Silêncio, absoluto e difuso. Dentro do carro do Pedro, eu observava as luzes da cidade se indefinirem num espectro que harmonizava com o negro inebriante do céu. Era por volta das nove da noite e passávamos pela orla da Lagoa da Pampulha quando lancei a ideia:
– Bem que podiam construir uma ponte que cruzasse a lagoa. Mas não uma ponte qualquer. Uma que criasse harmonia com o conjunto modernista, mas que também não se tornasse um elefante branco.
– É uma boa ideia, Lipe! Mas você acha que esses vereadores estão interessados nisso? Querem apenas lavar o dinheiro público.
– Verdade – eu compactuei, por acinte. – Mas deixaria aqui ainda mais bonito.
E, novamente, o silêncio recaiu num manto denso e ponderativo sobre nós dois. Seguimos e o carro continuava a desbocar em ruas, dar em outras, cruzar alamedas até que paramos diante de um estabelecimento comercial. A região estava apinhada de pessoas, com vários carros estacionados.
– Ai, Pedro! Eu falei que não queria vir pra boate.
– Relaxa. Por acaso eu citei boate?
A bem da verdade, para o meu alívio, não era uma boate. Era uma lanchonete temática famosíssima aqui em BH, da qual eu conhecia, mas nunca tinha pisado os pés. Localizada na Pampulha, a casa chama atenção pelo estilo que evoca a década de 1950 em cada detalhe: as paredes da área externa, no tom verde água, e o salão principal com o piso xadrez preto e branco, mesas de fórmica branca, detalhes cromados e bancos estofados e forrados com vinil vermelho, sinalizam a proposta de relembrar clássicos dos anos 50. Na parte interna do imóvel, as paredes sustentam propagandas antigas, produtos “vintage” e discos de vinil.
Eu amei à primeira vista! Era um local artístico, retrô, com toques de um ambiente em que pessoas do meio intelectual podiam se agrupar e trocar altas ideias! Led Zeppelin... Pink Floyd... Deep Purple... Black Sabbath... Elvis... Janis Joplin... Metallica... Iron Maiden... Mas, sem sombra de dúvidas, era inteiramente dedicado aos amantes do rock e do punk, com a música tocando solta e as próprias garçonetes imitando o estilo.
– Nossa, esse lugar é muito maneiro! Sempre quis vir aqui.
– Já conhecia o Burgueria? – O Pedro perguntou, me puxando para uma das mesas internas.
– Sim, sim. É bem famoso.
O Pedro apontou o teto e me informou que, nos dias de calor, ele se abre para que o frescor adentre o local, todavia também possibilitando que os clientes aproveitem com direito a olharem para as estrelas.
– Então, está mais calmo?
– Estou sim. Mas decepcionado – eu disse.
O Pedro nada falou. Apenas instigou que eu continuasse.
– Como um professor pode fazer isso? Confundir autoridade com autoritarismo?
– Sim, ele foi bastante prepotente mesmo – o Pedro concordou.
– E ainda fez todos parecerem que eu é que estava errado.
– Verdade. Mas é como eu sempre digo: professor nunca erra, apenas se equivoca.
– Como assim? – Eu perguntei.
– Bom, você acha que ele, com todos esses anos na área, vai aceitar que um aluno do primeiro período o contradiga na frente de todos? É claro que não. Vai mesmo é usar do poder dele para constranger você. E o que você tem de melhor a fazer agora é deixar isso pra lá. Não vale a pena se importar com isso.
– É, vou fazer isso. O que importa é que eu sei. Dane-se se vocês vão aprender errado.
– Também não precisa ser arrogante, Lipe – o Pedro enunciou, todo simpático. Seu sorriso era tão maravilhoso; toda vez que eu o encarava me familiarizava com o fato. – Seja mais tranquilo. E gentileza só gera gentileza, lembre-se disso.
– Como assim?
– Uai, às vezes você trata um pouco mal o povo lá da sala.
De imediato, é claro que eu discordei:
– Eu não faço isso!
– Sim, você faz. Lembra da patada que deu no Gerson? Precisava daquilo? Ele ficou sem entender.
– Bem feito! Quem manda ser um idiota. Por favor, Pedro, o caro é tosco pra caralho. Vai ficar defendendo ele agora?
– Você tem razão, Lipe. Mas se sabe que ele é tosco guarde isso pra você. Pra quê perder seu tempo e criar inimizades semeando essa cara fechada?
– Pedro, não me importa o que você pensa. Não somos amigos.
O Pedro engoliu a seco.
O cardápio oferecia uma variedade de opções. Haviam combinações que eu nunca provara na minha vida, como também sanduiches de carne de avestruz e uma gama de queijos. Os molhos eram simplesmente deliciosos. Quando escolhi um dos mais baratos, que para o padrão normal já estava na casa do caro, me assustei com o tamanho quando o garçom trouxe. Achei estranho também haver uma porção de fritas, mas o Pedro logo explicou.
– As fritas aqui estão inclusas, Lipe.
– É, Lipe – confirmou o garçom que nos servia. – Já vêm incluídas no pedido.
– Com licença, mas o nome dele é Felipe.
– Desculpe.
Eu observei em silêncio o Pedro destratar o garçom, mas confesso que sorri com a sua atitude. Comemos, e nossas conversas foram regadas a uma imensidão de assuntos. Era como conversar pelo Facebook, entretanto face à face e com elevado grau de interatividade e intimidade. Ali descobri, entremeio à gesticulações exageradas e sorrisos largos e cativantes, seu amor por Pink Floyd e dedicação para com o blues. Ele me falou sobre sua família e a relação mais estreita que tinha com o pai. Eu, por minha vez, desabafei sobre o fundamentalismo religioso exacerbado da minha família e, mesmo sem ser tão radical, a não aceitação do meu pai por eu ser homossexual.
– E como vai o namoro? – O Pedro perguntou.
– Ah, vai bem. Mas brigamos ontem.
– E por quê?
– O Matheus tem umas ideias idiotas, às vezes. Vai ser promovido no trabalho, e por isso decidiu abandonar a ideia do supletivo. Tentei convencer ele, mas não adiantou.
– Ele que sai perdendo nessa situação toda – o Pedro corroborou.
– É o que eu acho. Sabe, não quero viver com alguém que não pense no futuro, que fique brincando de ser adulto. Vivo dizendo que quando ele for velho não vai ter nada na vida. Nem mesmo eu.
– Não sei porque vocês namoram.
– Por que está dizendo isso? – Eu indaguei. Ali despontava a inequívoca impressão de que o Pedro se sentia frustrado pelo meu namoro.
– Afinidades é o embasamento para tudo, Lipe. Esse papo de os opostos se atraem é balela. O que mantém um relacionamento são as semelhanças. E vocês dois não parecem ser muito semelhantes. Mas não liga não; é só o que eu acho.
O Pedro mudou o assunto e resolvemos falar sobre a faculdade. Eu o perguntei do porque estar fazendo letras, e ele me respondeu que, como não estava conseguindo nada na sua área, a gastronomia, decidiu tentar prestar um concurso público, dado que o embasamento teórico que obteria com o curso seria um diferencial. O Pedro me contou que há pouco tentou um mestrado na UFMG, mas eles “decidiram” não aceitar sua proposta. Eu já sabia sobre a mania da bancada da federal em não aceitar alunos que não fossem formados dentro de suas paredes, mas talvez possuísse algo a ver com um tema ruim que ele escolhera.
– E qual era seu tema?
– Alimentação para soropositivos – ele me respondeu, um tanto apressado em não deixar ganchos e fugir para outro assunto.
Confesso que fiquei com uma pulga atrás da orelha. Porque o Pedro se interessaria por aquele assunto? Bom, na hora tirei aquilo da cabeça, pois cheguei à conclusão de que eu devia estar sendo egoísta. É claro que nem todas às pessoas do mundo pensavam somente em si. O Pedro, decerto, se preocupava com pautas mais sociais, incluindo estudos sobre o HIV... Bom, foi o que eu pensei.
Como a ida, a volta para casa não foi envolvia em diálogos. Ele dirigiu silencioso, e eu, também silencioso, mantinha a cabeça recostada no vidro enquanto o sono dava seus primeiros toques. O Pedro me deixou na porta da minha casa. Eu me despedi e desci do carro, já ele, para minha surpresa, ficou parado me observando. A situação era desconcertante até que ele me pediu para ter cuidado e pisou o pé no acelerador. Tão logo sumiu de vista, eu adentrei o portão da minha casa e, meia hora depois, estava deitado em minha cama, soterrado por cobertores, conversando com meu namorado pelo telefone e trocando juras de galanteio.