Estou tremendo ao escrever isto, e pensei bastante se devo ou não publicar. Mas a questão é que foda-se. Não importa se alguém vai ler, se importar ou até gostar do que vai se relatado. Eu só precisava colocar tudo isso para fora.
Eu tenho vinte e dois anos agora, e estou no quarto ano de medicina. Estava namorando firme com uma garota chamada Lilian, a qual relatei um acontecimento no conto anterior. Mas nada disso importa. Tudo estava indo bem na minha vida, amigos. Eu estudo numa das mais respeitadas universidades de medicina do país, estou fazendo o curso dos meus sonhos, tenho uma estabilidade financeira e estava sendo bastante feliz com meu relacionamento com Lilian, mas há momentos que parece que uma tsunami vêm e acaba com as nossas estruturas. Ora por golpes baixos e inesperados, ora por coisas que adiamos, mas desta vez foi por velhas feridas.
Se tratava de um fim de semana, e a minha namorada estava em uma viagem com a turma da faculdade, ela cursa turismo e está no último ano. Eu fiquei em casa, e tirei aqueles dois dias de folga para relaxar. Mas a verdade é que não cheguei nem a metade do primeiro dia sem que a as coisas complicassem. Uma ligação de um número estranho em meu celular, eu normalmente não atendo e não o fiz. Mas insistiram até que eu atendesse. Uma voz familiar do outro lado da linha:
- Michael? - A voz tênue como um sussurro triste, estava chorando antes de falar, eu podia perceber. - Michael, é você?
- Sim, claro. - Fiz uma pausa. Eu sabia que conhecia aquela voz, mas demorei alguns segundos para perceber quem era. - Kay? - Uma pausa quase interminável onde tudo o que eu ouvia era a sua respiração pesada e o som urbano como pano de fundo.
- Você pode me buscar? Eu... - Eu soube que as lágrimas voltavam a cair naquele momento, e eu me senti triste. - Eu... por favor, Mike. Eu não... Você pode? - Algo havia acontecido. Kay não era insegura daquela maneira.
- Claro. - Pedi a sua localização e fui de imediato até lá.
Kay era um velho amor, descrevi-a muito nos contos que publiquei aqui. Simplesmente porque ela é a mulher que eu amo, sempre amei, e tenho a impressão que sempre vou amar. Eu costumo romantizar as coisas, mas o que sinto por ela é como se fosse grande demais para caber dentro de mim, quando eu sussurro seu nome quase dói. E no caminho, eu só conseguia pensar nisso. Nos seus grandes olhos castanhos me encarando. Eu estava em outro caminho agora, e ela própria tinha tomado o seu rumo. Nós não nos víamos a quase dois anos, e a ligação me pegou como um soco na boca do estômago. Mas como eu poderia dizer não?
Ela estava com a maquiagem borrada quando a encontrei, encolhida num canto da loja. Kay é a mulher mais linda que eu já vi. Ruiva, de olhos castanho alaranjados, quase da mesma coloração que os seus cabelos. E mesmo com o aspecto tão quebrado, eu ainda via a sua beleza. Ela me abraçou como só tinha feito quando ainda éramos adolescentes, e nosso amor era a única coisa que importava. Me abraçou como quando eu era o seu porto seguro, porque agora eu tinha voltado a ser.
Eu perguntei se ela queria ir para casa, e ela perguntou se podia ficar comigo, e eu aceitei. Não havia segundas intenções. A levei para casa, cozinhei pra ela - isso significa colocar uma lasanha pré-pronta no micro-ondas - e nós conversamos. O namorado a tinha pedido em casamento. E ela não soube responder. Foi o que eu entendi do que ela me contou, o resto se embaralhou em lágrimas e soluços. Ela finalmente me confessou: ele bateu nela. Até hoje eu não sei porque. Até hoje eu não entendo. E até hoje eu não quero saber. Kay era uma das mulheres mais fortes que eu já conheci, mas quando me apaixonei não foi porque era forte, mas porque era frágil. Se cortava frequentemente, e eu beijava os seus machucados. E agora, eu novamente beijava o roxo em sua pele, e ela chorava. Éramos adolescentes de novo.
Naquele momento, eu não lembrava mais ser um estudante universitário, não lembrava mais da minha condição financeira, não lembrava mais de minha namorada, sequer lembrava mais de meu nome se alguém perguntasse. Eu era dela, completamente. Nós conversamos mais, eu tentei consola-la, e ela finalmente dormiu no final da tarde. Fiquei observando-a por um bom tempo, sem fazer nada, sem pensar em nada. Apenas encostar a cabeça do outro lado da cama, e contemplar a sua expressão de paz enquanto o sono lhe abraçava. Foi quando a razão caiu sobre minha cabeça como um raio, e eu percebi o quão patético aquilo era. Eu ali, igual um garotinho de quinze anos, me entregando todo para quem nem mesmo me queria. Puni a mim mesmo em xingamentos mentais, e sai do quarto. Fui até a varanda do apartamento, fumei um cigarro, liguei a televisão, mas nada conseguia tirar a expressão dela de minha cabeça.
O amor é um sentimento estúpido.
Ela acordou, e me viu jogando no sofá. Eu estava tentando tira-la da cabeça, havia ligado para minha namorada um milhão de vezes, tentando recuperar aquele vínculo que tinha, mas ela nunca atendeu. Nunca atendeu. Kay sentou ao meu lado, e eu novamente me tornei um adolescente. Seu cheiro era igual ao do dia em que eu a conheci. Eu lembro exatamente. É como o sopro da vida, ao menos para mim.
- Mike, por que fizemos isso? - Ela questionou-me após alguns minutos de silêncio.
- O que? - Respondi demonstrando pouco interesse.
- Por que nós não ficamos juntos? Por que nos separamos? - Fez uma pausa, limpou a garganta, e me encarou enquanto eu fitava os seus olhos. - Eu me lembro de te amar.
- Foi você quem foi embora, Kay. - Respondi sem mais delongas. Mexer em velhas feridas faziam machucar, tudo doía, uma dor que era impossível tratar, não importa o quanto eu estudasse medicina.
- Você não fez nada pra mudar isso. - Ela retrucou, e eu parei de respirar. Senti meu rosto ficar vermelho, e agora era minha vez de encara-la.
- Eu te amei. Eu te amo. Eu te amo pra caralho. Você me fez sofrer demais, você foi embora... - Minha voz falhou. Tinha tanta coisa para falar, tanto para lhe contar, tantos sentimentos que queria exprimir para ela. Mas naquele momento, tudo isso pareceu ficar preso dentro de mim, enquanto eu ouvia a mim mesmo gritar, sem som algum. - Por que você foi embora, Kay? Porra. Não faz isso comigo, eu estou bem agora. Eu tenho alguém.
- Eu te contei tudo, Michael. Mostrei partes de mim que ninguém mais conhece, e você é tão distante. Você dizia que me amava todos os dias, e eu considerei que havia virado rotina. - Agora eu entendia. Era exatamente o que Kay faria. Algo que passei anos tentando decifrar, e estava debaixo de meu enorme e empinado nariz. Ela queria uma prova.
- Isso é estúpido. Não vai mudar nada. Nós tivemos nossa chance.
- Tivemos?
Meus amigos, não há nada no mundo que eu odeie mais do que traição. Mas eu simplesmente não era mais senhor de mim mesmo. Foi um embaraço de braços, pernas, língua, saliva, lábios, cabelos, óculos, roupas, amores, saudades, esperanças. Não há como exprimir o que eu senti, e eu sequer sou capaz de descrever o que aconteceu ali. Era como se todo a minha vida tivesse sido só uma introdução para aquilo. Eu queria chorar, e de fato, chorei. As lágrimas confundiram-se entre as bochechas, e bailavam. Ela chorava também. Foda-se. Eu não sei se vocês experimentaram algo assim, um sentimento tão forte que você simplesmente não controla mais nada, não passa de um mero espectador de algo que era pra acontecer. O amor é um sentimento estúpido.
Nós transamos como se não houvesse amanhã, na sala, na varanda, na cozinha, no quarto, no banheiro. No final da noite, eu tive de tomar alguns analgésico. Nossos corpos não se descolavam, dançavam e escorregavam como se fossem feitos pela natureza um em medida do outro. Trocávamos uivos inteligíveis apenas para nós mesmos, como lobos que se reencontram depois de muitos anos e se lembram que ainda são uma alcateia.
Desculpem-me por não detalhar o ato, sei que é, na maior parte das vezes, o principal dos contos nesse site. Mas este relato é um desabafo. Ela se foi no domingo, Lilian voltou na segunda, e eu contei tudo para ela. Nós terminamos.
Um mês se passou, eu e Kay voltamos a nos falar como se fossemos velhos amigos, e, de fato, éramos. Mas não a tinha visto desde aquele fim de semana. Ela me ligou ontem e disse que estava grávida, e o filho só pode ser meu.
Ela me disse ao telefone que tem duas opções: o aborto ou aceitar o pedido de casamento de seu ex.
Eu só consigo me lembrar de nós dois adolescentes, deitados na sua cama, inocentes como dois idiotas. E imaginávamos como iriam ser nossos filhos, e como prometíamos um para o outro que seríamos ótimos pais. Amigos, eu quero mais do que tudo ser pai desta criança, e, quando mais eu penso, mais eu sei que eu quero passar o resto da minha vida com Kay.
Eu não sei do que vai ser minha vida daqui pra frente. Minha faculdade, minha família, meus amigos, meus planos, minha carreira. Não sei nada. Estou totalmente no escuro. Mas assim que o dia amanhecer, daqui a uma hora, eu irei sair daqui e ir até a sua casa.
Se a sua resposta for sim, todo o resto se tornará irrelevante.