Continuação do Capítulo 15
No sábado dormi até mais tarde. Quando acordei minha mãe e William já tinham saído para o clube. Estava só em casa. Olhei pela janela e Severino estava tomando cerveja com a mulher na varanda do puxadinho. Pensei em sair e dar uma volta, mas resolvi ficar quieta em casa. Fui dar uma olhada em minhas roupas e escolhi um vestido bem bonito para usar à noite. Conferi minhas joias e os sapatos que usaria. Deixei tudo mais ou menos no jeito. Puxa, é tão cedo ainda. Não é nem meio dia ainda... Nessa hora o pessoal do futebol ainda não está lá. Decidi sair para tomar um ar fresco. Peguei a bicicleta e saí andando sem destino, apenas passeando. Passei pela construção e os operários estavam trabalhando e nem sinal do Cícero. O dia do plantão dele é no domingo e hoje é sábado. Evitei a direção dos fundos da obra e dei a volta pelo outro lado. Que sábado quente! Sol a pino que transformava o dia numa canícula sem igual. Me deu uma sede danada e resolvi circular a praça e ir a uma lanchonete tomar alguma coisa. Parei a bicicleta e pedi uma refrigerante. Sentei num banquinho e quando tomava o refrigerante, ouço uma voz atrás de mim.
—Moça, tem uns trocados para eu comprar um lanche?
Virei-me e vi um rapaz maltrapilho, com a mão estendida esperando ganhar umas moedas. Devia ter a minha idade, mais ou menos. Apesar de sujo e maltrapilho, não era feio. Pele clara como a minha, cabelos claros em desalinho e sujo, muito sujo a ponto de feder. Era alto e magro, mais alto que eu. Olhei melhor e vi atrás dele duas meninas, uma de mais ou menos 14 anos e outra menor de seguramente uns 10 anos. Todas clarinhas, maltrapilhas e muito sujas.
—Quem são elas?
—São minhas irmãs, moça. Nossos pais morreram na última enchente e nossa casa foi destruída pela enxurrada de lama. “Meu Deus! E ninguém faz nada? Onde está o Governo desse país?”
—Por que vocês não ficaram nos abrigos do município?
—Minhas irmãs quase foram estupradas por uns homens de lá, por isso resolvemos sair.
—Onde vocês estão agora?
—Estamos morando embaixo do viaduto da rodovia.
Dei-lhe o que tinha de dinheiro e saí dali deprimida e voltei para casa. Ao chegar em casa chorei muito só em pensar que como aqueles irmão, deveria haver centenas de pessoas nas mesmas condições espalhadas pelo Brasil. É a realidade que não vemos e que o governo brasileiro procura esconder da mídia e do grande público. Minha mãe e William chegaram e me viram triste.
—Que foi querida? Aconteceu alguma coisa? Você está triste...
Contei para eles o que havia acontecido e William falou:
—Para o rapaz, eu poderia treiná-lo e dar um emprego para ele em uma das minhas lojas, mas as meninas não têm idade ainda para trabalhar, é ilegal o trabalho infantil. Quanto à moradia, não posso fazer nada. Prometo que vou pensar no assunto. Minha mãe passando pelo corredor viu meu vestido e as coisas arrumadas, dispostas na cama, voltou e perguntou:
—Vai sair à noite querida? Já era tempo de você ter vida social.
—É! Um amigo da escola que está se formando me convidou para jantar com ele.
—Até que enfim! O romance está no ar...
—Bobagem mãe, é só um amigo.
Às oito em ponto um táxi buzinou na porta. Eu já estava pronta e, modestamente, linda em meu vestido brocado azul escuro, justo apenas o suficiente para delinear minhas curvas. A bolsa de mão também azul levemente salpicada de purpurina prateada e o conjunto de colar e brincos de brilhante completavam o figurino. Sob elogios de minha mãe e de William, fui para o táxi esperando encontrar Roberto, mas havia apenas o motorista.
—Vim apanhar a senhorita.
—Para qual restaurante o senhor vai me levar?
—Mandaram que a levasse para o Internacional Hotel. Estão esperando lá.
Fiquei muito intrigada porque esse hotel era o mais luxuoso da cidade. Hotel 5 estrelas... O que será que Roberto está aprontando? Na entrada, lá estava ele, gordo como o que, mas elegantemente vestido. Deus! Que diferença...
Gentilmente ele abriu a porta para eu descer e disse:
—Você está divinal! Vai impressionar muito alguém que está ansiosa para conhecê-la.
Deu-me o braço e passamos pelo hall do hotel e seguimos em direção ao restaurante. Na entrada havia o maître que nos deu boas vindas e perguntou a Roberto:
—Vem mais alguém?
—Não, pode colocar a placa de reservado.
Lá dentro, havia um piano bar com música clássica sendo tocada e as mesas, todas ornamentadas com lírios brancos. Um ambiente extremamente luxuoso e elegante. Eu estava deslumbrada e pensava: “Isso deve ter custado uma fortuna!” Foi quando avistei uma senhora idosa, sentada numa das mesas e, em pé a seu lado um negrão enorme, forte e meio gordo ao mesmo tempo, também elegantemente vestido. Fez-me lembrar os pajem que a gente costuma ver nos filmes. Ao nos aproximar, a velha senhora sorria e me olhava com olhos de admiração. Paramos a seu lado e Roberto então falou:
—Vó, essa é a moça de quem lhe falei.
—Oberaus freude lieber! (Muito prazer querida). Bitter setzen (Sentem-se, por favor).
O negrão logo puxou a cadeira para que eu me sentasse. Minha cabeça girava sem parar e sem entender nada. Logo o maître perguntou o que desejávamos de entrada e Roberto sugeriu um “foie gras” (patê de fígado de ganso) e uma garrafa de “Chenet Cabernet Syrah” num francês de dar inveja. Não sabia que ele falava francês. As surpresas se sucediam. A sua avó completou o pedido falando:
— Eu gostaria de um caviar e torradas com alho.
“Ufa! preciso ficar quietinha. Eles são refinados demais.” Depois de feitos os pedidos da entrada a velha senhora virou-se para o negão e falou em alemão:
— Bitte setzen Bowkah!
O negão sentou-se ao lado dela e Roberto então começou a me explicar o que estava acontecendo. Falou que sua avó era alemã e sempre falava sua língua nata, segundo ela, para não perder as suas raízes, embora falasse português fluentemente, além de francês e inglês, assim como ele. Bowkah ela o contratara quando morou na Costa do Marfim onde seu marido tinha minas de diamantes, origem de sua fortuna. Explicou também que seu pai conheceu sua falecida mãe, uma brasileira que passava férias na África e acabou se casando com ela e veio para o Brasil. Daí acabou herdando as usinas de cana de açúcar. Foi aí que Madame Reingard, num português fluente tomou a palavra e falou:
— Querida, você é uma moça extraordinária. Roberto tem me falado muito de você. Ele, todos sabemos, não é lá o príncipe encantado que as meninas de sua idade sonham, mas você se aproximou dele, sem saber suas origens e, principalmente, sem saber do império financeiro que ele herdou com a morte de meu filho, e conquistou seu coração; tudo desinteressadamente. Nós poderíamos tê-lo deixado morando aqui neste hotel enquanto estudava, mas ele próprio preferiu se esconder no anonimato e ficar naquele cubículo que ficou nestes três anos. Também poderíamos ter comprado ou alugado uma boa casa e dotá-la de todo o conforto e com empregados e também um carro, mas ele, Roberto preferiu ser como você o conheceu e dele se aproximou, demonstrando ter um grande caráter e um grande coração. Eu a admiro muito e foi por isso que resolvemos convidá-la para esse jantar. Bowkah você está com a caixa?
—Sim Madame Reingard! Aqui está!
O negrão africano entregou uma pequena caixa de veludo vermelho à velha senhora que a passou às mãos de Roberto dizendo:
—Agora meu querido, é com você.
Nesse instante, um violonista aproximou-se da mesa tocando Serenata de Schuberh. A equipe de garçons estava perfilada um pouco mais distante nos olhando. Roberto abriu a pequena caixa e um reluzente anel de diamante cor de rosa brilhou lançando reflexos multicoloridos.
— Querida, bem sei que o que nos une ainda está muito longe de ser o amor que sinto por você, mas sei também, que você é capaz, de um dia me amar tanto quanto a amo, por isso gostaria oferecer esse anel como símbolo de um compromisso. Você aceita se casar comigo?
Fiquei atônita, perplexa. Meus olhos se encheram de lágrimas. Madame Reingard interveio e disse:
—Esse diamante é raríssimo e custa uma fortuna. Veio de uma de nossas minas na Costa do Marfim. É uma preciosidade, mas não tão valiosa quanto você é para nós. Por favor, aceite! Estou velha e quero morrer sabendo que meu neto está em boa companhia. Sei que você saberá cuidar bem dele quando eu partir. Aquela música suave de Schubert, o ambiente, as flores, as palavras da velha senhora e os olhos suplicantes de Roberto, tudo isso se misturava em minha mente. Olhei para Bowkah e a única coisa que me veio à mente foi imaginar o tamanho e a grossura de sua vara africana. “Deve ser imensa!” Pensei. Depois pensei nas minas de diamantes, lá na África e nos africanos, negros, imensos, suados carregando os sacos cheios de diamantes; pensei nas usinas de cana de açúcar aqui no Brasil. Tudo isso será meu! Todo o patrimônio, a fortuna, os homens... Por que não? Para que estudar, trabalhar, se posso ter o mundo a meus pés? Com os olhos marejados de lágrimas, olhei para Roberto que aguardava ansioso e respondi:
—Querido, não sei se estou à altura de tanta consideração e amor. Não sei se sou merecedora de você e de tudo que tem para me oferecer. Você está certo. Realmente não o amo na acepção da palavra em seu maior significado, mas tenho um carinho especial por você. Já que você conhece meus sentimentos e me quer mesmo assim, eu aceito!
Todos os garçons aplaudiram e o maître trouxe um buquê de rosas vermelhas e me ofereceu. Madame Reingard também aplaudiu e pediu:
—Tragam o “Joseph-Perrier Cuvée Royale Brut”. Vamos brindar!
Fiquei esperando. Afinal que seria aquilo que ela pediu? Tratava-se, depois eu soube, ser o melhor e mais caro champanhe. Fizemos o brinde e depois jantamos. Ao final do jantar Madame Reingard disse que estava cansada devido às fortes emoções e se retirou acompanhada de Bowkah, deixando antes um agendamento para o dia seguinte. Queria conhecer minha mãe. Dali, eu e Roberto fomos de táxi para seu Kit, onde tudo havia começado. Fizemos amor até o dia clarear e quando terminamos o coitado não deu conta nem de se levantar para tomar banho. Já passava das 9 horas quando acordamos. Pedi que ele chamasse um táxi para me levar para casa. Não poderia desfilar a pé vestida como estava. Ao chegar em casa, William e minha mãe acabavam de levantar e estavam começando a tomar café. Foi minha mãe quem falou primeiro ao me ver chegar.
—Ei mocinha! Não acha que você extrapolou dessa vez?
Escondi a mão colocando-a para trás e me sentei para tomar café com eles. Os dois mantinham um olhar interrogador sobre mim. Servi-me calmamente e depois falei:
— De hoje em diante me chamem de “futura senhora Schwanz. Fiquei noiva ontem.
—O quê???
—Mãe, esse rapaz de quem fiquei noiva é gordo, feio, mas é carinhos e me ama de verdade. Já estávamos saindo há mais de seis meses. Veja o anel de noivado.
—Isso é bijuteria barata!
William interveio:
—Não meu amor! É diamante verdadeiro. Raríssimo nesse tom cor de rosa. Valiosíssimo!
Eu completei sua observação:
—É verdade mãe! Roberto é o único herdeiro de uma fortuna. Ele tem minas de diamantes na Costa do Marfim e foi de lá que esta pedra veio. Aqui no Brasil ele tem três usinas de cana de açúcar e milhares de acres de terra. Tudo isso será meu um dia. A família dele se resume nele e na Madame Reingard Schwanz que já é bem idosa. Ela é alemã e muito inteligente. Fala quatro idiomas e Roberto também.
Passei a contar o sonho vivido na noite anterior. Minha mãe se emocionou (Também... Que mãe não se emocionaria com a perspectiva da filha casar com um bilionário?) e me abraçou:
—Minha filhinha vai se casar!
Me levantei e já ia para o quarto trocar de roupa quando lembrei do encontro de hoje à tarde.
—Madame Reingard deseja conhecê-la hoje às quatro da tarde. William também poderia nos acompanhar. Ela está hospedada no Internacional Hotel e vai nos receber em sua suíte. Iremos vestidas com sobriedade. William você vai?
— Sim, se sua mãe achar que devo ir.
—Vamos todos.
Segui para meu quarto, cheia de expectativa. Vou querer passar a Lua de Mel na África. Ah! Meu Deus! Tantos negros bem dotados... Mal posso esperar.
Continua...