Mergulhamos em dias sombrios. Nunca nossa casinhola estreita esteve tao silenciosa, tao tristonha. O vento cortante e a atmosfera cinzenta do inicio de inverno contibuia para aquele panorama infeliz, para aquele abismo gelado que se instalara entre Fernando e eu.
Pouco nos falavamos, talvez apenas o essencial. Ele evitava me olhar diretamente no rosto, nao me tocava, porem à noite permitia que eu o abraçasse enquanto o sono nao vinha. Algumas vezes percebi que ele chorava baixinho antes de adormecer e eu me sentia como que enterrado vivo com isso.
Um dia chegou um telegrama para Fernando. Era da casa dele, avisando que a mae estava doente e queria ve-lo. Logo ele arranjou tudo e se foi à tardinha, dispensando minha companhia ate à estaçao.
Era aquela porta que ele havia fechado sem bater, a uma hora, que eu agora encarava com a tristeza e a dor pesando feito um saco de pedras em meu peito. O recorte de luz fraca e invernal da janela refletido no chao gasto e a gata suja se esfregando em mim - em todas essas pequenas coisas eu sentia como que mais um acorde do requiem que substituira a sonata de nossa vida.
Ele precisava daquela pausa, eu sabia. E sabia tambem que voltaria, devia voltar. No entanto era tao doloroso ali sem ele, tao intensamente solitario. Era como me descobrir sozinho na vida, sem nada nem ninguem.
Tive uma noite longa, de sono delirante e entrecortado. Uns fragmentos de sonho onde eu me via absolutamente sozinho em imensas planicies, campos sem fim ate o horizonte, largas estradas interminaveis. E fazia tanto frio, um ceu nebuloso, baixo como que para me sufocar.
A contragosto recebi a visita de Carlos naquela tarde de sabado. Soube na olaria da viagem de Fernando e veio ver como eu estava. Parecia indiferente ante tudo isso e tive muita vontade de jogar tudo na cara dele, apenas para ver sua reaçao. Mas me calei, absorvido ainda em minha melancolia.
Ultimamente ele andava tossindo muito, aparentado ao final de tarde uma coloraçao rosada nas faces, como se febril, um ar fatigado. Dizia que o cigarro começava a lhe dar falta de ar e pensava em parar com aquele habito.
Afetando um ar de amigo preocupado, Carlos me sugeriu sair à noite. Disse que conhecia "de ouvir falar " um tal de Cafe Mocambo, um pouco distante, mas que era frequentado por rapazes como eu.
- Entao voce quer que eu coloque outro homem em minha cama porque Fernando viajou? - eu disse com um riso ironico.
- Nao disse isso - ele sufocou um curto acesso de tosse - Sugeri apenas uma...distraçao, uma bebida ou jogo talvez...Nada demais.
Anotou num pedaço de jornal o endereço do lugar, jurando que nunca estivera ali, mas que sabia onde ficava. Nao fiquei tao motivado assim a ir, mas apos Carlos ter partido e eu ter, pela centesima vez a sensaçao de que a solidao esmagadora daquela casa triturava lentamente meu coraçao, vesti uma roupa melhor e sem pensar muito sai rumo ao Cafe Mocambo.
Tive de andar bastante e suportar um frio medonho ate encontrar o local, incrustado como uma rocha escura entre bares e restaurates pobres duma rua estreita. A atmosfera obscura do estabelecimento me saudou numa nevoa forte de fumaça de cigarro, suor e halito de bebado.
Enquanto tomava minha cerveja observava os rostos sombrios dos fregueses do Cafe. Homens das mais variadas idades, muitos silenciosos, flertando discretamente com outros, alguns jogando, uns poucos bebendo sozinhos à espera de companhia. Era ainda surpreendente para mim pensar que havia muitos de nos pela cidade, pelo mundo decerto.
O meu olhar enfastiado e vagaroso caiu de repente num rapaz que bebia sozinho perto do balcao. Vestia um sueter cinza com losangos vermelhos, uma calça preta, bem arrumado e sem a expressao gasta e embriagada dos outros frequentadores do lugar. Muito branco, de cabelos escuros, parecia bonito, olhando pensativamente o copo de cerveja vazio. Quando ergueu o rosto e me encarou notei que era dono de belissimos olhos azuis.
Por um momento ficamos nos olhando, meio que constrangidos, sem saber o que fazer. Quando o garçom me trouxe outra cerveja fitei o rapaz e com um geesto discreto o chamei. Ele veio para o meu lado, um tanto ressabiado, mas bastaram . dez minutos de conversa e era como ese fossemos amigos de muitos anos..
Caçoamos um pouco da decadencia do Cafe Mocambo e seus fregueses suspeit os. Ele tambem se desagradava com o jeito do lugar e nem sabia ao certo porque tinha vindo, achava talvez que a noite fria o empurrava para qualquer lugar longe de seus pensamentos. Nao estava decerto à procura de parceiro sexual como os outros, isso eu podia perceber, assim como tambem notava que ele carregava uma magoa, uma tristeza que brilhava opaca no fundo de seus olhos bonitos.
Me simpatizei com ele, nao soube bem porque, de modo que quando a noite ia alta e o frio se tornara agressivo, convidei-o para minha casa. Faria um cafe quente e poderiamos conversar melhor. Ele nao respondeu, apenas me seguiu quase que em silencio rua afora.
Em casa fiz o cafe e o tomamos na sala, escorados no sofa-cama aberto, ouvindo baixinho um disco de Chopin que era de Carlos. Nao soube ao certo em que momento me vi falando com o desconhecido sobre Fernando, relatando toda nossa historia desde o principio, contando de Carlos, de sua influencia devastadora sobre nosso amor, amaldiçoando a hora em que viemos para aquela cidade, lamentando sobretudo o fato de nao termos, Fernando e eu, capacidade para superar aquela crise.
O rapaz me ouvia em silencio atento, sem me interromper, e eu sentia nisso que ele me compreendia inteiramente. Quando terminei de falar, ele sacou do bolso a carteira, abriu e tirou dela um retratinho amarelado de dois garotos juntos, sorridentes e sentados lado a lado no meio fio duma rua arborizada.
- Isso aqui - disse ele batendo com a ponta do dedo na fotografia - Talvez seja tudo o que restou de um imenso amor, e de uma grande injustiça.
De modo lento e sentido começou a narrar sua historia. Apaixonara-se pelo vizinho ainda na infancia, um amor avassalador mesmo naquela idade e era como se o mundo fosse apenas os dois por um tempo. Logo,porem, os pais de ambos perceberam e chocados trataram de separar os dois garotos. Ele foi morar em outra cidade e acabaram por perder para sempre o contato. Era decerto uma magoa de uma historia pouco vivida, abortada antes mesmo da experimentaçao completa, assassinada pela crueldade de terceiros.
Senti uma tristeza infinita ouvindo aquilo, vendo-o chorar um pouco enquanto contava. Havia sim muita dor no mundo, muita maldade e incompreensao e talvez historias como a dele, como a minha, fossem apenas uma pequena parte duma grande chaga sangrenta que era a imperfeiçao da raça humana, da obra ainda em lapidaçao que era o ser humano, maravilhoso e maldito ao mesmo tempo.
Sentimos sono e estendi sobre o rapaz um cobertor, deixando-o no sofa-cama enquanto fui para o quarto. Dormi mal de novo, rolando na cama, sentindo falta de Fernando e de nossa alegria. Chorei um pouco de madrugada, pensando nele.
De manha fiz outro cafe e o rapaz, apos bebe-lo, se despediu de mim com um abraço, me fazendo lembrar que ainda nao sabia o nome dele.
- Lucas -respondeu com um sorriso.
Observei-o sair, mergulhando na neblina gelada e leitosa da manha. No final, achei que o estranho Cafe Mocambo me reservara um amigo, um confidente e companheiro de tristezas, alguem que talvez tenha passado por dores piores do que as minhas, porque o mundo nao nos perdoava sermos o que somos.
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Antes de tudo quero me desculpar com um grande leitor, autor e amigo, por ter me apropriado indevidamente de parte de sua historia pessoal para mostrar o quanto a homofobia pode ser cruel, destruindo sonhos e ceifando amorers puros.
Espero cara que nao fique zangado comigo e receba isso como uma humilde homenagem minha. Por ser valente e guerreiro, mantendo a esperança apesar de tudo. Muitos em seu lugar nao prosseguiriam, nao perdoariam.
Fiz de coraçao :D
Valeu galera! Adoro voces!
Ate a proxima!