Estava embaixo da minha árvore. Pegava grilos e os colocava no meio de uma armada de barcos de papel que eu tinha construído, dava-lhes nomes e função, fingia que eram soldados; como a criança que enxerga além do que "é", e que molda as formas de acordo com o olhar lúdico; imaginava as falas sem mesmo vocalizar alguma. Eu não precisava de muito, eu não tinha escolha.
- Eu te... Não... Você não... Porra! Estou sedado!- eu falava com ele, Beto tinha surgido do nada.
- Você esta brincando com barco de papel? É isso que eu tô vendo no chão?, alguém deve ter colocado lsd na tua injeção.-ele falava, rindo.
- Sim, eu estou brincando. Mas hoje eu quero brincar sozinho! Mas isso não vai acabar aqui, isso só acaba com a morte.-
- E... Eu... Eu... Não entendi... - ele respondeu, dando passos pra trás, afastando-se da árvore.-
- Eu te fiz uma promessa, nós trocamos promessas, e você me apunhalou, me impediu de sair daqui porque no fundo você esta com os donos desse aquário.- eu falei indo de encontro a ele.
- Calma... - ele disse, gesticulando com as mãos.
Tirei do bolso uma arma e atirei em sua testa várias vezes mal dando tempo de ele cair. De repente meus pés ficaram gelados, a imagem foi se desfragmentando e sumindo enquanto eu acordava. Era um sonho! Porra! Cobri meus pés e tentei voltar a dormir, ainda era noite, resolvi sair do quarto e ir pra o lugar representado no sonho, a árvore. Não conseguia pensar em outra coisa senão no Beto: sendo comido por vários na biblioteca, ele sendo desleal, desdizendo nosso pacto...
- Na sexta vão te levar daqui. Eu escutei! Olha o que eles me fizeram quando me levaram... - apareceu a banguela perto da árvore, ao término da frase ela abriu a boca até o limite de suas mandíbulas; não havia um só dente, haviam pedaços de dentes que não haviam sido arrancados pela raiz, sobre eles o sangue coagulado; ela não apresentava osso em toda a gengiva, como se ele tivesse sido extraído, nessas depressões sangrava e a inflamação parecia anunciar uma explosão de sangue. O cheiro era de carne em processo de fermentação, aquelas feridas e a comida ficavam podres naquela "estufa"; ela passou a ponta da língua na gengiva superior tirando o coágulo, começou a escorrer dentro da boca de onde ela tirou e ela engolia o pouco do sangue. A língua se ergueu em direção a mim, como uma cobra, ela mexeu devagar mostrando o sangue grosso na ponta da língua.
- Horrorizado?, o tempo tem uma capacidade própria de acostumar as coisas ao absurdo. Beto vai acabar com você... Mate ele Sandro, ou ele vai te matar.-
- Não posso! Eu...- ela me interrompeu com um "cala a boca!," e me deu uma peixeira.
- Peguei no dia em que ele tomou o celular que você achou.
- Qual o seu nome?- eu perguntei.
- Teresa - ela respondeu, cuspindo sangue com saliva no chão, e saiu quase correndo.
Agora eu só precisava matar alguém; coloquei a faca presa no elástico da cueca, na parte de trás.
- Vem aqui- cochichou Beto.
Procurei de onde vinha o som.
- Aqui do campo de futebol- ele falou.
Cheguei e ele vendou meus olhos com as mãos, levou-me ao banheiro e trancou a porta.
- Quero muito saber o porquê da sua fuga de mim, há dias que você me evita.-
Seu sorriso era matematicamente planejado, era a outra face da expressão que ele fizera ao pegar -naquele mesmo banheiro- o celular que eu havia achado e que me tiraria dali.
- Beijei ele muito forte, numa vontade de capturar seu ser numa lembrança eterna, e com com os braços virados pra trás tateei minha cueca. Fui puxando o facão e num golpe o apunhalei nas costas. Daí em diante dei sucessivas facadas em sua barriga. Ele se debatia no chão, cuspia sangue, eu me divertia postergando sua morte, queria que o ápice demorasse, trocando em miúdos - queria que ele tivesse uma morte lenta.
Começaram a bater na porta; eram eles, os membros da seita que queriam me matar. Eu mataria qualquer um que entrasse naquele banheiro, comecei a gritar isso aos quatro cantos. Olhavam pra mim com horror, uns choravam...
- O que você fez? Sandro... Porra, quem foi o filho da puta que te deu essa faca?-
- Cala a boca sua puta, se você chegar perto eu te mato! Assim como eu matei esse desgraçado, ele queria me matar, ele se uniu com vocês, com essa seita que prende as pessoas.-
- Ele quem? Quem você matou?- perguntou um dos carcereiros daquela clínica.
- Ele, o Beto, esse lixo que esta no chão.-
- Não tem ninguém no chão.-
- Você... Quer me enganar pra me fazer mal, pra me distrair.-
- O Aberto... Ele morreu no assalto que vocês fizeram, você... Ele não existe! Olha o que você fez na sua barriga.- disse o psicólogo da clínica. Minha barriga escorria sangue; no chão não havia ninguém. Relembrei do dia em que matei o beto sem querer no assalto, ele tentou fugir e eu atirei com o susto, eu não era culpado. Não viveria sabendo disso!
- Quando você vai parar de se machucar por isso? Quando você machuca ele, é uma forma indireta de se punir por tê-lo matado, ele não existe, é você. Esse complexo de culpa não faz você enxergar isso, mas o subconsciente te pune. Eu sei que foi um acidente. Nós sabemos. Joga essa faca!- o psicólogo continuou, ele não conseguia segurar as lágrimas que corriam como água, apesar de manter uma pose equilibrada, talvez pra não me desequilibrar.
O Beto era louco, vivia de furtos, éramos inseparáveis; o meu melhor amigo pra sempre, amá-lo pra sempre não poderia ser errado, mas fugia da minha mão essa escolha. Ele sempre voltava, sob formas diferentes como os anjos e demônios, pra me fazer continuar...
Larguei a faca e fui carregado até a enfermaria esperando a ambulância chegar.
Os meus pais chegaram e me acompanharam dentro da ambulância, no hospital uma enfermeira particular ficou ao meu encargo, velando o corpo vivo.
Nota do jornal, PAPEL DIÁRIO, 13 de abril de 2009:
Foi assassinada ontem, a dentista Teresa Chagas Aguiar, a vítima foi alvejada durante uma tentativa de assalto. Um dos assaltantes, o Alberto Santos Ferreira foi morto pelo seu cúmplice, que ainda não foi identificado.
FIM