Durante o resto da tarde e começo da noite o silencio foi absoluto entre no's. Eu evitava olhar muito para Fernando, embora o sentisse me olhando varias vezes. Ele tossia e chorava baixinho, encolhido no sofa, alisando o pelo rasteiro cinza da gata. No inicio da noite notei que ele tomou um comprimido para febre e foi se deitar mais cedo.
Apesar de minha decepçao, de minha raiva e magoa, era terrivel para mim ve-lo naquele estado, sofrendo com a consciencia pesada, doente, choroso como nunca. "Voce tem o coraçao mole, Pierro", costumava dizer meu irmao quando eu me recusava a castigar os cavalos indomaveis da chacara. Talvez fosse verdade e talvez fosse um grande defeito meu. Fato era que eu sabia que seria um ato de extrema crueldade abandonar Fernando assim, no momento em que mais precisava de mim. Jamais seria capaz disso e viver sem ele, apesar de todos os erros, seria o mesmo que a morte de minha alma, estando vivo meu corpo.
Ele foi para o quarto e eu fiquei com o sofa, porem nao dormi quase nada. A tosse dele, vinda de dentro do comodo fechado, me tirou o sossego, afligindo-me ate um ponto insuportavel.
Nao me contive e levantei de madrugada, entrando no quarto e vendo Fernando lavado em suor, febril, se contorcendo na cama em meio a tosse aflita. Fiquei alarmado com a situaçao dele, e a certo custo consegui arrasta-lo para um rapido banho frio de chuveiro.
Debaixo d' agua ele tremia, reclamava de frio, mas a febre começava a ceder. Enxuguei-o com energia, enquanto ele me olhava serenamente. Vesti uma camisa velha nele, cuecas, meias e coloquei mais um cobertor.
- Vai ao medico segunda-feira, sem falta - disse olhando para ele.
- Voce... nao vai embora? - sussurrou ele, marejando os olhos.
- Sabe que nao - agachei diante dele na cama, segurando sua mao palida e morna - Como poderia, Fernando? Teria eu coragem de larga-lo sozinho e doente?
- Eu nao valho nada, Rei - disse ele numa voz tremula e embargada - Siga sua vida e me deixe morrer sozinho. Eu vou entender... Nunca terei raiva de voce por isso.
- Nao fale assim - sussurrei, abraçando-o numa tristeza que me entorpecia inteiro - Voce ainda vai viver muito. Tem apenas dezenove anos... Viveremos juntos a vida toda.
- Me perdoa, por favor - balbuciou Fernando, dando vazao a nova crise de choro, me agarrando pelos ombros - Eu nao quis, eu nao tive culpa...
- Nao chora - falei sem conseguir segurar a comoçao, apertando-o mais forte num desespero - Eu perdoo, perdoo... Fica bom logo, por favor. Nao me deixa...
Acabamos dormindo abraçados, em meio ao nosso choro e a tosse dele. Sentia seu corpo esquentar e suar a madrugada toda, mas ao menos pode descansar algumas horas com tranquilidade.
Ao longo de todo o dia esteve agarrado a mim, carente, melancolico, culpado. A doença deixava o estado emocional dele em frangalhos, tudo o entristecia e comovia. Assim, à tardinha, no horario em que os feixes fracos do sol se pondo entravam pela janela, caindo no chao, fazendo brilhar particulas de poeira e ouviamos o tristissimo Pie Jesu, de Faure, senti Fernando comovido em silencio, deitado com a cabeça em meu colo, absorvido da cançao funebre que invadiu a sala feito a hora morta daquela tarde de inverno.
Infelizmente os exames e o medico confirmaram nossa quase certeza: tuberculose. Nao daquele tipo que chamavam de "galopante " ,mas ainda assim avançando, devorando os pulmoes dele como cupins.
Iniciou o tratamento com a estreptomicina injetavel, que tive de aprender a aplicar nele todos os dias. A fadiga e a febre fizeram -no abandonar o trabalho e, com a manutençao da casa, o alto custo daqueles antibioticos e meu baixo ordenado como auxiliar de bibliotecario, logo nos vimos em maus lençois financeiramente.
Havia um auxilio que poderia vir, embora Fernando relutasse a principio. Mas de todo modo aqueles continuavam sendo a familia dele e tinham, portanto, uma obrigaçao moral de ajuda -lo nesse momento. Escrevi entao ao irmao dele, poupando a mae por causa da saude fragil dela. Expliquei por alto a situaçao e enderecei a carta ao armazem da cidade, onde o pessoal do campo apanhava suas correspondencias.
Tinha esperança numa resposta escrita, mas o que nos veio, numa manha gelada e sem sol de sabado, foi o irmao de Fernando em pessoa, observando ao redor com um semblante impassivel. Porem, quando fixou em nos o olhar, o que brilhou atras dos oculos de aros grossos e escuros foi um supremo desprezo.
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Vale a pena ouvir o Pie Jesu, de Faure, com a soprano Lisa Beckley. Considero a melhor versao :
www.youtube.com/watch? v -gKRUNISNCfY
Obrigado, galera!