas vi que era alto, moreno e que tinha ombros largos, cintura fina, e uns braços ligeiramente maiores que o normal. Não lhe pude ver a cara. Naquele momento só lhe retive o cheiro. Era um perfume que eu nunca cheirara…
- Zurah, Zurah?! Estas a ouvir-me?!
- Ah?! Ah, sim. Desculpa-me. Estava distraída. Diz.
- Estás bem? Pareces-me distante ultimamente.
- Sim, sim. Está tudo bem. Mas ando mesmo ocupada. Estou a precisar de descontrair.
- Ora ainda bem que falas nisso. Estou precisamente a ligar-te para te convidar para vires comigo a uma festa, hoje à noite.
- Hoje à noite?! Mas já são quase 18h…
- Sim, eu sei. Desculpa só te avisar agora. Mas e então? Vens?!
- Sinceramente… Não sei se me apetece.
- Olha, tens de vir… Vai ser uma festinha pequena, só com os amigos mais chegados. Vamos a um bar de jazz que abriu há pouco tempo. Eu sei que tu adoras jazz. Não podes recusar!!!
- Está bem. Com o jazz convenceste-me!
- Óptimo. Então eu passo as 22h em tua casa para te buscar.
- Hein?! Como assim passas?! - eu perguntei desconfiada. Sabia que Anne não tinha carro. Mesmo por opção. Ela dizia que uma lady devia ser conduzia e deixar-se conduzir.
- Sim, eu passo. Digamos que hoje tenho boleia de um acompanhante muito especial.
- Pronto. Tudo bem. Fico à tua espera então.