Maos, varias maos frias me segurando, tirando meu pijama, me molhando. Eu me debatia, tentando me livrar, vendo como num turbilhao confuso os rostos tensos de Carlos e Fernando sobre mim. Fiquei com nojo deles, ainda mais de Fernando que me tocava com as mesmas maos que bolinaram o outro, que me falava na cara com halito de esporro alheio.
- Me largue - eu balbuciava, sentindo meu corpo queimar - Odeio voces! Odeio.
- Fique calmo - ouvi Carlos dizer - Fernando, o remedio dele...
Engoli numa ansia uma capsula amarga, e me cobriram. "Vao me matar. E foder à vontade, depois ", pensei num cansaço de tudo, me encolhendo e chorando agarrado ao travesseiro. Lentamente a escuridao me tomou, acalmando, e entao um sonho vacilou como um painel de cores fortes em meu cerebro cansado. Me vi no alto de um vale verdissimo, banhado pela luz do outono. Fernando estava encostado ao meu ombro, segurando minha mao, a cabeleira loura tocada pela brisa fresca.
- Eu te amo - ele sussurrou.
Foi porem o rosto bonito e atento de Carlos que vi assim que acordei, banhado em suor. Ele estava vestido quase todo de preto, jaqueta e camiseta, conservando apenas o jeans. Tomou minha temperatura com a mao gelada.
- Fiquei especialista em febre - falou com um sorriso breve - Veja, Fernando...baixou a temperatura.
Observei Fernando chegar perto da cama, claramente preocupado. Colocou a mao em minha testa enquanto eu o fitava em silencio, sem desviar os olhos.
- Finalmente! - exclamou ele, pegando o pratinho de louça com os remedios, me dando um comprimido sem sabor - Sua febre provocou convulsao, Rei. Quando Carlos chegou voce estava gritando no quarto, em espasmos, mais quente do que um tacho no fogo. Custamos a fazer baixar sua temperatura.
Olhava-os atentamente. Seria ainda o mesmo dia? Mas a jaqueta de Carlos nao era vermelha? E o pratinho que eu quebrei estava ali inteiro? Era o mesmo, branco pintado na borda em finas ramagens verdes...Nao tinhamos outro igual, nossa louça era tao pouca...
- Ha quanto tempo estou doente? - murmure.
- Desde ontem, Rei. Nao lembra mais?
Me cobri, numa fadiga terrivel. Devia mesmo ter entrado em convulsao pois meus musculos todos doiam como se tivessem sido esmagados. Fechei os olhos, sem querer pensar em mais nada.
Melhorei em alguns dias e na terça feira estava de volta ao trabalho. Era estranho que durante esse tempo minha mente pensasse tao pouco, lembrando ou analisando aquela visao que tive durante a febre, de Fernando e Carlos juntos. Nao, fosse o que fosse aquilo, era insuportavel pensar, era melhor nao lembrar.
- Como sou covarde - disse para mim mesmo enquanto caminhava.
Chovia fino desde cedo e as luzes da cidade estavam acesas às cinco horas, no horario em que eu voltava para casa. Caminhando na larga calçada ao longo do rio que cortava a cidade, eu seguia imerso num ponto neutro de meu pensamento, a cabeça baixa protegida pelo guarda -chuva negro, andando devagar, absorto. De subito parei no meio da calçada molhada, num longinquo reconhecimento a me puxar para a realidade.
O rapaz de sobretudo preto e guarda-chuva da mesma cor havia passado por mim e tambem parado. Voltei -me e o reconheci na hora, a dez passos de distancia de mim.
- Lucas!
- Cidade pequena, nao? - ele sorriu, chegando perto e me cumprimentando.
Em frente à grade baixa que separava a margem do rio da calçada ficamos parados , conversando por minutos. A chuva nao cessava, abafando nossas vozes por causa dos guarda -chuvas sobre nossas cabeças. Adiante eu via refletido na agua agitada do rio as luzes da cidade, dos postes acesos à margem, semelhantes em seu reflexo a serpentes amareladas tremeluzindo. O crepusculo descia precocemente, ensombreando ainda mais a cidade cinzenta.
- Pelo que voce me disse, tudo nao passou de delirio seu - disse Lucas apos ouvir em silencio as minhas recentes afliçoes.
- Mas porque raios isso me incomoda tanto?
- Porque esta morrendo de medo de perder o seu garoto para o outro, mesmo sabendo que nao ha chances de isso acontecer pois ... o granfino nao gosta do que gostamos. Mas nao confia em si mesmo, Reinaldo. Se confiasse estaria rindo dessa paixaozinha do seu namorado.
- Acha que Carlos pode ser tao impenetravel assim a isso?
A minha frase soou estranha de repente e rimos alto, olhando o rio batido pela chuva.
- Serio, Lucas. Se voce o visse... -falei - Bonito que chega a dar raiva. Copia aquele ator americano, o James Dean...
- Virou facil a cabeça do seu moleque...
- Completamente - suspirei.
- Acho que isso passa, sabe? - disse ele - Hoje um encantamento, uma fascinaçao, mas e amanha? Voce foi o ontem dele e sera o amanha tambem. Carlos representa uma motocicleta nova para ele. Batuta hoje, mas sem a mesma graça no futuro.
Fiquei em silencio. A chuva apertou de repente e eu precisava ir para casa. Despedi -me de Lucas que me disse que poderia encontra -lo na Faculdade do Largo de S. Francisco, onde estudava. Saia as cinco horas.
- Eu sei que voce nao vai desistir dele, Reinaldo - falou me dando um tapinha no ombro e se indo pela rua brilhosa de chuva.
Continuei meu caminho de volta para casa. Chegando encontrei a vitrola tocando baixo o Chopin e Fernando com a gata no sofa, enrolados numa manta grossa. Ele abriu a boca para me cumprimentar, mas antes que dissesse algo explodiu num acesso de tosse intensa. O meu coraçao congelou de medo e dor, observando - o tossir como Carlos.
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Obrigada gente! Um beijo em cada um de voces, seus lindos!
Ate breve! :)