Era uma sexta feira ensolarada e eu estava no meu quarto lendo os autos de Gil Vicente. Confesso que estava ligeiramente sonolento quando meu celular ressoa e, ao observar pelo visor, abro um leve, porém contido sorriso quando vejo escrito o nome “Pedro”.
– Chora.
– Isso é jeito de atender seu senhorio? – Ele brincou. – Enfim, vai sair com a sua mala hoje?
– Pedro, você não chega a um terço do que o Matheus é – eu rebati seu deboche. – Mas não vou sair. E por que a pergunta?
– Humm... Nada não. Só queria saber se você estava livre pra tomarmos um sorvete ou algo parecido.
– Ah, tudo bem. Mas hoje tem aula.
– Sim, mas podemos ir pra facul depois – ele argumentou. – Vamos no shopping mesmo. Topa?
Eu assenti e desliguei o telefone.
Vou ter que dar uma pausa e revelar alguns detalhes necessários para uma boa compreensão. Nessa época é mais do que óbvio que, ausentando a ingenuidade, eu sabia dos verdadeiros intentos do Pedro. Claro que eu sabia que ele estava a fim de mim e não serei patético em negar que ele também me atraía. Todavia, também nunca fiz a linha cafajeste, brigando inúmeras vezes em discussões que, em seu cerne, envolviam o assunto fidelidade e moralidade. Discutir a moral e o que são bons valores é algo complexo e um tanto delicado, especialmente nos dias de hoje. E para adentrar nesse assunto, terei que expor mais sobre os pensamentos do Pedro e o que aprendi com ele...
Toda vez que conversávamos, acabávamos recaindo no fator namoro. O Pedro criticava o conservadorismo meu e do Matheus, especialmente no que tange a traição. Quando o Pedro me falou sobre o hábito de dois namorados querendo satisfazer seus desejos toparem fazer sexo a três, enxerguei aquilo como o maior dos absurdos e surtei. Ele calmamente me explicava sobre os arquétipos moldados pela sociedade ao longo dos tempos, que decretavam o que era correto ou errado e o que se deveria seguir ou não. Não obstante, mesmo assim, eu não impunha respeito no que conferia aquilo, revelando minha opinião e resumindo que qualquer coisa em um relacionamento que fosse aberta a três já era traição.
– Lipe, você nunca olhou para ninguém? Nunca viu um carinha bonito ou alguém que sentisse atração? Assim, do nada, simplesmente enquanto anda pelas ruas?
– Claro que já. Sou humano.
– Então você está sendo hipócrita – ele afirmou, certa vez.
– Hipócrita é você! – Eu me defendi – E por que está me ofendendo assim?
– Não é ofensa, Lipe. Sabe, você é seletivo com as coisas. Fala sobre traição, conceitua o que é traição. Diz sobre os posicionamentos que um casal deve tomar, mas não resiste a uma olhadela na bundinha ou na mala de um garoto.
Toda vez que o Pedro adentrava naquele assunto (acreditem, pois eram muitas), eu não resistia à cólera e, às vezes, jorrava insultos e impropérios. Para mim era terrível o que ele dizia. Ele rebaixava e empregava outros moldes para um relacionamento, baseando suas teses e pareceres simplesmente porque o lance de fidelidade era uma alusão para prisão, e ninguém é de ninguém, pois ainda que suspiros carnais fosses grandes e devessem serem praticados para uma boa disposição mental e física, o que realmente contava era o companheirismo e que todo casal deveria fazer suas próprias regras aplicadas sem falsos moralismos e a opinião alheia.
Eu, é claro, quase um conservador nato, encarava tudo aquilo como um verdadeiro disparate. Tão nada a ver o que ele dizia. E eu não deixava de zombar:
– Por isso que está sozinho. Ao invés de estar namorando com um cara legal, prefere perder seu tempo transando e traindo por aí. Eu que não namoraria contigo, para ficar me traindo ou querer transar com todo mundo.
– Lipe, Lipe... Não é disso que estou falando. O que eu quero dizer é que não devemos nos prender a esses falsos moralismos, pois assim seremos infelizes. Sexo não é religioso, é algo físico. Já amor é transcendental, algo que não se adquire com um ou dois anos de namoro, apenas ao longo do tempo. Não confunda as duas coisas. E, por favor, não pense que quero dizer que não posso amar alguém de verdade.
E, em suma, ficávamos naquele jogo de gato e rato, ambas as partes sem ceder, uma vez que toda vez que ele tentava transmitir aqueles ideais, eu, por minha vez, não dava o braço a torcer e rebatia com meus próprios argumentos. Mas voltando para a história, naquela sexta quente e abafadiça eu me preparei para ir mais cedo para a faculdade. Depois que acertamos o horário de encontro, na praça de alimentação do shopping tal, me arrumei e fui bem gatinho encontra-lo. Mas como o destino é cheio de idas e vindas, peguei um trânsito horroroso e não conseguia ligar para o Pedro para informa-lo, dado que eu, confessadamente pobre, estava sem créditos no meu celular e o telefone dele não atendia chamadas a cobrar.
Era quase o horário normal de eu chegar na faculdade quando passei pelo portão do hall e avistei o Pedro recostado numa das paredes, ladeado pelos amigos e envolto por seus assuntos idiotas e que não são da minha conta. Ele percebeu minha presença, contudo nada fez ou falou. Eu prossegui a caminhar e fui me encontrar com meus colegas mais próximos. Não vou relatar sobre meu dia na faculdade, pois provavelmente vai ser um porre para os que não gostam do assunto e só se interessam pelo romance propriamente dizendo, mas não posso deixar de dizer que, no banheiro, enquanto eu lavava minhas mãos, observei o Pedro vir ao meu encontro pelo reflexo do espelho.
– E então, não vai me pedir desculpas?
– Pelo quê? – Eu indaguei, me fazendo de inocente.
– Uai, por me dar um bolo. Custava me avisar que não me encontraria, Felipe?
– O que aconteceu com o “Lipe”?
– Ficou com o Pedro otário e compreensível que você deixou plantado. Então, custava me avisar que não iria me encontrar?
– Mas eu tentei. Não tenho culpa se a porcaria da operadora deixou o dia para ficar de T.P.M. – É claro que eu menti né pessoal. Pode parecer esnobismo, mas vocês acham mesmo que eu ia dizer que estava sem créditos?
– Que desculpa idiota, Felipe. Deve ter saído com o trouxa do Matheus e esqueceu do nosso compromisso. Mas isso não me interessa. Ele que é seu namorado, não eu. Aliás, nem sei o que vi em você.
E, assim, simplesmente assim, ele saiu e me deixou com cara de cu no banheiro.
A faculdade transcorreu normalmente e fui para casa de carona com minha colega de turma, Fernanda. Não utilizei o meu computador naquela noite, pois bem sabia que acabaria acessando o meu perfil do Facebook e o Pedro estaria online para me atormentar. Conversei com meu namorado, desliguei e fui dormir. Pulando para a terça feira, lembro que havia marcado de me encontrar com o Guilherme, meu melhor amigo que provavelmente já citei em algum dos capítulos anteriores, de irmos a uma exposição de Salvador Dalí que estava acontecendo na Academia Mineira de Letras.
Salvador Dalí foi, decerto, um dos mais importantes artistas plásticos do movimento surrealista da Espanha. Amo essa vertente de vanguarda! Era uma moderna escola de literatura e arte caracterizada pelo desprezo das construções refletidas ou dos encadeamentos lógicos e pela ativação sistemática do inconsciente e do irracional, do sonho e dos estados mórbidos, valendo-se, frequentemente, da psicanálise. Visava, em última instância, à renovação total dos valores artísticos, morais, políticos e filosóficos. Mas para quem não entende esse assunto e deve estar achando chato e insignificante, calma que eu explico: resumidamente, o surrealismo procurava conjugar arte, sonho e realidade na tentativa de compreender além da realidade de nosso dia a dia e do que estamos acostumados.
Então, me encontrei com o Guilherme antes de ir para a faculdade. A exposição se baseava nas ilustrações surrealistas que Dalí fez para a clássica obra “A Divina Comédia”, de Dante. Devo ter tido meia dúzia de epifanias ali, absolutamente maravilhado com aquele ambiente. Entretanto, também, eu sentia que já estava na hora de eu abrir o jogo para o Gui e contar as mais recentes revoluções que se passavam ao meu redor.
Descemos para o Café Paris que ficava a poucas quadras dali.
– Então, tem algo para me dizer? – O Guilherme indagou, logo após estarmos assentados, com dois copos de chocolate quente e dois pratinhos de cookies.
– Tem sim, Gui. Preciso muito da sua opinião sobre umas coisas que têm acontecido. Mas, por favor, não me julgue.
– Ih, acho que lá vem bomba...
– Mais ou menos – eu expliquei. – Sabe o Matheus?
– O que que tem ele? – O Gui procurou saber. – Terminaram?
– Não, não é isso. Pelo contrário, não tenho nem um pingo de intenção de terminar com ele. E se ele fizesse isso eu acho que surtaria. Mas a questão é que conheci um cara mais velho da minha faculdade que, bem, acho que você sabe o resto.
– Espere, você está traindo o Matheus?
– Não! Quer dizer, sim. Mas isso depende do ponto de vista. Nós nunca nem nos beijamos, mas o Pedro, esse cara de quem estou falando, insiste que um mero olhar já pode ser visto como traição... Então pense como queira.
– Você está me deixando confuso. Explique melhor.
– Não é fácil. Como eu disse, gosto muito do Matheus. De verdade. Não sei se é amor, mas gosto dele. O problema é que eu também estou começando a gostar do Pedro. Bom, eu acho.
O Guilherme anuiu. Depois de bebericar do chocolate e mordiscar do biscoito, resumiu aquele conflito:
– É uma situação delicada, Felipe. Seu compromisso é para com o Matheus, lembre-se disso. E já que disse que não houve nenhuma traição, pelo menos não consumada, então não há com o que se preocupar. Mas não vá trocar um pássaro na mão por dois voando, heim.
Terminamos nosso encontro com ele me levando no meu ponto de ônibus. Rumei para a faculdade e, enquanto o ônibus prosseguia, liguei para o Matheus.
– Oi amor da minha vida! – O Matheus sempre me atende dessa forma, mesmo quando estamos de mal um do outro rsrsr. – Que milagre você me ligar. Vive reclamando que não gosta de falar no telefone muitas vezes.
– Não é só contigo, amor. Já te expliquei isso. É que não gosto de ficar segurando telefone por muito tempo.
– Sei. Mas o que você quer? Estou um pouco ocupado agora. Os meninos faltaram e sobrou mais trabalho pro meu lado.
– Não, não. Só estou ligando pra dizer que te amo.
O Matheus riu do outro lado da linha.
– Oh, meu gostoso! Também te amo, tá?
– Eu sei disse – confirmei. – A noite conversamos mais. Pode voltar pro seu serviço. Estou indo pra faculdade.
Assim que desligamos fiquei pensando em toda a situação. No fim concluí que era pura besteira, meras ponderações tolamente piegas. Achei-me ridículo ficar sustentando aquela posição, afinal meu namorado era o Matheus. O Pedro era apenas mais um desses caras que aparecem em nossas vidas como tantos outros: meche, de alguma maneira, conosco, mas no fim sabemos que não faz nenhuma diferença e que logo são substituídos por novos flertes e provocações.
Todavia, como a vida é um manto de enredos e tramas conflitantes, quando cheguei mais cedo na faculdade, avistei o Pedro assentado sozinho numa mesa no pátio interno. Havia pouca gente e, felizmente, as gralhas, quer dizer, seus amigos, não estavam pousados ao seu lado. Ele estava de costas e não viu eu me aproximar.
– Oi, Pedro.
Depois de algum tempo ele respondeu:
– Oi, Felipe.
– Ainda está com raiva?
– Raiva não, apenas chateado – ele confessou. Ai, me deu uma angustia ver seus olhos transmitindo verdadeira tristeza.
– Está bem, você venceu. Preste atenção que vou explicar só uma vez: naquele dia fiquei preso no trânsito e não tinha créditos para ligar pra você. Está satisfeito? É essa a verdade. Desculpe se dependo de ônibus e sou tão ferrado que nem coloco créditos no celular
– Jura? – Ele perguntou. Ali, naquele rosto com a barba feita, reluzia um sorriso cândido e faustoso. Era lindo de observar.
Eu fiz que sim com a cabeça.
– Então estou perdoado? – Eu indaguei com sinceridade.
– É claro, Lipe. Não conseguiria mesmo ficar chateado com você por muito tempo.
E, dizendo isso, ele deu um soco de leve no meu braço e, muito aparentemente, voltamos ao estágio que levávamos antes deste pequeno desentendimento, o qual, por conseguinte, não durou muito.
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Hei, cambada! Então, depois de algumas décadas resolvi postar mais uma parte e prosseguir com a história. Peço antecipadamente desculpa pela demora, mas estou lecionando literatura e história da arte e o tempo que me sobra uso para fazer outras coisas, como namorar, fazer “lepo lepo” e sair com meus amigos.
Mas, também, tem um motivo pela minha ausência: senti uma pequena queda no número de comentários, por isso não sei se devo prosseguir com a história sendo que ela não deve estar agradando como antes. Se querem que eu prossiga, especialmente que não demore tanto, por favor, não custa nada fazer um registro e comentar, dando suas sinceras opiniões sobre os rumos. Lembro, por fim, que é uma história verdadeira, então obviamente não mudarei nada da trama, talvez apenas a forma de narrar, se necessário for.
Então... vlws flws.