Para Igor, todas as palavras de Pedro eram inadmissíveis. De fato, ele teve mais tempo para se descobrir enquanto gay e isso o possibilitou conhecer melhor o preconceito em todas as suas formas. Inclusive o preconceito velado e imperceptível. Igor sabia que, embora ninguém achasse, ele era efeminado. Ao menos, sentia em seu íntimo que era assim e não havia mal nisso. Igor se sentiu alvo de Pedro, mesmo que não fosse intenção dele atacar. Então, com a decepção que lhe invadia, decidiu dar aquela discussão por encerrada e subiu a escada. Ao chegar no quarto, não notou que havia deixado a luz acesa e, agora, ela estava apagada. Não se importou. Seguiu no escuro até a cômoda, onde pôs o prato e o copo e voltou para o interruptor. Agora com a luz acesa, pôde enxergar melhor. Enxergou até mesmo o que não queria.
Da varanda, veio um homem que calmamente caminhava em direção a Igor, apontado-lhe um revolver. Foi algo tão mágico que todos os seus movimentos foram engessados assim como o seu braço. O oxigênio simplesmente parou de circular em seu cérebro e todas as articulações de seu corpo paralisaram. Isso também era resultado do tipo de abordagem do invasor, que não surgiu de surpresa ou fez qualquer movimento brusco. Ele vestia uma bermuda e uma camiseta azul marinho, na cabeça, uma meia calça velha, que distorcia a visão de seu rosto. Ele continuou mudo, caminhando em direção a Igor, com a arma levantada.
- Venha aqui, venha. – sussurrou o invasor.
- Moço, por favor...
- Shiii! Não quero ouvir um piu. Anda, vem.
Igor caminhou em direção a ele e, quando próximo, o invasor o virou de costa e o abraçou por trás, pondo o cano da arma encostado em sua cabeça, do lado direito.
- O seu amiguinho está lá embaixo?
- Não tem mais ninguém aqui...
- Igor, você acha que eu sou burro?
Eles sussurravam enquanto discutiam. Igor não conseguia raciocinar, mas foi rápido em elaborar uma resposta que protegesse a Pedro. A questão é que ele desconhecia o seu sequestrador e se surpreendeu a ouvir seu nome.
- Não, não...
- Shiii! Você não quer que eu estoure sua cabeça, quer?
- Não, por favor...
- Então não brinque, viadinho. Me diga se o outro está lá embaixo.
- Está, mas ele não vai subir. Ele já está de saída.
- E por quê a chave do carro está ali em cima da cadeira? Você está pedindo pra morrer, não é? Bem, nós vamos esperar por ele. Enquanto isso, aproveite o meu pau aqui roçando por trás. Você não gosta disso, viadinho? Hein?
Pedro, ainda no térreo, digerindo todas aquelas palavras, não tinha ideia de como a sua vida agora era ainda mais complexa. Se aceitar como gay não era nada comparado a imergir nesse mundo cheio de regras, conceitos e preconceitos. E ele sabia que não poderia tropeçar, pois cairia em sua própria cova, pois era ele também gay e alvo de seus próprios ataques. Ainda mais porque tinha um vigilante bem próximo, de quem não queria se afastar por um bom tempo.
Depois de averiguar se seu corpo poderia subir os degraus traquilamente, Pedro fortaleceu os joelhos e acessou a escada. Enquanto se aproximava do quarto, imaginava as próximas palavras que diria. Uma coisa ele tinha em sua mente: queria ser entendido, não poderia ele simplesmente ter seu “amadorismo” ignorado. “Que Igor ao menos considere o meu esforço!”. Sua atuação agora era abrir aquela porta e tentar contornar a situação. Era fato que Pedro se modificava com o tempo – e em muito pouco tempo – ele conseguia se imaginar iniciando diálogos, como o que teria há pouco, e pedindo desculpas. Principalmente para Igor! Já não havia tanto orgulho nele, pois sua mente e seu corpo precisavam de carinho. Sabia que tinha muitos preconceitos, mas tinha a ideia em sua cabeça de que poderia recompensá-lo da forma que Igor desejasse. “Eu posso não mudar muito meu jeito, mas eu posso ser um bom companheiro. Eu sei que posso. Vamos lá, Pedro, você está muito perto!”.
Sua cabeça se ocupava com esses pensamentos quando ele abriu a porta. Ao reerguer o pescoço, uma sombra estranha o chamou a atenção. Ela estava no meio do quarto, entre as duas camas. Por mais que Pedro se esforçasse em enxergar com nitidez, a escuridão não permitia. Foi preciso acender a lâmpada. Em um clique, todos os seus pensamentos se evaporaram e só lhe sobrou o susto. Ainda não poderia sentir medo. Precisava digerir o que sua retina captava e perceber que aquilo se tratava de uma situação perigosa. Mas o invasor não esperaria que ele reagisse.
- Finalmente o filhinho de papai marrentinho chegou! Anda, desce as escadas, ou eu atiro na cara do seu namoradinho.
- Solta... solta ele...
- Desce, bonequinho, desce. E não tente fazer graça, ou adeus Igor.
Pedro não teve muito tempo de olhar para Igor, mas percebeu que ele chorava em silêncio. Não havia tempo para nada. Não se discute com um revolver. Pedro seguiu descendo as escadas na frente, enquanto o invasor e Igor o seguiam logo atrás. Ao fim da escada, Pedro se virou para eles, pois não sabia para onde prosseguir e não tinha recebido ordens ainda.
- Ei, virou por quê?
- Pra onde...
- Cozinha, anda, cozinha. E não tenta gracinhas não, hein? Não estou pra brincadeira.
Pedro continuou caminhando em direção a cozinha e ainda não conseguia raciocinar sobre a situação. Pensava em Igor e na arma naquela mão trêmula. Sentia pequenas e finas agulhas lhe penetrando o peito enquanto caminhava. Encontrava-se em um estado de tensão tão intenso, que poderia ele sentir pequenos choques nas articulações de seus dedos do pés. Quando chegaram a cozinha, o invasor não esperou que Pedro se virasse novamente.
- Anda, lá pra fora. Abre a porta. Para o quintal, vamos!
- Mas está chovendo muito!
- Não estou nem ai, playboy. Abre a porta ou eu vou começar a brincar de verdade. Abre!
- Mas, o gesso dele...
- É melhor você abrir e sair, senão quem vai engessar alguma coisa é você, mas é a cabeça. Anda!
A chuva estava tão forte que, pisando no barro lá fora, poderiam sentir a água na altura de seus calcanhares. Não demorou muito e os três já estavam completamente encharcados. Mas esse não era o maior problema: a água escorria tão rápido em seus rostos que não conseguiam enxergar o quintal com perfeição. A vista embaçava e dificultava os passos.
- Ande até a fossa! – gritou o invasor.
- O que? – gritou Pedro de volta.
- A fossa, vamos. Vá até lá e abra a tampa.
Pedro não queria crer no que sua mente previa, mas não poderia discutir com o invasor. Torceu para que não fosse aquilo o que pensava e seguiu até o buraco. Com muito cuidado, se agachou e arrastou a tampa de madeira da fossa para o lado direito. Imediatamente ele se levantou e se virou para os dois. Seus olhos expressavam um medo que ele nunca sentiu, mas, naquele escuro e com toda aquela água caindo, pouco de sua fisionomia poderia ser vista. De fato, sua mente não mentira: o invasor o obrigaria a fazer o que não queria.
- Entre no buraco!
- Não.
- Entre, caralho, quer morrer? – berrou ainda mais alto.
Não restou saída. Ele se agachou e, com o apoio da mão direita, se projetou para dentro da fossa, caindo de pé e sem se machucar. Ali, dentro daquele buraco, só conseguia ver um pequeno feche de luz, mas, ao olhar para cima, sentia seus olhos invadidos pela água e pela lama, que, aliás, começava a invadir o buraco. A chuva começava a escorrer para dentro da fossa e, em poucos segundos, seus tornozelos já estavam cobertos de lama, só que muito mais pastosa que a da superfície. Era como estar numa piscina vazia, profunda e estreita. Não conseguiu mais ver Igor e o sequestrador, mas seu coração já não conseguia mais acompanhar a velocidade com que o medo lhe penetrava a cabeça.
Na superfície, o invasor largou Igor e se afastou.
- Vamos, agora é sua vez!
- Mas como eu vou pular assim? – perguntou aos prantos.
- Vai, porra. Quer morrer? – berrou.
Quando Igor começou a surgir para Pedro, ele se antecipou.
- Vem, Igor, eu te seguro!
- Pedro, eu estou com medo...
- Venha, não tenha medo, eu seguro você.
Igor se agachou e tentou sentar na borda da fossa. Com as pernas já dentro do buraco, Pedro o tocou nos joelhos, sinalizando que ele poderia se projetar para dentro. Aos poucos, Pedro o agarrava pela cintura e o pousava no solo. A lama já estava na altura das panturrilhas. Mas essa não era a maior preocupação. Eles olharam para o céu, que não dava uma trégua quanto a chuva, e pensavam nos próximos segundos. O céu se enegreceu abruptamente: era a tampa sendo posta sobre a fossa. A partir daquele momento, eles já não sabiam o que fazer. Igor se abraçou em Pedro e escondeu seu rosto. Ele simplesmente não conseguia parar de chorar e temia pela própria vida.
- Calma, Igor, calma, tudo vai ficar bem.
- E se ele voltar só pra atirar na gente? Depois que ele roubar tudo o que quiser, ele pode voltar e atirar. Não vamos conseguir fugir. Pedro, eu estou com medo, estou com medo. Não quero morrer!
- Não vamos morrer, fique calmo, meu amor, fique calmo!
A lama não escorria mais como antes, então não poderia (e nem deveria) ser a maior preocupação. Mas Pedro sabia que o medo de Igor tinha um fundamento muito forte. Era realmente um grande perigo continuar na fossa.
- Preste atenção. Eu vou tentar levantar a tampa e sair daqui.
- Como? Você não vai conseguir se erguer. A lama não vai permitir.
- Você vai ter que me ajudar.
- Como com o braço quebrado?
- Você vai ter que deixar eu pisar no seu colo. No seu joelho.
- Como assim?
- Finja que está sentado em uma cadeira. Eu vou pisar no seu joelho e me erguer. Será rápido, não vai ter tempo de doer.
- Meu medo não é esse. Meu medo é você conseguir subir, mas não ter força pra continuar subindo, entende? Se você não conseguir se firmar lá em cima, você escorrega aqui pra dentro e cai em cima de mim.
- Mas a gente tem que tentar! Tenta se espremer o máximo que puder ai no canto. Eu vou pular e tentar ver se ele pôs alguma coisa sobre a tábua e ver se dá pra arrastá-la.
Com um pequeno salto e com as mãos erguidas, Pedro pode constatar que para retirar a tampa bastava empurrá-la para cima. O problema de fato era sair do buraco. Com mais alguns pulos, suas mãos conseguiram tirar a tampa de cima deles e logo a água voltou a invadir o buraco. Não demorou muito e o nível da lama já chegava ao joelho.
- Consegui! – disse Pedro otimista.
Mas ao se virar para Igor, percebeu que ele ainda estava espremido no canto e se encolhendo com os braços. Pedro o puxou com delicadeza e o abraçou. Finalmente Pedro conseguiu exercer a sua função: ele protegeu o garoto.
- Eu não vou deixar que nada aconteça com a gente. Ouviu? Confie em mim. Eu vou voltar e te tirar daqui. Me prometa que você vai ser aquele Igor chato que me tira o sossego. Prometa!
- Pedro...
- Não chore, não chore. Me prometa. Me prometa que você vai ser o mesmo cara por quem eu me apaixonei. Prometa!
- Prometo.
- Eu não ouvi.
- Prometo!
Eles ainda estavam abraçados enquanto conversavam. Após a promessa, Pedro o beijou na testa e o afastou para o canto mais uma vez.
- Me dê apoio. Ponha o joelho.
Igor se encostou no canto e abaixou o corpo, ficando quase agachado. A lama que escorria de cima para baixo tomou-lhe todo o peito e a cabeça. O barro úmido descia em seu cabelo, passava pelo pescoço e corria pelo peito. O gesso do braço já poderia ser dado como inutilizável naquele momento. Pedro pôs o pé em cima do joelho de Igor, mas não forçou a subida.
- Quando eu subir, você imediatamente fica de pé e se afasta o máximo que puder, pois se eu voltar, não caio em cima de você, entendeu?
- Sim!
- No três: um, dois, três...
Pedro conseguiu emergir até a altura do peito, mas não havia nada em que se agarrar na superfície. Ele tentou fincar os dedos no barro, mas com a chuva escorrendo para dentro do buraco, impossibilitava-o de manter a força nas mãos. Demorou apenas seis segundos. Seu corpo logo despencou e, inevitavelmente ele esbarrou em Igor, imprensando-o e machucando-o.
- Você está bem? – berrou após se virar de frente.
- Estou. – mentiu. – Você precisa fazer isso de novo, precisa pôr mais força.
- Eu sei. Vem, põe o joelho de novo!
Pedro se apoiou na perna de Igor e, após a contagem, se ergueu para fora mais uma vez. Dessa vez ele fincou os dedos, mas continuou movimentando os punhos, como se estivesse nadando. Ou seja, ele fincava a mão direita e se dava apoio para fincar a mão esquerda, mas assim que a fincava, retirava a mão direita e, esticando o braço, tentava fincá-la mais longe. Com essa tática, ele rapidamente conseguiu pôr o quadril para fora da fossa e se levantou.
- Igor, segura as pontas!
Pedro saiu em disparada até a porta da cozinha, de onde vieram, mas ela estava trancada, então, correu em busca de outra porta ou janela. Igor, sujo, amedrontado e sofrendo de dores, continuou na fossa, com a chuva que ainda caía com força, lavando o seu corpo e impedindo-o de enxergar o céu. Seu medo não o permitiu perceber, mas, ao abrir a tampa da fossa, em menos de um minuto a lama que o rodeava já chegava a altura do meio de suas coxas. Quanto tempo Pedro demoraria para voltar?
- Pedro! Você está aí? Ponha a tampa... Pedro?
Igor se preocupava mais quanto ao seu braço e ao frio insuportável ao invés do nível da lama, que gradativamente se elevava. As dores eram diversas, desde a pancada que sofrera devido a queda de Pedro, até o próprio frio e os ombros, que sofriam pela forma indevida que Igor erguia o braço fraturado. E ainda assim também imaginava a todo o momento que o invasor poderia voltar e lhe disparar balas. Olhar para cima era um tormento que espremia sua alma. O medo se intensificou de tal forma que o ar não lhe chegava mais aos pulmões; suas pernas fraquejavam, fazendo-o afundar um pouco mais naquele líquido barrento. Mesmo assim ele ainda conseguia ser racional, pois se obrigou a ter calma e monitorou a sua respiração.
Já Pedro, que procurava um meio de entrar no casarão e conseguir pedir socorro, tentou não fazer barulho. Então, ao perceber a porta da cozinha trancada, não insistiu em forçá-la. Procurou uma janela que estivesse aberta. “Maldita hora que eu tranquei essas janelas!”. Imediatamente pensou em ir para a rua e usar o telefone público mais próximo, porém ele temia ser visto atravessando o jardim. Seria alvo fácil do invasor, que provavelmente se encontrava no quarto, já que ele era o único cômodo que guardava objetos de valor. Se ele o visse pela varanda, poderia feri-lo ou até matá-lo. “Que merda! Eu não posso gritar por ajuda, não posso sair do casarão... O que eu faço?”. Ir para rua era a solução mais segura, mas para Pedro era a mais arriscada. Ou seja, tudo se inverteu. Afinal, confrontar o invasor era demasiadamente perigoso, mas não para Pedro.
Então, seguindo seus instintos, procurou uma janela ou porta. Todas trancadas. Nessa busca, Pedro acabou dando a volta no casarão, chegando à porta principal, logo abaixo da varanda do seu quarto. Ao girar a maçaneta, abriu-se a porta. “Claro, foi a única que eu ainda não tinha fechado!”. Com passos leves, caminhou até a dispensa atrás da cozinha, onde algumas ferramentas dos operários eram guardadas. Contra o revolver, Pedro se armou com um pé-de-cabra e subiu a escada. O barulho denunciava que o criminoso de fato estava no quarto. Aparentemente ele procurava algo nas gavetas. Naquele momento, Pedro não sentia nada, dor, medo, nervosismo ou qualquer reação humana natural para aquela situação. Seu objetivo era claro, ele tinha que abater o invasor. O esperou na porta do quarto, com a barra de metal em punhos e erguida acima de sua cabeça. Só nesse momento em que ele parou, conseguiu se sentir trêmulo e com fortes batidas no coração.
Mas ele não teria tempo de sentir medo, pois não demorou muito e uma sombra atravessou a porta do quarto. Não foi preciso se esforçar. Bastou descer os braços e atingiu as costas do criminoso. Este, por sua vez, segurava uma mochila, a de Igor, e, pelo ruído ao chegar ao chão, carregava muitos objetos. Mas ele ainda estava acordado. Em sua queda, se estabeleceu “de quatro”. Pedro não esperou que ele berrasse mais uma vez de dor e o chutou no rosto, deitando-o de vez no chão. Agora de frente para ele, pode perceber um volume no bolso de sua bermuda. Não restavam dúvidas de que era o revolver. Logo Pedro se inclinou e lhe tomou a arma. Estava ele rendido!
Pedro agora poderia sentir medo à vontade e, de fato, seu corpo recebeu uma grande carga de medo. Tanto que seus ombros se endureceram e murcharam, a respiração ficou mais intensa e a força com que o ar entrava em suas narinas ardia todo o seu rosto. Foi preciso começar a respirar pela boca. Tudo isso aconteceu em segundos. Agora ele precisava telefonar. Com o pé direito, pisou na alça da mochila e a puxou para perto. Em nenhum momento ele deixou de apontar o revolver para aquele corpo desacordado. Continuou a empunhar a arma com a mão esquerda e se agachou. Abriu o zíper da mochila e procurou algum telefone, pois obviamente eles seriam levados. Na bolsa se encontrava o computador, um par de tênis e algumas peças de roupa. “Achei!”. Levantou-se e telefonou para a polícia.
- Minha casa foi invadida...
Pedro derramava lágrimas de desespero e sua mão esquerda tremia com o peso do revolver.
- Alô, pai?
- Pedro...
Foi indescritível. Ouvir a voz de seu pai, o grande amor de sua vida, o fez chorar ainda mais, então, as palavras se tornaram difíceis e se expressar parecia um desafio ainda maior.
- Pai... Pai... Eu...
- Pedro, o que houve? – perguntou nervoso.
- Fomos assaltados. Tem um homem aqui no chão... Eu acho que eu matei ele.
- Pedro... O que?
- Eu matei!
- Pedro, eu estou indo para ai. Você precisa de alguma coisa? Quer que eu leve alguma coisa? Cadê o Igor?
- O Igor? Porra, o Igor!
- O que aconteceu com o Igor?
- Eu preciso tirar ele de lá. Tchau!
Pedro então enfiou o telefone dentro da cueca e desceu os degraus com uma tremenda pressa. Atravessou a cozinha e abriu a porta. Mas durante todo esse tempo em que ele passou fora da fossa, Igor sentiu o maior medo de toda a sua vida. Cerca de cinco minutos após a partida de Pedro, a lama já alcançava a cintura de Igor. A chuva simplesmente não parava de cair e nem mesmo diminuía sua intensidade. Foi só a partir desse momento que Igor percebeu que poderia morrer de outro jeito. Era insuportável olhar para cima, mas olhar para baixo se tornou pior. A espessura da lama o impedia de se movimentar com facilidade. Se o nível da lama continuasse subindo, como ele flutuaria se o líquido era pastoso e o braço direito estava imobilizado? Para piorar a situação, Igor não teve coragem de gritar por socorro, pois poderia chamar a intenção do invasor e Pedro poderia ser descoberto.
Passaram mais alguns minutos e o frio congelava sua alma. O desespero tomava conta de sua razão, enquanto a lama se acumulava mais e mais. Embora já estivesse molhado, a água suja que o envolvia poderia penetrar o gesso e infeccionar os cortes que existiam ali por baixo. Igor então se esforçou para manter o braço erguido. Era um movimento totalmente não recomendado para o seu braço, mas não havia escolha. Uma dor aguda lhe atacou o ombro direito e as lágrimas já não tinham forças para aquecê-lo. Igor estava completamente perdido, esperando apenas pelo momento em que pudesse gritar. Com a lama que caía da superfície, veio com ela um galho seco de algum arbusto. Ele caiu dentro da fossa e atingiu o ombro direito, o mesmo que estava erguido. Sem querer, Igor berrou pela dor. O galho continuou a incomodá-lo e a ferida recém causada ardia com as fortes gotas de chuva.
Nesse momento, a lama que o envolvia já chegava ao peito. Não havia mais opções para Igor. Ou ele chamava ajuda, ou seria esquecido.
- SOCORRO, ALGUÉM. ALGUÉM, POR FAVOR... PEDRO, PEDRO, PEDRO...EU VOU MORRER!
Mas no momento em que gritou, Pedro ainda telefonava para a polícia. O nível da lama subia e seu choro se tornava cada vez mais desesperador. Igor não conseguia mais sentir dor, frio, refletir sobre qualquer coisa ou agir humanamente. Suas pernas se agitavam no fundo e sua mão esquerda tentava se fincar na superfície. Mas era inútil, pois não conseguiria suportar seu próprio peso apenas com uma mão. Quanto tempo mais Pedro demoraria?
- EU NÃO QUERO MORRER, EU NÃO QUERO MORRER, EU NÃO QUERO, NÃO QUERO...
Finalmente Pedro abria a porta que acessava o quintal. Correu na chuva até alcançar a fossa. A lama já cobria os ombros de Igor e Pedro pode então perceber que, por muito pouco, ele não morreu afogado.
- Igor, Igor, consegue me ver? – gritou Pedro agachado, pondo o revolver em cima da tampa da fossa.
- PEDRO, ME TIRA DAQUI, ME TIRA DAQUI, EU NÃO QUERO MORRER, EU NÃO QUERO!
- Calma, eu vou tirar...
- ME TIRA, ME TIRA...
- Fique calmo. Vamos, agarre a minha mão. – disse ele com o braço direito esticado. – Isso, segure a minha mão. Está firme?
- Não vou conseguir. Não vou ter força.
- Segure minha mão.
Ao sentir toda a palma da mão de Igor, Pedro se esticou um pouco mais e agarrou o seu pulso. Em um só movimento, ele puxou Igor, que sofria uma dor intensa em seu braço, pois todo o peso de seu corpo aumentou devido a influência do barro molhado, além do mais, ele suportava todo o corpo por apenas o pulso. Mas não havia outro jeito. Nunca Igor tinha passado por algo tão traumático. Aos poucos, seu corpo era retirado do buraco e ele já conseguia prestar atenção as outras dores, como o ombro, o frio, os pés e tantos outros sintomas. A medida em que Pedro o puxava, esticava ainda mais o seu braço e o agarrava por outros lugares, como o antebraço e a gola da camisa. Igor finalmente estava salvo! Pedro o sentou no chão, pois ele estava esgotado, não havia mais força ou espírito que reanimasse Igor.
- Você precisa se levantar, Igor... Igor, me ouve?
Ele conseguia emitir alguns ruídos com a boca, mas não conseguiria expressar palavras.
- Eu preciso subir e trazer o ladrão pra baixo. Não sei se ele morreu. A gente precisa vigiá-lo até chegar alguém. Eu vou entrar.
Igor continuou na chuva, sentado no barro, enquanto Pedro correu e adentrou o casarão. Subiu a escada e encontrou o invasor ainda deitado, mas ele já havia acordado. Isso causou um grande susto em Pedro, pois quando chegou e olhou seu rosto, enxergou naquela escuridão dois pequenos brilhos. Eram os olhos dele. Pedro se agachou e o agarrou pelos pulsos, arrastou pelo corredor e desceu os degraus. Não havia pena para ele! Suas costas e pernas sofriam o forte impacto de cada degrau e Pedro tinha pressa em chegar ao térreo. O arrastou ainda mais rápido quando o solo ficou plano e o soltou de vez no chão da cozinha, deixando-o chocar a cabeça no chão. Igor, ainda um pouco desorientado, continuava na chuva, sentado na lama.
- Igor, o que você está fazendo ai? Venha, não fique assim... Venha, venha!
Pedro enfiou suas mãos por baixo das axilas de Igor e o puxou para cima. Pôs, com um pouco de sacrifício, o braço esquerdo dele sobre o seu pescoço e o abraçou pela cintura. “Droga, deixei a arma perto da fossa!”.
- Igor, fique aqui, me espere!
Ele correu até o buraco e buscou a arma, pondo-a também dentro de sua cueca, porém apenas o cano. Voltou-se para Igor, que o recebeu de volta com um gesto totalmente irracional e infantil. Ao ver Pedro perto, Igor abriu os braços e o abraçou.
- Me tira daqui, Pedro, por favor, me tira daqui, eu não aguento mais esse frio.
As palavras de Igor eram um sopro, que misturadas as lágrimas formavam a mais triste súplica. Pedro nunca se sentiu tão impotente quanto naquele momento. Fingindo abraçá-lo, ele o agarrou pela cintura e o arrastou delicadamente até a cozinha, onde o sentou em um dos bancos e encostou a cabeça dele na borda da pia. Naquele momento, as sirenes da polícia já acordavam toda a rua. Pedro respirava aliviado, mas ainda precisava abrir o portão para as viaturas. Ele então se agachou diante de Igor e fez um pedido.
- Você vai ter que fazer uma forcinha agora, Igor. Tome, segure.
- Revolver?
- Segure firme. Eu vou até o portão antes que eles o derrubem.
- O que eu faço?
- Segure, vigie o ladrão.
- Mas e se ele acordar?
- Atire!
- Pedro...
- Segure firme e não tenha medo.
Pedro saiu em disparada até o jardim, enquanto Igor observava aquele corpo caído no chão da cozinha. O invasor estava bem acordado, esperando o momento certo para fugir e eis que ele surgiu. Com a saída de Pedro, o homem se ergueu do chão com muita dificuldade devido a pancada nas costas e o sangue que escorria de seu nariz o fazia engasgar. Mas ele não poderia perder aquela oportunidade preciosa. Igor se assustou, mas não tinha forças nem mesmo para reagir sobre isso.
- Fique ai... Eu atiro, atiro de verdade...
- Se tiver bala, você pode atirar o quanto quiser.
Ele então ficou agachado no chão alguns segundos. Em seguida, pôs as mãos sobre os joelhos, de onde tirou forças para se erguer e andar até a porta da cozinha. Igor apertou o gatilho, mas os cliques confirmavam que não havia balas ali. O homem ganhou o quintal e sumiu. “A policia está bem aí, vão pegar esse cara, vão pegar!”. Mas não pegariam.
Pedro em agonia, abriu a porta principal do casarão com rapidez e saiu correndo em direção ao portão. Os policiais, contudo, desconfiaram da atitude do rapaz e apontaram-lhe as armas. Dois homens berravam ordens para que Pedro parasse, obrigando-o a levantar as mãos.
- Eu que liguei pra vocês, eu que liguei...
- Tem mais alguém com você?
- Tem, tem...
Pedro saiu da cozinha e, quando atravessava o salão principal, Breno surgiu. Com um olhar preocupado e um guarda-chuva na mão, ele abordou o rapaz e o questionou.
- O que teve aqui? Seu pai me ligou...
- O ladrão invadiu. Eu vou subir e pegar um cobertor para o Igor.
- Onde ele está?
- Na cozinha.
- E o marginal? Pegaram ele?
- Fugiu. Eu deixei o Igor com ele, mas o cara fugiu.
- Deixou com o Igor? Como assim?
- Eu bati nele e ele desmaiou. Deixei Igor com a pistola pra abrir o portão para os policias. Mas o cara fugiu... Eu vou buscar um cobertor!
Os dois policiais que entraram no casarão realizavam a busca no quintal, que era extenso e estava mal iluminado. Igor ficou sozinho na cozinha, enquanto Pedro procurava uma toalha e um cobertor. Breno, por sua vez, apressava os passos para ver o filho e o encontrou chorando, sentado em um banco.
- Igor?
- Pai? Pai... Me ajuda!
- Ajudar em que?
- Tenho frio.
- Você está todo sujo. Onde você estava?
- No quintal. Eu...
- Fazendo o que?
- Eu fiquei dentro da fossa... O ladrão me colocou lá.
- Não precisa chorar mais, Igor. Tudo já acabou.
- Meu braço dói...
- Igor, tudo já acabou. Estamos todos tensos, não queira chamar atenção!
- Mas meu braço dói...
- Ninguém vai se importar com seu braço agora. Tem coisa mais importante pra se preocupar. Aliás, por que você deixou o bandido fugir? Por que você não atirou nele?
- Não tinha bala.
- Mas o Pedro não bateu nele? Por que você não bateu também?
- Como eu faria isso? Eu estava com frio!
- E frio impede alguém de alguma coisa? O cara estava aqui todo arrebentado e você só estava um pouco sujo de lama.
- Eu quase morri afogado.
- Afogado onde?
- Na fossa... Eu... Eu estava na fossa.
- Mas você é muito mole mesmo, não é, Igor? Agora o ladrão fugiu por sua culpa. Puta que pariu!
- Eu não tive culpa...
- Teve sim. Você estava ai se borrando de medo, botando a culpa no frio. O Pedro bateu no cara e você fez o que?
Pedro caminhava para a cozinha com uma toalha e um cobertor, enquanto Breno ainda culpava o filho pela fuga do criminoso.
- O prejuízo que aquele filho da puta nos deu... Você sabe bem disso e deixa o corno fugir. Por que você não agarrou ele, Igor? Por quê? Você não faz nada que preste, também. É todo desastrado. Por que você não é como o Pedro? Por quê?
- Cala a boca, Breno! – berrou Pedro. – Pare de me comparar com o Igor, pois nós somos iguais!
Pedro já não suportava se sentir inferior a Igor. Mas a verdade é que ele próprio se inferiorizava. A questão é que Igor conseguia, apesar de tudo o que poderia sofrer, se doar a vida plena, se permitir sentir a si próprio e deixar que o mundo o invadisse. Pedro sabia que nada do que ele fizesse (ou fez no passado) seria tão corajoso quanto os passos de Igor dados para lugar algum, mas com destinos certos. Mas muito mais angustiante que isso era ver Igor sendo inferiorizado. Tudo isso se explica por uma simples afirmação: Igor era o ídolo de Pedro. Não há nada pior para um fã que ver seu ídolo sendo subjugado. Igor, de fato, era “Grande”, como Silveira costumava dizer e Pedro gostava disso e desejava que ele continuasse assim. Sabia Pedro que dessa maneira cresceria junto com ele.
- Cala a boca, Breno! – berrou Pedro. – Pare de me comparar com o Igor, pois nós somos iguais! Você sabe que seu filho quase morreu soterrado de lama? Você não está vendo que ele está quase morrendo de frio?
Pedro atravessou a cozinha, passando por Breno, e se ajoelhou diante de Igor. Ele pôs o cobertor em cima da pia e começou a secar aquele corpo frio com a toalha. Começou pelos dedos dos pés, que estavam duros e roxos, assim como os dedos das mãos. Com delicadeza, Pedro foi passando a toalha até chegar ao rosto de Igor, onde demorou mais tempo, secando e limpando seus lábios.
- Como está o braço?
- Não sei...
- Está sentindo alguma coisa?
- Frio, Pedro...
Breno assistia a tudo calado e não entendia como pôde não ver a gravidade da situação. Arrependeu-se um pouco pela forma com que tratou o filho, mas dando um pouco mais de atenção àquela situação, enxergou algo além. Ele ainda não tinha entendido o que Pedro queria dizer com “nós somos iguais!”, mas com o tempo ele conseguia apreender aquela afirmação, embora aquilo fosse tão absurdo que não acreditasse com confiança em si mesmo. Naquele momento, mais dois policiais adentraram a cozinha e perguntaram a Breno onde estavam os seus companheiros.
- Estão lá no quintal.
Pedro levantou Igor do banco e o envolveu com o cobertor, abraçando-o no final para aquecê-lo. Deram alguns passos, mas Igor tinha dificuldade para andar.
- Vamos, Igor...
- É melhor eu descansar um pouco.
- Quer que eu te carregue?
Mas um dos policiais o interrompeu para averiguar a história que seria contada sobre a situação, enquanto o outro agente seguiu para o quintal.
- Não, agora vocês têm que falar o que aconteceu...
- Agora não!
- Como agora não?
- O senhor não está vendo que ele está passando mau?
- Eu estou vendo, ainda não fiquei cego. – respondeu o policial com rispidez.
- Pois então... Agora não!
- Ele só quer saber o que aconteceu pra poder investigar melhor. – respondeu Breno irritado.
- Investigar melhor o que? Um cara entrou aqui, nos ameaçou com uma arma e fugiu. O que mais você quer saber?
- Olhe, rapaz, você precisa colaborar e precisa respeitar a autoridade!
- Eu não preciso respeitar nada. Respeite o senhor, antes de tudo. Estamos exaustos e quase morremos. Um cara entrou aqui com uma arma pra roubar e conseguiu fugir. Ao invés de estar aqui perdendo tempo, vá caçar o bandido. Não é por isso que o senhor é pago?
- Eu já disse pra você me respeitar e colaborar, não preciso que você me ensine a trabalhar. Desacato é crime!
- Me leve preso e me interrogue o quanto quiser. Mas agora não! Você quer posar de bom policial? Então vamos ver o que você vai dizer quando chegarem repórteres e eu disser pra eles que, antes do malandro fugir, vocês se confundiram duas vezes sobre quem era o bandido e deixaram ele escapar. Eu vou subir com ele e vamos nos limpar, depois vamos ao hospital ver esse gesso e só depois eu procuro a policia.
Pedro se inclinou um pouco e tomou impulso para pôr Igor em seus braços.
- Pedro, meu braço...
- Desculpe, amor!
O policial olhou para os dois, franziu a testa e soltou uma leve risada.
- Entendi tudo já. Não se preocupe não. Somos machos, vamos atrás do malandro!
E saiu para o quintal. Sozinhos, Pedro olhou para Breno um instante e, com fúria, o provocou.
- Tudo vem em primeiro lugar, menos o Igor.
- Vocês são iguais, então?
- Somos gays, se é isso o que você quer dizer.
- Meu filho não é gay!
- É tão gay quanto eu. No fim, seu filho é como eu sou, como você sempre quis. Não era isso o que você dizia enquanto batia nele? “Por que você não é como o Pedro?”. Ele é e é ainda mais homem do que eu.
- Então esse tempo todo vocês estavam aqui fazendo a sujeira toda que faziam? Eu devia saber que você era bicha, Pedro. Eu devia saber. Mas Igor não, Igor é meu filho! Eu o criei bem!
- Pedro... Meu braço dói... Me põe no chão... – disse Igor com lágrimas nos olhos.
Sem demora, Pedro o pôs de pé e o segurou pelos ombros.
- Você consegue subir as escadas?
- Deixe que eu levo o meu filho... – disse Breno se aproximando.
Quando o pai de Igor se esticou para puxá-lo, Pedro o repeliu com um tapa em seu antebraço.
- NÃO!
- Olhe aqui, Pedro, não vou deixar você nem mais um segundo perto dele...
- Eu é que não vou deixar você com ele, seu filho da puta. Você está pensando o que? Você bate nele e agora quer vir posar de bom pai? Aqui não, Breno... Aqui não.
- Cale a boca, Pedro, você não tem moral pra falar nada. Você não me conhece, você é só um moleque e ainda é viado. Cale a boca, senão eu mesmo calo.
- Você vai me bater também, Breno? Então bata, bata mesmo, eu quero só ver!
Porém, uma outra voz se intrometeu naquela discussão e instantaneamente os parou.
- Você vai bater no meu filho, Breno?
Silveira estava na porta da cozinha, com a parcimônia que lhe era natural, mas com uma voz autoritária nunca imaginada para aquele homem. Breno e Pedro o olharam imediatamente, assim que o ouviram. Breno inflou-se de oxigênio e preparou uma resposta.
- Eu não bateria se não fosse preciso, mas ele está agarrado ao Igor e eu não quero isso.
- Você vai bater no meu filho, Breno?
- Seu filho é gay. Você sabia disso?
Silveira olhou o filho imediatamente. Pedro, pela primeira vez, sentiu medo desde que aquela discussão se iniciou. Ele olhou para o pai e seu pulmão murchou. Em compensação, sua boca se encheu de saliva e seus olhos tremularam. Silveira, por sua vez olhou para o filho e sentiu uma agonia. Olhou para Igor, que escondia seu rosto no peito de Pedro e, depois, voltou seus olhos para o rosto do filho. Naquele momento ele apreendeu toda a situação e, apesar de reagir muito melhor que Breno, Silveira também pareceu decepcionado. Foi um instante e, embora o golpe tivesse sido intenso, Silveira não perdeu o foco da discussão.
- Não sabia e não interessa. No meu filho você não bate. No meu filho ninguém bate!
- Mas do meu filho cuido eu. Vem Igor. Venha aqui. – disse esticando o braço mais uma vez.
- Não, Breno! – respondeu Pedro, que abraçou Igor com mais força.
- Pedro, solte o meu filho!
- O Igor fica, Breno. Quem sai é você! – disse Silveira ainda parado no mesmo lugar.
- Cuide do seu filho e eu cuido do meu.
Silveira caminhou até Pedro e tocou Igor no ombro.
- Igor, é o seu tio. Você está me ouvindo?
Ainda com o rosto escondido no peito de Pedro, Igor agitou a cabeça positivamente, com trejeitos infantilizados.
- Você quer ir com seu pai? – agitou a cabeça mais uma vez. - Viu? Ele não quer e você não vai obrigá-lo. Agora saia, pois essa casa é minha!
Nada conseguiria descrever a fúria que se instalava no peito de Breno. Ele olhou para o filho mais uma vez e instintivamente respirava fundo, para se manter controlado. Não sabia quem odiava mais: se a Pedro, Silveira ou Igor.
- Sua mãe vai morrer de tristeza quando souber, Igor.
- Breno, saia. Eu já mandei, saia da minha casa agora!
Naquele momento, Breno sentiu vergonha de si mesmo e se retirou com passos rápidos. Pedro continuou de cabeça baixa e abraçado a Igor. Faltou-lhe coragem para encarar o pai, então continuou calado.
- Pedro, suba com ele e se limpem. Daqui a pouco nós vamos embora.
- Precisamos ver um médico. – disse Pedro ainda de cabeça baixa.
- Ele fez alguma coisa com vocês? – perguntou Silveira espantado.
- Não. Mas o gesso...
- Ah, sim, sim, entendi. Vá, suba, eu cuido do resto.
Os joelhos de Pedro congelaram e não havia mais forças em seus músculos para caminhar. Tudo fruto do medo. Mas lembrou-se de Igor, quando este, ainda com jeito infantil, abraçou-se mais a Pedro e confessou.
- Pedro, estou com frio... Me ajuda...
- Suba, Pedro. Cuide dele!
Com cuidado, Pedro abraçou Igor pela cintura e juntos saíram da cozinha. No quarto, Pedro despiu Igor por completo e terminou de enxugá-lo, o vestiu em uma roupa de inverno – calça de moletom e camisa de tecido espesso – pôs meias e o deitou na cama. Nada diziam, não havia força neles para isso. Se olhavam às vezes. Mas não seria necessário dizer nada, pois já tinham ouvido coisas demais naquela noite. Agora com muita rapidez, Pedro vestiu uma calça, uma camisa e calçou tênis. Não soube precisar se deveriam descer a escada, por isso continuou no quarto. Já vestido, ele se aproximou de Igor e se sentou na cama em que ele estava deitado. Igor dormia um sono leve e parecia mais calmo. Pedro se sentiu invadido por aquela calmaria e, em seu coração, percebeu que as coisas agora de fato mudariam. Não sabia o que aconteceria, mas teve certeza que não lhe faltaria amor. Embora triste, se sentiu tão seguro de que seus próximos dias seriam melhores, que se deixou levar pelo ar que saía do nariz de Igor. Ele então resolveu acariciar o cabelo ainda úmido dele, “tudo vai ficar bem, não tenha mais medo. Eu vou te proteger agora!”. Igor abriu os olhos e sorriu para Pedro.
- Chegou a hora...
- Hora? De que?
- De você cumprir a sua obrigação.
Pedro estava sentado a beira da cama, enquanto Igor, deitado e com o rosto um pouco escondido pelo travesseiro, parecia feliz como nunca se viu.
- Que obrigação?
- Eu estou cansado de ser forte, Pedro. Eu quero ser fraco.
- Você quer ser fraco? – Pedro riu um pouco. – Mas você não pode ser. Você é o “Grande”, lembra?
- Mas já está na hora de seu pai chamar você de grande e não eu.
- Não sei, Igor... – Pedro desfez o sorriso e abaixou a cabeça. – Meu pai deve estar zangado agora.
- Vamos combinar. Você é o Grande, agora.
- Por que isso?
- Porque o tempo de eu ser forte por mim mesmo já passou. Estou cansado. Agora eu tenho você. Será que eu estaria sendo egoísta se eu te pedisse para ser forte por mim? É que eu sempre quis, desde que me apaixonei por você, me sentir protegido enquanto me abraço ao seu peito e sinto um aperto forte em minhas costas, quando você pressiona os seus braços contra mim.
- Você quer que eu te proteja?
- Eu aposto que era isso o que você estava pensando enquanto me olhava cochilar, não era?
Pedro sentiu seus pulmões inflarem com o ar, seu peito subiu e sua boca se abriu.
- Sim, eu estava mesmo pensando nisso. Mas como você descobriu?
- Não sei... – disse Igor sorrindo.
Igor voltou a fechar os olhos e se espremeu contra o travesseiro.
- Continua me fazendo cafuné. Estava tão bom.
Pedro continuou espantado com as palavras dele. Como ele conseguiu descobrir os seus pensamentos? Bem, não importava. Pedro continuou lhe fazendo afagos e vigiando o sono de Igor. Em poucos minutos, Silveira subiu os degraus e chegou ao quarto. Quando Pedro percebeu que o pai estava na porta, se assustou. Instintivamente pensou em parar de acariciar o cabelo de Igor, mas, não soube porque, ele não parou. Silveira se aproximou deles e olhou para Igor.
- Como ele está?
- Parece bem. Dormiu...
- Ele reclamou do braço?
- Não mais.
- Igor tem sido muito corajoso.
- Como assim?
- Nada...
- Pai, eu não queria que o senhor pensasse que eu...
- Eu não vou pensar nada, Pedro. E você também não dirá nada agora! – disse com extrema rigidez.
- E quando direi?
- Depois. Agora não. Venha, pegue ele no braço e vamos ao hospital.
- E o casarão vai ficar aberto, com esse monte de gente lá embaixo?
- Seu tio chegou. Está com os policiais. Eles pegaram o cara, mas eu ainda não o vi. Mas também não me importa isso agora. Vamos, pegue o Igor... Ah, mas antes... Você sabe onde está o cartão do plano de saúde dele?
- Sei.
- Então pegue e vamos!
No carro, Silveira não olhava para o filho pelo retrovisor. Evitou-o ao máximo. No banco de trás, Pedro continuava a fazer carinho em Igor, enquanto sentia-se triste pela atitude do pai. Ele não entendia como Silveira poderia ser tão compreensivo para com Igor e se tornar apático para consigo. Eles seguiram para um hospital de emergência e Igor teve apenas que trocar o gesso, pois nada de mais grave lhe havia acontecido. Foram para casa, em seguida. Pedro ainda prestava cuidados para Igor, o ajudou a tomar banho e a se vestir com uma de suas roupas. Mas ele já estava melhor, sua aparência denunciava que ainda havia forças e ele já conseguia sorrir. Paula lhe servia uma sopa, quando Silveira entrou na cozinha e encontrou todos sentados a mesa. Seus olhos estavam vermelhos, como se tivesse chorado. Ainda sem olhar para o filho, pois não tinha essa coragem, o chamou para finalmente conversarem.
- Pedro, venha para o jardim.
Silveira nem mesmo o esperou e se adiantou. Pedro se levantou da mesa e seguiu para fora. Atravessou a sala de estar e abriu a porta. Na grama, seu pai estava de costas, com as duas mãos para trás, enquanto parecia observar o céu, ainda acinzentado. Pedro não soube como lhe chamar a atenção. Temia os segundos e parecia não querer ouvir o pai. Não conseguia se imaginar dizendo aquelas palavras. “Pai, sou gay” parecia algo em outro idioma. Silveira se virou e seus olhos brilhavam com tantas lágrimas. Todo o medo de Pedro se dissipou, pois percebeu que o choro não era de ódio, mas sim de compaixão. Silveira abriu os braços e, com as mãos, chamou o filho para um abraço. Pedro foi tomado por aquele ato e, como em um sonho, flutuou até os braços do pai, onde fez como Igor, quando este o abraçou. Deixou-se levar por aquele aperto e também chorou. Não conseguia imaginar dia mais perfeito, em que a felicidade pôde finalmente ser palpável. Mas Silveira logo tratou de quebrar o sonho e trazê-lo a realidade. Ainda abraçados, ele disse.
- Me perdoe, filho. Me perdoe, por favor. A culpa de você ser assim é toda minha!
Foi como um sopro forte, derrubando o castelo de cartas. Silveira parecia não entender que o filho não era “assim”, ele só era gay. Pedro sentiu-se sufocado por aquele abraço e pela primeira vez se decepcionou com o pai pequeno que tinha.