Durante todo o percurso Abel se manteve recluso em seu leito ao meu lado. Ele conseguia parecer a pessoa mais interessante do mundo sem ao menos falar uma palavra. Eu poderia escrever livros e livros sobre o modo com que ele se deitava ao meu lado, era incrivelmente sensual. Seus cabelos estavam desgrenhados e caídos no rosto, formando uma cortina sobre seus olhos. Enquanto as luzes dos postes na estrada iluminavam sua face e depois deixavam de iluminar, formando um ciclo infinitamente belo.
Era ele que estava ali do meu lado, eu parecia estar dirigindo sem perceber que o percurso estava sendo feito, estava tudo muito automático, minha mente não estava na estrada, eu acho que naquele momento eu poderia me desviar para a Argentina e só perceberia que o fiz quando chegasse lá. Minha mente estava totalmente preenchida pela simples e belo Abel.
–Fê – sussurrou Abel, seus olhos pareciam perdidos agora que ele tirou os cabelos do rosto.
–O quê?
–Eu acho que não quero ir para sua casa. – Ele estava recluso, parecia com medo de dizer aquelas palavras.
–Por quê?
–Ah, esquece– Ele virou o rosto novamente para a janela e assistiu os outros carros sendo deixados para trás pela velocidade que eu havia adquirido agora. Era típico meu fazer aquilo sempre que me sentia sob pressão ou raiva, sempre retardava ou piorava a atividade que fazia, e dessa vez exagerei na velocidade do carro – Não precisa ir tão rápido.
Estávamos na esquina do meu apartamento, era quase impossível algum acidente ocorrer logo em frente a minha casa. A velocidade que eu voava com o carro na rua faziam as pessoas da calçada olhassem para nós. Cheguei rapidamente ao portão, e logo o porteiro clicou no botão na sua cabine e ele se arrastou até o final. Desci a rampa e estacionei na primeira vaga do subsolo.
Tirei as chaves do buraco e bati a porta atrás de mim. Esperei Abel fechar a porta e se por para fora, ele estava tão lento que meu sangue subiu.
–O que foi, Fê? Por que estás tão nervoso?
–Eu? Não estou!
Na verdade estava, qualquer ameaça ao meu plano de demitir aquele filho da puta me fazia nervoso, e o fato de Abel querer sair voando feito uma galinha do meu plano me fazia ficar com ainda mais raiva.
–Tá bom, eu quero ir embora. Me leva embora! – Disse Abel, seus olhos estavam cheios de emoções, um pouco de medo e um pouco de terror também.
–Não. Você vai esperar até amanhã, eu estou cansado!
–Eu quero ir embora agora! – Gritou ele, seu medo parecia ter desaparecido junto ao fato de eu parecer ama-lo.
–Não vai – Gritei retrucando com a mesma rispidez – Eu já deveria ter adivinhado que não se podia fazer trato algum com um adolescente idiota e indeciso.
–Indeciso, eu? – Ele riu, revirou os olhos e olhou para mim – Você tem certeza que eu sou o indeciso? – Aproximou o rosto do meu, ficamos cara a cara, foi uma das experiências mais alucinantes da minha vida vê-lo ali, triste e fora de si – Eu sou o indeciso? Pelo menos eu sei o que quero, e não vivo de passado quinem você, seu “idiota”!
Devo colocar aspas no “idiota”, porque Abel usou da palavra com tamanha crueldade exposta em seu tom de voz.
–Ah, também tem uma coisa, Felipe.
Ele virou-se para mim e empurrou meu peito, fui arremessado para trás, mas não caí. Apenas me levantei e o agarrei pelo dorso, batendo suas costas na porta do carro. Durante minha infância fazíamos muito isso; essas lutinhas infantis, mas agora éramos adultos e essas lutinhas acabavam em sangue.
Eu nunca briguei com ninguém, mas sempre tem uma primeira vez, eu só não podia imaginar que depois de tanto tempo, seria com meu “melhor amigo de infância” Abel.
Ouvi suas costas estralarem a porta do carro. Pensei que houvesse amassado, ou danificado o capô. Mas logo então, quando o empurrei para o lado, tive a certeza que meu carro continuava intacto. Minhas mãos estavam segurando seu rosto, e o forçando para trás. Para que ele não mordesse meus dedos tive que forçar seu crânio contra o carro.
– Você... – Sussurrou Abel– Você deveria se envergonhar de me chamar de indeciso. Eu pelo menos sei muito bem que gosto de homem, e você que não tem coragem nem de se assumir para si próprio? Ou você acha que eu não te vi babando por mim enquanto eu trocava de roupa no seu carro hoje?
Seu rosto estava tão triste, e de repente se transformou em um sorriso gigantesco que me parecia assustador e psicótico.
Nunca havia me sentido daquele modo, quase como se uma parte de mim estivesse mandando o socar, e outra dissesse: “SOQUE NO ROSTO”. Ele então parou novamente, mudando de pólo instantaneamente. Começou a chorar. Eu havia o acertado um murro bem no nariz, esse cujo qual jorrou sangue em minhas mãos.
O larguei, ele caiu no chão como se não tivesse forças para se segurar. Seus cabelos caiam sobre o rosto e o sangue manchava o dourado de vermelho.
– Você vai me deixar aqui? – Gritou.
Continuei andando em direção à porta do elevador. Abel conseguia ser o tipo de garoto que me deixava com nervos saltando (incluindo a do pênis).
–Por que você ficou tão nervoso? Por que é verdade? – Podia ouvi-lo resmungar tão alto quanto as buzinas de carros que tocavam fora do estacionamento vazio e cheio de ecoo.
–Você está demitido, seu pequeno pedaço de merda! – Disse enquanto adentrava na porta e sumia da vista do garoto.
Podia sentir meu rosto queimar de raiva, meus olhos estavam ardendo e meu pescoço parecia tenso como uma barra de ferro. Algo quente se movia no cômodo, senti algo ainda mais quente tocando meu braço. Era Abel.
– Eu não me importo em estar demitido– Agora ele parecia calmo como a porta do elevador que se abriu devagar – Eu só queria que você admitisse. Por favor.
Vê-lo implorar me trazia um calor incrivelmente reconfortante. Abel estava com os lábios sujo de vermelho que saiu de suas narinas, e seu cabelo estava atrás da orelha, alguns fios frontais sujos de sangue e outros limpos.
Seus olhos continuavam brilhantes, e seguramente me faziam penetrar em sua alma. Senti-me paralisado, ali no subsolo vazio, olhando para seus olhos. Um universo parecia se deslocar em sua íris. Profundo como o oceano. Azul como o céu em um dia de verão. Parecia emitir a própria luz calma e relaxante.
Um zumbido crescia em meus ouvidos, tornando os fatos decorrentes desse experimento totalmente obscuros. Eu me sentia totalmente seduzido por ele. O zumbido crescia junto aos fatos que se embaçavam como o mundo lá fora. Estava tudo mergulhado na escuridão, apenas a pele, o rosto, os olhos, os lábios de Abel se emergiam.
O empurrei com a maior força que pude para dentro do elevador, ele foi engolido pela entrada. Suas costas bateram na parede oca com total força, tanta força que o cômodo móvel tremeu no andar. Também mergulhei no elevador, com apenas uma mão dominei o rosto de Abel e o bati contra a madeira. Ele gemeu baixo, parecia uma mistura de terror e amor. Passei a mão no sangue de seus lábios e em seguida o passei pelo rosto inteiro. Gostei de senti-lo nas palmas da minha mão.
O beijei enquanto a porta se fechava atrás de mim. Seus lábios delicados comprimidos contra os meus. Seu rosto tinha o cheiro delicado e ferroso do sangue.