Conserto de Corações - Parte 04

Um conto erótico de Puzzle
Categoria: Homossexual
Contém 3000 palavras
Data: 12/09/2014 21:54:00
Última revisão: 13/09/2014 17:56:31

(Charlie)

Faziam exatos três meses desde o falecimento de Nicolas, e eu ainda não tinha superado esse fato por completo. Vez ou outra, sonhava com ele durante a madrugada e acordava sem acreditar que aquele garoto que eu tanto amava tinha, de fato, morrido. Cair na real era uma missão quase impossível para mim. Não havia como eu esquecer tudo o que passamos juntos, seguir em frente e viver a minha vida sendo que ela se resumia nele exclusivamente.

Aos dezesseis anos, eu o conheci no meu curso de inglês, e além do meu amor por ele, acabei descobrindo que mulheres nunca foram bem a minha praia. Nessa mesma idade, começamos a namorar e eu decidi abrir o jogo para o meu pai que inicialmente ficou um pouco surpreso, mas por ser uma pessoa muito mente aberta e sem preconceitos, com o tempo ele aceitou isso numa boa. Dias antes de completarmos sete meses de namoro, Nicolas foi diagnosticado com Linfoma não Hodgkiniano, um tipo raro de câncer. Ele teve que raspar a cabeça por causa da quimioterapia, mas como a doença já tinha avançado bastante quando descobriu ser portador da mesma, ele não resistiu e faleceu no leito do hospital.

Meu pai até tentava me animar de todas as formas possíveis, mas não tinha ninguém que conseguisse me tirar daquelas longas, dolorosas e intermináveis noites de depressão e melancolia. Até mesmo para comer, ele tinha que levar o almoço, jantar e café da manhã no meu quarto. Eu estava vivendo como um vegetal, só saia da cama para tomar banho, ir a escola, ao curso e depois voltar para o mesmo lugar em que eu me encontrava anteriormente.

A única coisa que me restava a fazer era ficar me lembrando dos momentos bons que vivemos juntos naqueles oito meses e meio de namoro. Folheava fotos e mais fotos de nós dois e pensava no que eu poderia ter dito e não disse, no que eu poderia ter feito e deixei de fazer. É nessas horas que damos valor até para os defeitos de quem partiu. Acho que deveríamos valorizá-los sempre já que são os nossos defeitos que nos tornam especiais e diferentes uns dos outros. Geralmente as nossas semelhanças vem das nossas qualidades, por isso quase ninguém dá importância para elas. Mas não foram só os defeitos do Nicolas que fizeram com que eu me apaixonasse por ele, mas sim o seu jeito divertido e irônico de enxergar as coisas. Para ele não existia tempo ruim. Podia ser o fim do mundo, que lá estava ele disparando as suas frases de efeito e tiradas sarcásticas ao vento. Aliás, o seu senso de humor era tão ácido que chegava a ser inconveniente em certas ocasiões. E por mais que essa sua característica me irritasse de vez em quando, eu gostava apesar de nunca ter admitido. É uma pena que o seu senso de humor tenha sido esgotado no dia em que ele saiu da sala do doutor com o diagnóstico do que ele tinha. Até hoje eu me lembro como se fosse ontem da tarde em que tivemos a nossa última conversa antes dele morrer no hospital. Chovia bastante do lado de fora e dentro do quarto pairava aquele delicioso aroma de chuva que ele tanto adorava.

– Charlie, como eu não sei se vou estar vivo amanhã de manhã para te dizer isso, eu quero muito que você saiba o quanto eu fui feliz com você esses últimos meses e... - Ele tentou dizer assim que seus pais saíram do quarto nos deixando a sós.

– Shii - Tapei sua boca com o dedo indicador - Não fala assim, como se você fosse partir daqui a pouco. Alguma coisa me diz que você vai conseguir vencer essa doença. Mas pra isso você precisa continuar tendo esperanças, Nicolas.

– Charlie, se toca. Você sabe mais do que ninguém que eu não vou sair daqui com vida e fica aí tentando se iludir. Você acha mesmo que se eu tivesse alguma chance de sobreviver o médico teria vindo aqui falar que o meu caso não tem mais solução e que eles não podem mais fazer nada?

– E se ele estiver enganado? Médicos também erram sabia?

– Se eles ainda pudessem fazer alguma coisa por mim, já teriam feito. Se ele estivesse errado, eu poderia estar curado e com saúde agora. E não aqui nessa cama, definhando. Tendo dificuldades para respirar, falar, comer. E não adianta você tentar encher a minha cabeça de ilusões, porque eu já aceitei o fato de que eu estou morrendo. E que as minhas chances de durar por mais alguns dias são de mínimos um por cento.

– Então qual é a sua dificuldade em acreditar nele?

– Os outros noventa e nove. Ele é um monstro perto do um por cento.

– Nicolas, eu não gosto quando você fala desse jeito.

– E existe outro jeito senão esse? Eu só estou sendo realista. Meu otimismo tem um limite e ele já tá acabando, junto com o meu prazo de vida.

– Por favor, não fala isso. Você não pode ir embora agora. Eu te amo, eu preciso de você aqui hoje, eu vou precisar de você amanhã, eu sempre vou precisar de você - Comecei a chorar e lhe dei um abraço apertado me deitando sobre seu peito. Droga. Eu não queria ter que demonstrar fraqueza para alguém que também estava fraco emocionalmente - E se conseguirem achar uma cura? Você já pensou nessa hipótese? Hein? - Perguntei saindo de cima dele e acariciando o seu rosto.

– É por isso que eu te amo tanto. Você nunca perde as esperanças, e está sempre usando "e se" no começo de uma frase. Só que agora não é mais hora de dizer "e se". Agora é hora de dizer adeus e não tem nada que alguém possa fazer para impedir isso. Porque da próxima vez que eu fechar meus olhos essa noite, eu sei que eles podem não abrir mais. Nunca mais – Ele afirmou enxugando algumas lágrimas que insistiam em cair do meu rosto – Mas eu te confesso que eu vou fechar eles com a maior alegria do mundo. Porque eu amei e fui amado pela melhor pessoa que eu conheço. Então, obrigado por ter feito parte da minha vida. Ela valeu a pena graças a você – Ele sorriu beijando minha mão. Deitei ao seu lado e ficamos trocando olhares sem pronunciar uma palavra. Isso não seria necessário. Nossos olhos falavam por nós dois, e a conversa entre eles estava boa demais. E só foi interrompida pela entrada dos pais dele e a enfermeira que acabou sendo convencida por Nicolas a nos deixar dormir com ele aquela noite.

Meus sogros e eu ficamos o resto da tarde mimando meu namorado até que ele pediu para que sua mãe tirasse uma foto com ele e o pai, e depois tirasse uma de nós dois. Estranhei o seu pedido mas ele garantiu que não havia motivo para sentir vergonha de nada. No minuto seguinte, Nicolas pediu que eu cantasse para ele a música "De Janeiro a Janeiro" do Nando Reis com a Roberta Campos. A mesma música que eu cantei para ele no dia em que fiz o meu pedido de namoro.

Desde aquele dia, ele se apaixonou por mim e pela canção que virou a sua melhor amiga para todas as horas. Nas horas de raiva, tristeza, alegria e na hora de acordar para escola. Peguei o meu violão na poltrona ao lado da sua cama e comecei a tocar enquanto cantávamos juntos...

"Olhe bem no fundo dos meus olhos

E sinta a emoção que nascerá quando você me olhar

O universo conspira a nosso favor

A conseqüência do destino é o amor, pra sempre vou te amar

Mas talvez, você não entenda

Essa coisa de fazer o mundo acreditar

Que meu amor, não será passageiro

Te amarei de janeiro a janeiro

Até o mundo acabar" - Terminando a cantoria, ele me disse pela milésima vez aquela noite o quanto me amava. Dei um beijo nele sem querer admitir para mim mesmo que aquele poderia ser o nosso último beijo. E infelizmente, foi o último. Constatei isso quando eu acordei duas horas depois de me deitar em um sofá de frente para ele ouvindo um barulho estranho vindo do aparelho que media os seus batimentos cardíacos.

(Vincent)

A Thais estava mais do que certa quando dizia que o meu gaydar precisava ser calibrado urgentemente. Ele já deixou muitos caras passarem batidos e eram raras as vezes em que ele apitava com total razão. Se bem que o Charlie não dava bandeira nenhuma. Por esse motivo que eu nunca iria imaginar que ele fosse gay e muito menos que já tivesse se relacionado com alguém que estava á beira da morte. Agora tudo fazia sentido. Por isso que ele era tão fechado daquele jeito e toda vez que eu olhava-o, ele parecia estar triste com alguma coisa. Especialmente naquela última semana. Continuei olhando suas recordações até que tomei um baita susto quando ele surgiu ao meu lado com uma cara de poucos amigos que chegou até a me assustar.

– Você não devia ter mexido nisso! – Ele arrancou o álbum da minha mão – Ninguém nunca te ensinou que é falta de educação mexer no que não lhe pertence?

– Desculpa, eu achei que você não fosse se importar.

– Mas eu me importei. E não ache, ninguém perdeu nada!

– Por quê você tá me tratando assim? Eu não fiz nada demais!

– Pode não ser nada demais para você. Mas para mim é muito.

– Quem é esse garoto das fotos? Seu ex namorado?

– Não te interessa quem ele é!

– Se eu perguntei é porque é do meu interesse.

– Eu não tenho que dar satisfações da minha vida para um estranho.

– Charlie, nós somos praticamente da mesma família agora, eu não sou um estranho. E você pode se abrir comigo se quiser, talvez eu possa te ajudar.

– Se você quer mesmo me ajudar, vai embora daqui e me deixa sozinho - Ele apontou para a porta do seu quarto - Você é surdo? Sai daqui, porque eu não vou desabafar com você sobre um problema que eu sei que você não vai entender.

– E por que você acha isso? Olha, eu não sou nenhum psicologo mas dificilmente eu fico sem entender o problema dos outros. E não sei se você reparou, mas eu também sou gay.

– Não brinca? Se você não me falasse, eu juro nem ia desconfiar...

– Eu nunca namorei na minha vida mas pelo o que eu vi nessas fotos você e esse garoto namoraram por um tempo e ele morreu por causa de...

– Câncer - Ele completou se sentando na beirada da sua cama e eu me sentei ao seu lado quando ele acrescentou - Um linfoma, para ser mais exato.

– Qual era o nome dele?

– Nicolas - Ele respondeu com um semblante abatido.

– Vocês namoraram por muito tempo?

– Nove meses. Ele morreu já vai fazer três.

– Nossa. Eu não fazia ideia de que você estava passando por algo tão difícil e que aconteceu tão recentemente. Eu sinto muito. E me desculpa ter te pressionado para você me falar uma coisa que não se sentia á vontade.

– Que nada! Tenho certeza que você só estava tentando me ajudar.

– E será que eu ainda consigo?

– Só de ter contado isso para você eu já me sinto mais leve. Agora a dor da perda, eu sei que nunca vai ser aliviada nem esquecida. Eu só tenho que aprender a conviver com ela - Ele suspirou tentando engolir o choro - E é justamente esse o problema. Eu não sei se um dia eu vou conseguir conviver com ela, muito menos suportar ela.

– Charlie, tenta se agarrar nos momentos bons que vocês viveram juntos sempre que for se lembrar dele. O Nicolas pode não estar entre nós agora, mas vai estar sempre aqui no seu coração - Coloquei o dedo no meu peito - E num lugar muito melhor também, olhando para você, querendo que você siga em frente e encontre a sua felicidade ao lado de outro alguém.

– Acho que eu não pretendo arranjar um substituto para ele.

– E quem falou em substituto? No nosso coração tem espaço para muita gente. Você pode amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, só que de maneiras diferentes.

– É. Você tem razão - Ele sorriu pela primeira durante aquela conversa.

– Isso. Aonde quer que o Nicolas esteja agora, é assim que ele te ver.

– Hoje eu teria bons motivos para sorrir se ele estivesse aqui. Nós estaríamos completando um ano de namoro - Ele iniciou um pequeno monólogo e eu deixei com que ele falasse a vontade. Devia estar guardando muita coisa e precisando de alguém para desafogar as mágoas - E quanto eu vi essa data no calendário essa semana, me veio em mente a cena de nós dois num jantar na minha antiga casa na páscoa do ano passado, antes mesmo dele começar a manifestar os sintomas da doença. Eu me vi junto com ele, nossos amigos, a minha família, a dele... Todo mundo tão feliz, mas tão feliz que eu senti pena. Pena do nosso relacionamento não ter se concretizado da maneira que nós tanto desejamos. Porque todos os planos que nós fizemos... tudo que nós sonhamos para nossa vida juntos... tudo o que eu achei que estava reservado para mim e para ele no futuro... desabou num estalar de dedos. Foi como se Deus lá de cima dissesse "Ah, vamos acabar com essa alegria aí". E a alegria acabou. De verdade - Ele encarou o chão por um minuto, apoiou os dois braços nas pernas e começou a chorar colocando as duas mãos no rosto.

– Ei, por que você tá escondendo o rosto? Tá com vergonha de chorar?

– Desculpa, eu não quero que você pense que eu sou um fracote sentimental.

– Para de besteira, eu jamais pensaria isso de você. Olha para mim - Levantei o seu rosto de encontro ao meu - Você não tem que se sentir um fracote sentimental por derramar algumas lágrimas. São elas que mostram que você é humano e tem sentimentos, você não precisa ter vergonha disso. Chora o que tiver que chorar, sofre o que tiver que sofrer. Pra sua dor ser amenizada, ela precisa ser sentida. E depois que ela for sentida, você vai estar livre para seguir com a sua vida.

– Vincent, muito obrigado pelas suas palavras. Me ajudaram muito!

– Promete que vai seguir os meus conselhos?

– Eu prometo que vou tentar - Ele me abraçou e logo senti a minha camisa ficando úmida até que ele se afastou e mim e disse - Acho que eu vou acabar me acostumando em ter você como vizinho. Você é um poço de solidariedade sabia?

– Já me falaram isso uma vez. Eu sou uma pessoa tão legal que meu tipo sanguíneo é D+ - Brinquei fazendo com que ele caísse na gargalhada.

– Cara, se você fosse um pouco mais gente fina, seria anoréxico - E assim se seguiu aquela tarde. Ao som das nossas risadas e o inicio de uma grande amizade.

* * *

Como você sabe que um cara está afim de você? Quando ele te trata exageradamente bem? Quando ele é simpático demais com você? Ou quando ele te convida para uma social na casa dele em que os únicos presentes são vocês dois?

Sim, isso aconteceu comigo e foi em uma ensolarada tarde de sábado, dia esse que eu sempre tratei com total indiferença já que eu raramente saía e podia contar nos dedos as vezes em que eu fui convidado para uma festa, seja ela de alguém da escola ou não.

Mas aquele sábado não foi tratado por mim com total indiferença, simplesmente por um motivo. A pessoa que me convidou para uma social na sua casa era ninguém mais, ninguém menos que o Jordan, aquele rapaz que eu conhecia há tão pouco tempo e não sabia quase nada sobre ele, mas já o considerava como o aluno mais lindo, charmoso, gostoso e simpático da escola onde eu estudava. E eu não estou exagerando.

Estava eu sentado no sofá assistindo a nova temporada de Skins com a Pamela, e sendo derrotado pelo tédio quando ele ligou para o meu celular. Me afastei da minha irmã e fui direto pro meu quarto para que ela não desconfiasse de nada.

– Você vai fazer alguma coisa hoje? - Ele perguntou assim que atendeu o telefone.

– Não. Por quê?

– Quer vir aqui em casa agora?

– Fazer o que?

– Eu chamei uma galera aqui para fazer um campeonato de Guitar Hero.

– Sério? Adoro esse jogo! Mas quem é que vai?

– Alguns alunos da escola que estavam na minha festa e outros amigos meus.

– Ah, não sei não... - Fazer um doce é uma arte.

– Por que não sabe não?

– Eu não gosto de ficar em um lugar que eu não conheço ninguém.

– Mas você conhece. Aqueles dois que estavam acompanhados da Bianca e da Thais na festa vão vir também - Ele se referia ao Isaac e o Renan - Vem logo, Vincent! Vai ser melhor do que ficar em casa o dia inteiro sem fazer nada - É impressionante como gente bacana tem o poder de te fazer sentir um idiota caso você não topar o que eles querem.

Coloquei uma bermuda laranja de alfaiataria, um sapatênis branco, uma camisa da mesma cor com a estampa de uma raposa e após avisar para minha irmã que eu iria a uma pequena reunião de amigos, fui andando até a casa do Jordan que não era muito distante de onde eu morava. Chegando lá, quem me atendeu foi ele mesmo dizendo:

– Que bom que você veio, porque pelo jeito não vai vir mais ninguém. O Isaac e Renan estão ocupados com as suas respectivas ficantes, já os outros quatro não poderão vir porque um está com febre, outro de ressaca e o casal está de castigo.

– Que azar hein?

– Pois é. Mas já que você está aqui, entra. Fique a vontade - Ele abriu a porta e eu entrei na sua sala de estar minuciosamente bem decorada e que naquele dia estava muito mais organizada que da outra vez.

CONTINUA (...)

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Comentários

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Autor, está tecendo uma história muito legal. Estou com muita curiosidade sobre o que aguarda nosso pequeno Vicente. Poste o mais breve!

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