Ivan, o irmao de Fernando, sempre me parecera bem esquisito. Calado, imperturbavel, dono de uma voz fria e modos lentos, assemelhava-se a um velho no corpo de um moço. Era decerto amargurado por nao ter tido uma infancia plena como o outro, sendo asmatico e um eterno doente melancolico e resignado.
Agora, entretanto, nao me parecia assim tao fragil. De corpo cheio e pesado vestia-se com apuro, trajando terno escuro e impecavel, segurando uma bengala de cabeça de inox imitando uma aguia no ninho, e chapeu novo, preto.
- Nao me cumprimenta, Fernando? - disse ele com certo sorriso ironico - Parece bem abatido.
- Nao convem que eu chegue muito perto dos outros - respondeu o garoto, encarando-o com desconfiança - Sente-se, por favor.
Oferecemos um licor a Ivan que recusou, com uma careta de asco. Olhava muito nossa casa, o chao aspero, os poucos moveis, a gata dormindo no sofa. Sentava-se na ponta da cadeira, apoiando as duas maos na bengala, como se temesse sujar suas roupas.
- Uma toca de rato, isso aqui -disparou numa voz fria, nos encarando - Nao me admira que ele tenha ficado tuberculoso.
Deixei passar aquela observaçao ofensiva, refletindo comigo que precisavamos dele. Ouvi Fernando suspirar, perguntando pela mae.
- Vai melhor. Agora cuido dela -respondeu Ivan, olhando -o de cima de repente - E eu entao? Ha um ano sem crise de asma. Estou vendendo saude!
Vi Fernando desviar os olhos, humilhado. Aquilo estava me enervando e para acabar logo com tudo, comecei a explicar a Ivan nossa situaçao dificil, o tratamento de Fernando, os altos custos do remedio e nossas intençoes. A tudo isso ele ouviu em silencio, fitando-me com um olhar analitico, a boca repuxada num inicio de riso mordaz. Compreendi entao, desanimado, que dali nao sairia nada.
- Evidentemente, nao vou ajuda-los - declarou Ivan com uma risada arrogante - Eu? Nao auxilio pervertidos.
Fitei -o, perplexo com aquela crueldade. Nao tive coragem de olhar para Fernando e ver sua reaçao.
- Entao porque veio, Ivan? -exclamei, sem me conter - Para tripudiar sobre seu irmao doente? Nao tem pena?
- Pena de um devasso que abandonou minha mae para viver com um homem? - disse ele se empertigando na cadeira, me lançando um olhar hostil -Pois eu sei porque sairam da cidade. Cansei de ve-los dormindo nus e abraçados, debaixo do nosso teto! E eu vim para dizer que quero essa desonra toda de voces longe das vistas de minha mae!
- Cale a boca, maldito! -gritei, erguendo -me diante dele - Nao vai nos insultar em nossa propria casa!
- Insulto representa a relaçao de voces! Insulto ante as pessoas de bem! - berrou ele se erguendo e me encarando.
Agarrei -o pelo colarinho, batendo aquele porco asqueroso contra a parede. Num empurrao raivoso ele me afastou, no momento em que vi a bengala dele sobre a cadeira. Me lembrou muito o cajado de meu pai, e toda aquela dor, aquele odio subiram como agua fervente em mim. Golpeei Ivan no rosto com vontade, e mais uma vez nos ombros, num som macio, delicioso. Eu ria da sua cara ensanguentada me olhando com medo e raiva, recuando ate um canto da sala. Parecia que batendo nele eu batia tambem em todos que ja nos odiaram e ainda odiariam, quem nos considerava pior do que assassinos, doentes, depravados. Gente que nunca compreenderia meu amor, pois eram tao mesquinhos e infelizes a ponto de nao entenderem.
- Chega, Rei! - gritou Fernando aflito, me tomando a bengala - Deixe esse verme ir embora.
Ivan me encarava, sem folego, com medo. Enxugou com o lenço o sangue que lhe escorria pelo pescoço, vindo do corte acima da sobrancelha. Pegou da mao de Fernando a bengala e o chapeu, me olhando cautelosamente. Antes de sair ainda disse, me desafiando com o olhar.
- Espero que ambos morram tuberculosos!
- Fora! Seu diabo! - gritei batendo a porta.
Olhei para Fernando que recomeçou nova crise de choro, apoiando a cabeça entre as maos. Pensei em quem nos ajudaria agora e, apesar do meu orgulho, restava alguem : Carlos.
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Valeu povo bonito! Adoro voces!
Ate o proximo! :D