A Saga de uma Paixão

Um conto erótico de Kherr
Categoria: Homossexual
Contém 10119 palavras
Data: 21/10/2014 11:06:19

A Saga de uma Paixão

Depois de sessenta e cinco anos ele estava de volta. Aqueles campos perfumados da ilha corsa, onde o vento se encarregava de misturar as fragrâncias da vegetação baixa do maquis conforme a temperatura aumentava com os raios do sol, nunca saíram do seu pensamento. Do alto do promontório onde estava sentado olhando para o azul turquesa do mar dava para ver como eles se desfraldavam encosta abaixo até chegarem à praia rochosa. A paisagem continuava idílica como na sua juventude, pouco havia mudado durante aqueles anos todos. O que permanecia inalterado era aquele sentimento que oprimia seu peito. Na adolescência ele não sabia bem o que era, mas agora, ele o atribuiu as perdas que a vida lhe impôs. Ele regressara por causa de uma delas, a mais recente, e talvez a última antes que ele próprio se fosse. A brisa morna que soprava do mar, trazendo aquele cheiro salgado, típica dos verões na ilha, era a mesma que soprava naquela tarde abafada quando seu pai o pegou pela mão, dentro do corredor de piso ladrilhado do hospital, e caminharam lado a lado cruzando a praça, onde uma figura feminina entornava água, de uma vasilha que carregava sob o braço, para dentro da concha diante da qual estava ajoelhada. Ele nunca entendeu por que ela fazia isso, achava a fonte bizarra e enigmática, como o semblante de seu pai agora que andavam sem trocar uma palavra. Os olhos do pai estavam inchados. Havia-os visto assim de uns tempos para cá, aliás, desde que a mãe viera para o hospital depois de desfalecer numa noite após o jantar.

- Quando a mamãe vai voltar? É o hoje que eu posso vê-la? – perguntou arfando, pois o pai dava passos muito maiores que os seus, e estava difícil acompanhá-lo.

- Não filho, não é hoje que você vai encontrá-la. – respondeu-lhe o pai, apertando sua mão entre a dele com força. – Mais tarde eu digo quando. – continuou, com a voz embargada, quase num soluço.

O mundo a sua volta era um grande enigma, mas por algum motivo, talvez intuição, naquele momento ele soube que nunca mais voltaria e ver a mãe, e isso o calou. Apenas deixou-se levar em silêncio por aquelas mãos protetoras. Continuou a morar com o pai em Porto Vecchio por mais cinco anos após a morte da mãe. As coisas nunca mais foram as mesmas. Sentia o pai distante, seu rosto perdera aquele sorriso largo e espontâneo, os olhos se afundaram nas maçãs do rosto anguloso e perderam o brilho. Embora continuasse carinhoso e cheio de atenções, ele percebera que o sentido da vida havia se esvaído da existência monótona do pai, e ele não sabia como transformar essa realidade. A guerra acabou por mudar a situação. Uma carta com timbre do ministério da guerra, vinda do continente, convocava o pai a se apresentar num regimento. Mesmo ele não sabendo bem o que isso significava, um pressentimento lhe dizia que também não contaria mais com a segurança de sua presença. Depois do Natal não voltou mais para a casa assobrada de pedras gris e janelas de carvalho envernizado, onde morara até então. E, que sempre lhe pareceu uma fortaleza encravada sobre as rochas no meio de uma viela sinuosa que escalava a colina, entre quintais, onde as oliveiras se debruçavam sobre os muros baixos deixando entrever a vida pacata que acontecia nas casas perfiladas ao seu largo. Ficara com os avós paternos, que desalentados com a partida do único filho, acolheram-no como se a vida lhes estivesse dando uma segunda oportunidade de criar um filho. Eles moravam numa propriedade a beira mar, distante pouco mais de quatro quilômetros do centro da aldeia. Era de lá, que ele agora enxergava o mar. Havia se transformado num pequeno hotel de veraneio. A casa grande toda erguida com sólidas paredes de pedra no lado sul da área de trinta e cinco acres, e inúmeros quartos no andar superior, quase todos voltados para o mar, havia recebido balcões numa reforma depois de sua partida. A pouco mais de quatrocentos metros dela na direção sudoeste, no ponto mais alto da falésia, ficava a torre. Ela se resumia a um enorme quadrado de pedras e telhado de telhas vãs, que no térreo abrigara os equipamentos agrícolas utilizados nos vinhedos e oliveiras; no primeiro andar, um mezanino de tábuas grossas suportadas por vigas de castanheiro, alojara os trabalhadores sazonais e; numa espécie de sótão, depositavam-se quinquilharias que ele, quando garoto, adorava esmiuçar, ficando horas vasculhando os baús, caixas e latas, perdidas entre móveis antigos e objetos de diversos tipos.

Afora os colegas de escola, que ficava no vilarejo, tinha pouca companhia de pessoas de sua idade. O único era Petru, um vizinho que morava com a mãe e as três irmãs mais velhas. Petru era talvez cinco anos mais velho do que ele, mas isso não os impediu de ficarem amigos logo nos primeiros meses após sua chegada à casa dos avós. Era um adolescente parrudo, de pescoço curto, ombros largos e olhos cor de âmbar, muito vivos e atentos. O que os unia era a falta de um pai. Ele porque o seu fora recrutado para a guerra, e Petru porque o seu falecera antes dele ser capaz de reconhecê-lo. Ambos lidaram com essa falta de maneira diversa. Ele se tornara inseguro e tímido, pois a mão vigorosa do pai sempre foi sua referência depois da perda da mãe, e Petru se tornou independente e muito senhor de si, exigindo que suas irmãs lhe atendessem os desejos. Perambulavam, a esmo, pelas encostas ou pela praia depois da escola, e se divertiam com qualquer coisa que aparecesse pelo caminho. E, por vezes, ficavam apenas sentados no alto da falésia admirando o mar e jogando conversa fora. Nesses passeios eram invariavelmente acompanhados por Jikol, seu enorme cane corso negro que veio, ainda filhote, dentro de uma caixa de madeira toda perfurada, e com um laço verde gigante, como um presente, no primeiro aniversário após a morte da mãe.

Havia mais de três anos que o pai partira. Voltou uma única vez, por duas semanas, no final do inverno de 1943, estava mais magro, o rosto encovado parecia tê-lo envelhecido. Foi a primeira e única vez que viu o pai usando um uniforme. Não lhe caía tão bem quanto os ternos bem talhados que costumava usar, mas não se cansou de perguntar o significado das inúmeras insígnias que decoravam o peito e os ombros da casaca. Umas três semanas depois da partida do pai, com as notícias de que a guerra estava se intensificando, e as batalhas no norte da África se tornando mais sangrentas, assinalando o recuo das tropas alemãs, foi acordado pelo barulho de uma esquadrilha sobrevoando a casa a baixa altura. A princípio suspeitou que fosse um ataque, pois uma explosão se fez ouvir vindo parece que do mar, especialmente quando seu avô entrou agitado no quarto, sem acender as luzes, chamando-o para se abrigarem no porão, junto aos tonéis de carvalho que guardavam parte da safra do vinho produzido na propriedade. Mas, depois de mais de uma hora, sem que nenhum outro estrondo fosse ouvido, todos voltaram às suas camas, e aquela parte da ilha voltou a mergulhar no silêncio que só a chuva e o murmúrio cadenciado do mar perturbavam.

A tempestade da noite anterior limpara o céu, que amanheceu límpido e azulado. O ar, ainda carregado de umidade, começava a esquentar com o sol tímido. Era sábado e ele não precisava ir para a escola. Tomou o café da manhã com os avós, que se mostravam preocupados com os últimos acontecimentos, como se estivessem prevendo o agouro se aproximando de suas vidas. Depois saiu caminhando ao lado de Jikol até uma escadaria de pedras que descia a falésia até a praia. As tempestades costumavam trazer conchas, troncos e galhos de formato exótico, além de destroços de aviões ou barcos, e ele se divertia examinando cada um destes tesouros que as ondas lançavam sobre o paredão rochoso.

Quando se aproximava da beira do precipício, uns cem metros antes da escadaria de pedras, Jikol começou a latir e saiu correndo na sua frente. O cão estava agitado e se voltava em sua direção com latidos cada vez mais vigorosos e insistentes, como ele fazia quando estranhos se aproximavam da propriedade. A descida por entre as rochas pontiagudas, ainda molhadas pela chuva, precisava ser feita com cautela e, enquanto ele se equilibrava sobre o primeiro trecho da escadaria, avistou um grande pedaço do que lhe pareceu ser uma espécie de lona, amarrada a um cordame que se enroscara nas pedras. Um paraquedas. Boa parte dele estava embolada, e a que não estava, cobria as pedras como um cobertor. Jikol continuava agitado, rosnava, raspava as patas dianteiras sobre a lona como se quisesse cavar um buraco. Quando ele finalmente alcançou o cão e tentou demovê-lo, percebeu que havia algo embaixo de todo aquele tecido. Depois de puxar o paraquedas molhado, que teimava em se enroscar no rochedo pontiagudo, encontrou um piloto da Luftwaffe inconsciente, atado ao cordame. Havia sangue coagulado esparramado na superfície da pedra onde estava sua cabeça. Uma de suas botas estava numa posição estranha, como se tivesse sido torcida para o lado, e havia sangue nela, que vinha desde a altura da coxa, e empapava as calças. Aproximou-se do rosto do piloto e viu que ele ainda respirava. Tentou acordá-lo sacudindo o ombro, mas depois de algum tempo, percebeu que era inútil, ele continuava inconsciente. Por alguns instantes ficou em dúvida sobre o que fazer. Era preciso removê-lo dali, mas teve receio de chamar o avô, conhecendo-o como o conhecia, sabia que ele avisaria os militares no vilarejo, e isso, significaria a morte para aquele soldado inimigo. Decidiu correr até a casa de Petru para pedir ajuda.

Aos sábados pela manhã a mãe e a irmã mais nova de Petru costumavam ir até a vila, numa feira, onde vendiam bordados, potes de geleia e conservas que faziam com a produção do próprio quintal, enquanto as mais velhas trabalhavam em lojas do comércio local. Portanto, esperava encontrar Petru sozinho em casa. Chegou quase sem folego e bateu a aldrava na porta de carvalho com força desmesurada. Ninguém respondeu, embora todas as janelas do andar superior estivessem escancaradas. Chamou pelo amigo sem obter resposta. Estava quase desistindo, quando se lembrou do galpão nos fundos da casa, onde ficava um fogão a lenha onde a mãe de Petru costumava preparar as geleias que vendia. Correu até lá e encontrou a larga porta de correr entreaberta. Meteu a cabeça pela fresta e escutou uns ganidos e gemidos vindos de um canto no fundo do galpão. Viu o amigo, de calças arriadas, encaixado nas coxas abertas e comprimindo o corpo de Jeanine contra a parede, como se fosse uma lagartixa. Jeanine era uma garota da escola que tinha a fama de não poder ver um par de calças sem que isso lhe acalorasse as partes baixas. Petru estava com a boca nos peitos dela e os devorava como se fossem bolas de sorvete, estocava sua buceta enquanto ela gemia entre risadinhas. Estavam tão entretidos fornicando que não perceberam a presença dele. Desapontado, correu de volta para o rochedo, pois sabia que teria que dar um jeito para ajudar aquele piloto antes que fosse tarde demais.

Desatou o corpo do piloto do paraquedas, removeu uma mochila de suas costas e a arma que estava presa a um cinturão que cruzava seu tórax. Juntou todas as suas forças para mover o corpo daquele homem. Primeiro, pelas pedras, depois, com a ajuda de parte do paraquedas, arrastando-o até a torre. Improvisou uma roldana numa das vigas do teto e o suspendeu até o andar de cima. Aquilo fora demais para o corpo moribundo do piloto. O uniforme azul-acinzentado, com a clasp que indicava ser ele um piloto de caça noturno de longo alcance, presa ao bolso esquerdo e a cruz de ferro logo abaixo, estava empapado em sangue, que voltara a brotar dos ferimentos. Era preciso remover toda aquela roupa para descobrir onde estavam e que extensão tinham estes ferimentos. Correu até a casa para pegar tesoura, ataduras, e uma caixa onde a avó guardava uma porção de coisas para fazer curativos. Quando voltou para junto do piloto checou se ele ainda respirava. Por um momento teve receio de encontrá-lo morto, e ter que se explicar isso às autoridades. Mas ele continuava respirando, era uma respiração irregular, pouco profunda, quase inaudível. Removeu todas as roupas e o capacete que estava amassado e ainda preso pela jugular ao queixo do piloto. Havia um corte de mais ou menos cinco centímetros, entre os cabelos loiros, por onde brotava sangue rutilante na altura da têmpora esquerda, e que escorria pelo rosto e pescoço até o peito. Outro corte ainda maior, atravessava o braço direito expondo parte da musculatura do bíceps. A ponta de um objeto metálico havia se encravado na coxa direita e feito um rasgo que atingiu os músculos. Quando removeu os coturnos, com muita dificuldade por estarem molhados e os pés muito inchados, ouviu uma crepitação no pé esquerdo, aquele que estava numa posição estranha quando o encontrou, e desconfiou que provavelmente estivesse quebrado. Lembrou-se de um livro de medicina e primeiros socorros que estava numa das estantes da biblioteca do avô, e tratou de buscá-lo, talvez houvesse alguma coisa nele que pudesse ajudá-lo. No mais, faria o que sua avó fez em muitas ocasiões, quando algum dos trabalhadores que vinham trabalhar nos vinhedos ou nas oliveiras, se machucavam. Ele sempre a acompanhara com curiosidade e atenção naquelas ocasiões, e achava que seria capaz de fazer o mesmo, embora estivesse diante de um caso bem mais complexo. Limpou os ferimentos o melhor que pode e imobilizou o pé com umas talas improvisadas depois de colocá-lo na posição normal. Este foi o único momento em que o soldado esboçou uma discreta reação, depois tudo voltou como ele o havia encontrado. Seria necessário suturar aqueles cortes, mas ele não dispunha de nada para isso. Como os sangramentos estavam relativamente controlados com as ataduras que fixou sobre eles, resolveu pegar sua bicicleta e ir até a vila onde a mãe de uma colega da escola, que era enfermeira e trabalhava no hospital, poderia auxiliá-lo. Enquanto pedalava o mais rápido que podia, foi engendrando uma história plausível, que mantivesse em anonimato a presença do soldado, mas que fosse razoável o suficiente para que ela lhe fornecesse os materiais necessários.

Enquanto passava as compressas umedecidas delicadamente sobre os ferimentos para remover o sangue, não deixou de admirar a pele muito clara e os músculos bem definidos que moldavam aquele corpo exuberante musculoso. O rosto dele estava pálido, mas a borda angulosa da mandíbula e os traços definidos tinham uma expressão viril que inspirava segurança. Era um homem bonito alto e forte, ainda jovem, talvez com menos de trinta anos, que naquela situação parecia vulnerável e carente, e isso despertou nele um sentimento que nunca havia experimentado. Sentiu-se atraído, tanto física quanto emocionalmente, por aquele desconhecido. Embora o soldado estivesse inconsciente, havia muita energia contida naquela musculatura, e ele a sentia sob suas mãos, enquanto as deslizava sobre ela. O tórax largo e coberto por alguns pelos reluzentes tinha um tom acobreado, bem como os dos braços e coxas. Sua virilha era potente e revestida de pentelhos grossos aloirados. Um sacão globoso e flácido permitia distinguir duas bolas enormes em seu interior. O cacete muito grosso estava recoberto por veias sinuosas que se ramificavam como os feixes de luz de um raio na escuridão, e uma cabeçorra vermelha se destacava, indecentemente, como a cúpula de um cogumelo. Havia um cheiro másculo naquela região, e ele aproximou seu rosto para aspirar aquele aroma viril numa curiosidade febril.

O hospital estava lotado, aqueles tempos de guerra trouxeram muitas pessoas, e pelas quais havia pouco a se fazer. Quase todos os médicos foram recrutados para o continente, como seu pai, e haviam restado apenas dois, de idade avançada, que se desdobravam para dar alento àqueles enfermos. A mãe de sua colega estava tão ocupada, cuidando de uma enfermaria lotada, que pouca atenção deu a história de um bezerro que se ferira gravemente no arame farpado de uma cerca, e lhe forneceu tudo de que precisava, sem muitos questionamentos.

Voltou para casa e, seguindo as instruções que encontrou no livro de primeiros socorros, esterilizou todos os instrumentos na panela de pressão.

- Andria, o que você está aprontando aí na cozinha? – perguntou a avó, vendo que o neto entrava e saía da casa num alvoroço constante.

- Nada de especial, estou apenas testando umas coisas. – respondeu convicto.

Passou o resto da manhã empenhado na oclusão dos ferimentos. Era como se ele estivesse costurando um boneco, pois seu paciente não reagia a nenhum estímulo. Não fosse o débil movimento de expansão do tórax a cada inspiração, podia-se jurar que estava diante de um cadáver. Esse temor o acompanhava a todo o momento. Se o pior acontecesse, como se livraria da situação? Seria responsabilizado pela morte daquele homem? Podiam condená-lo por traição, uma vez que acobertava um inimigo? Seus pensamentos fervilhavam, mas uma certeza apaziguava seus temores, não era certo deixá-lo morrer naquele rochedo, distante de sua terra, sem que ninguém o socorresse.

Durante o almoço os avós queriam saber o motivo de sua ausência por tantas horas. Foi preciso inventar outra mentira, como sempre acontece quando se cria a primeira, para sustentar o insustentável. Mas os avós conheciam bem aquele espírito descompromissado, ávido por liberdade, que a adolescência só fazia ganhar força a cada dia, e não o importunavam com sua curiosidade. Mesmo porque, a vida naquele lugar tinha seu ritmo próprio, quase sempre desprovido de sobressaltos, e nada podia acontecer àquele garoto naquele mundo esquecido.

Passou a tarde toda tentando melhorar as acomodações de seu paciente. Trouxe uma velha cama de ferro do sótão, que lhe custou boas horas de trabalho para juntar os pedaços. Ajeitou sobre ela um dos colchões que os trabalhadores deixaram esquecido num canto. Providenciou lençóis, travesseiros e cobertores, e até um criado-mudo, montado a partir de caixotes de frutas. No final da tarde sentiu orgulho de si mesmo. Aquele amplo aposento, todo caiado de branco, com as tábuas do piso lavadas e as janelas abertas deixando entrar uma brisa suave e carregada do aroma das flores do orégano, que crescia selvagem nos arredores, tinha mais conforto e tranquilidade do que a enfermaria do hospital. Ele podia voltar a se aquietar, não fosse a febre que o piloto apresentava. Seu corpo estava encharcado e ele tremia sob os cobertores. Seguiu novamente as instruções do livro, que se transformara numa espécie de guia para todas as suas ações, mas desta vez os resultados demoraram a aparecer.

O homem permanecia inconsciente havia três dias. Andria começou a duvidar que ele um dia acordasse, embora a febre tivesse cedido, reaparecendo sempre nos finais de tarde, mas com menor intensidade. Se ele não acordasse teria que tomar outra decisão, pois era preciso alimentá-lo, ou morreria de inanição. Jikol rosnou ao subirem a escada da torre, no inicio daquela noite quando, depois do jantar, ele foi conferir como o homem estava. Assim que chegou ao último degrau, viu que ele se agitava na cama e tentava se levantar. Correu em sua direção tentando impedi-lo, mas quase foi derrubado ao procurar conter seus movimentos. Seus olhos estavam arregalados e ele tentava se localizar. Foi só depois de alguns instantes que ele percebeu que não estava sendo agredido, mas que aquele garoto tentava ajudá-lo, e seu semblante se acalmou.

- Você não sabe como estou aliviado por ver que você acordou. – disse Andria, num alemão quase perfeito que seus avós, de origem suíça, lhe ensinaram durante as aulas que geralmente aconteciam na cozinha antes do jantar, quando ele ainda era pequeno.

- Onde estou? O que aconteceu? Sinto dores por todo o corpo. – perguntou o homem, acomodando seus olhos à luz do ambiente.

O jovem contou-lhe pormenorizadamente tudo desde que o encontrara desfalecido no rochedo.

- Houve uma pane no meu avião. Tive que ejetar o assento e só me lembro de estar flutuando na escuridão da noite antes de bater violentamente contra alguma coisa, depois não me lembro de mais nada. – revelou o soldado.

- Você caiu num rochedo aqui perto há três dias, e eu o trouxe para cá. Ninguém sabe que está aqui, nem meus avós. Tive receio de que o entregassem aos militares. – esclareceu Andria.

- Eles vão me matar, no mínimo serei considerado um prisioneiro de guerra. – declarou, voltando a se agitar.

- Fique tranquilo, você precisa se recuperar, e ninguém virá aqui. Estará seguro, fique calmo. – disse, com a voz calma e um sorriso acalentador.

- Obrigado. – respondeu, terminando de se ajeitar entre os cobertores, e voltando a mergulhar no sono depois do esforço.

Andria não conseguia conciliar o sono, estava contente demais com o resultado de seus esforços. Levantou-se e saiu sorrateiro em direção à torre, colocando o dedo sobre os lábios e emitindo um sibilo na direção de Jikol, para que ele fizesse silêncio, uma vez que demovê-lo de o acompanhar era tarefa impossível. O homem acordou com sua chegada e tentou levantar-se. Andria o ajudou acomodando os travesseiros em suas costas.

- Está com fome? Quer alguma coisa? – perguntou, visivelmente feliz com aquele progresso.

- Estou com muita sede, e fome também. – respondeu, com a voz vagarosa suplantada pela dor.

- Vou buscar alguma coisa para você comer. E trazer uns comprimidos que agora, que está consciente, vai poder engolir e que vão ajudá-lo a se recuperar. – retrucou Andria, como faria um bom médico.

- Sou muito grato pelo que está fazendo por mim. Como se chama garoto? – perguntou, fazendo-o voltar contrafeito à realidade de adolescente.

- Me chamo Andria, que é como se diz Andrés em dialeto corso. E você? – questionou curioso.

- Sou Wilhelm. – respondeu, esboçando seu primeiro sorriso.

Ele devorou tudo que Andria havia conseguido juntar na geladeira, esquentar e ajeitar sobre um prato, que faria inveja a qualquer um dos trabalhadores que apareciam na propriedade. Conversaram durante toda a madrugada, e os medicamentos deram uma sensível melhorada no estado geral dele.

Com o passar dos dias ia ficando cada vez mais complicado esconder a presença daquele homem. Era comida demais que Andria estava comendo, longos períodos de ausência, sem que ninguém soubesse de seu paradeiro, o sumiço de todo estoque de analgésicos, antibióticos e anti-inflamatórios do armário do banheiro, afora um ar misterioso que se espalhava em seu semblante. Isso não podiam ser apenas os hormônios da juventude em ação, havia algo mais por trás de tudo aquilo. Petru fora despachado diversas vezes com as desculpas mais esfarrapadas, e também começava a ficar intrigado com aquela indiferença do amigo.

- Eu fiz alguma coisa que te magoou? Se fiz, me conte. – perguntou, depois de levar mais um fora.

- Não, claro que não. Sou estou ocupado. – retorquiu, sem convencê-lo.

- Ocupado com o que? Não é época de colheita, você está com as lições sempre em dia, seu avô me disse que você anda perambulando pela praia por horas a fio, o que está me escondendo? – insistiu.

- Não estou escondendo nada! – respondeu exasperado.

- E por que está sendo tão rude comigo? Que mistério é esse? – continuou, ciente de que algo estava por trás de toda aquela irritação.

- Quem tem mistérios a esconder é você. – revidou irritado.

- Do que você está falando? Eu não tenho mistério nenhum. – disse cauteloso.

- Eu vi você e a Jeanine no galpão nos fundos da sua casa. – confessou, na tentativa de intimidar o amigo.

- E daí? Qual é o problema? Vai me dizer que ficou com ciúmes? – revidou, empertigado.

- Ridículo! Você se acha, não é? – berrou furioso.

- Quando eu falo que essa sua bundinha está cada dia mais roliça e gostosa você desdenha. Mas agora está com ciúmes da Jeanine, que me confessou que já teve uma quedinha por você e você a esnobou. – disse zombeteiro.

- Saia daqui! Não quero ouvir suas besteiras! – bradou, enquanto tentava dar um empurrão em Petru.

Este o agarrou pelos braços e tentou beijá-lo à força, mas uma joelhada no saco fê-lo soltar e despejar uma série de impropérios. Enquanto Andria procurou sair correndo dali em direção à praia, pois estavam próximos demais da torre e ele ficou receoso que Petru descobrisse seu segredo. Quando o fôlego voltou, e a dor permitiu, ele saiu correndo atrás dele, alcançando-o já na areia da praia.

- Quando eu te pegar vou enfiar meu caralho nesse seu cuzinho e você vai ter que implorar pelo meu perdão. – ameaçou

- Perdão? Vai esperando, nunca vou te pedir perdão! – vociferou quase sem fôlego.

- Só não te pego aqui mesmo por que, depois do que você fez, acho que meu pau não vai endurecer. Sabia que isso dói e você podia ter me machucado seu viadinho gostoso? – disse provocativo.

- Me solta! Viadinho é seu....! – interrompeu arrependido do que ia dizer.

- Não tem por que você ficar tão bravo comigo só porque me viu comendo a Jeanine. Quando eu falava que você é um tesão você fingia não ouvir ou me dava uma bronca, e agora está com ciúmes. – continuou na maior desfaçatez.

- Cala a boca! Você não sabe do que está falando. Para de me irritar! – berrou, voltando a tentar socar aquele macho convencido.

Petru de uns tempos para cá vinha realmente sentindo uma atração pelo corpo liso e deliciosamente esculpido daquele que deixava de ser um menino, meio magrela, e começava a ser tornar um jovem bastante alto e atraente, mantendo, no entanto, aquela ingenuidade e pureza que o faziam punhetar-se, durante o banho, a cada vez que se lembrava do amigo.

Ficaram sem se falar por alguns dias. Andria desfrutou daquela ausência em companhia de seu novo objeto de cuidados. Ficava horas conversando com Wilhelm e acompanhando sua recuperação, que parecia acontecer mais rápido do que ele gostaria. Sempre que o piloto perguntava por outras pessoas, pela distância até a vila, pela possibilidade de sair dali, Andria desconversava ou mentia mesmo, dizendo que a vila ficava muito longe, que estavam isolados e que ele precisava ter paciência. Era vital que ele não colocasse o pé no chão ou poderia comprometer a consolidação. E assim, ganhava tempo e prolongava o prazer de sua companhia. A princípio Wilhelm sentia certo constrangimento quando Andria o ajudava durante o banho, ensaboando-o e esfregando suas costas, mas depois começou a sentir um discreto prazer naquelas mãos suaves, de dedos muito finos e longos, acariciando sua pele. Chegava a sentir tesão, e quando isso acontecia, afastava-o com rispidez, sem que ele compreendesse o motivo daquela grosseria. Depois se arrependia e voltava a tratá-lo com carinho, o mesmo com que o garoto sempre o tratara. Estava tempo demais sem qualquer contato com uma mulher, e aquela submissão e desvelo com que era tratado, enchiam-no de vontades, que o corpo em franca recuperação começava a reclamar.

Quando o pé já não doía tanto e parecia firme em sua posição, começou a arriscar uns passos pelo aposento. Já não aguentava mais ficar na cama. E foi assim, em pé, mal apoiado na cabeceira da cama que Andria o encontrou numa manhã ensolarada.

- O que você está fazendo? Ficou louco? Quer por tudo a perder? – censurou zeloso.

- Preciso começar a me movimentar. Não posso ficar eternamente deitado, isso não vai ajudar a me recuperar. – respondeu decidido.

- Está bem. Então tome seu café e depois você se apoia em mim e ensaia uns passos, está bem? – concordou frustrado e ao mesmo tempo contente com aquela disposição.

Havia dois pares de janelas no aposento do mezanino, um dava para oeste, para o mar, e outro, para o lado oposto onde se viam os vinhedos escalando as colinas. Por isso, ora a brisa tinha cheiro de mar, ora tinha perfumes do maquis. O sol banhava quase metade da extensão do piso, antes de se colocar a pino, na parte mais quente do dia, para depois de inclinar, já mais brando, até desaparecer atrás da crista dos morros. Andria levou-o até as janelas que davam para o mar. Era a primeira vez que Wilhelm via onde estava. Achou o lugar lindo, paradisíaco, em suas palavras deslumbradas.

- É perigoso, alguém pode vê-lo, e ninguém imagina que haja pessoas morando na torre nessa época do ano. É um lugar onde nada acontece, tudo aqui é sempre igual, sem perspectivas. – desabafou Andria.

- Você está brincando! Tudo que eu queria era morar num lugar tão maravilhoso. Há uma calma serena que contagia a gente. Você não faz ideia de como o mundo está em alvoroço lá fora. – declarou, exausto dos infortúnios que a guerra impusera a sua cidade e ao seu país.

- Você diz isso por que já viu o mundo lá fora. Eu nunca saí desta ilha, e estou ficando cada vez mais sozinho nela. – revelou desolado.

- Você tem seus avós, e quando a guerra terminar seu pai vai voltar e vocês vão viver juntos novamente. Depois você arruma uma namorada e tudo muda de figura, seja paciente. – aconselhou sensato.

- Não quero uma namorada. Quero saber o que existe depois desse mar todo. O país dos meus avós é lindo, vi as fotografias, quero conhecê-lo, talvez fazer uma faculdade, viver lá. – suspirou desejoso.

- Você é jovem, vai ter muito tempo para isso. – acrescentou compreensivo.

- Tenho dezessete anos, não sou mais um menino. – afirmou ingênuo, com aquela pretensão que todo adolescente tem de se achar mais maduro do que suas ações o atestam.

- Eu sei, você é quase um homem. – brincou risonho. Sentiu um afeto perturbador por seu salvador, e o envolveu em seus braços.

Andria se sentiu protegido como quando pegava na mão de seu pai quando menino. Aquele homem másculo era capaz de despertar nele sentimentos novos, que lhe eram mais do que agradáveis, eram viscerais, e lhe despertavam tesão.

Passaram-se muitas semanas e os dois estavam cada vez mais próximos. Eram os momentos mais agradáveis que já viveram, suas personalidades se completavam e, cada um a seu modo, nutria sentimentos pelo outro que, de tão intensos, criavam situações em que um simples toque de pele gerava uma descarga de adrenalina capaz de incendiar seus corpos. Havia desejo, tesão, necessidades despertadas, mas também havia afeição, desprendimento e paixão. As discussões eram raras, e aconteciam mais pela sensação de aprisionamento que Wilhelm experimentava, do que pela irascibilidade de seus gênios. Ele queria sair daquele quarto, caminhar, aspirar o ar salgado do mar, mas era censurado pelo medo que Andria sentia de que fosse descoberto e o levassem dali, que o afastassem dele. Chegou a entrar em pânico quando, numa noite de lua cheia e brisa morna, que durante aquela estação costumava soprar do Saara, não o encontrou na torre. Chamou por ele, vasculhou os arredores, chegou a pensar que ele havia partido, uma vez que a muleta que havia lhe trazido o deixava com mais liberdade para se movimentar. Mas quando foi até a beira da falésia, encontrou-o sentado sobre as rochas, mais abaixo, contemplando o mar que cintilava à sua frente com a luz da lua. Estava sem camisa, as pernas abertas e se entretinha com alguma coisa, que ele, da posição em que estava não conseguia distinguir. Desceu lentamente até onde ele estava e, ao aproximar-se, viu que o calção que usava para dormir estava na altura de seus joelhos, e ele se punhetava com o vigor de um macho não saciado.

- O que está fazendo aqui! Não posso ter alguns instantes de privacidade? – questionou Wilhelm exasperado, enquanto tentava puxar o calção para cima cobrindo sua jeba dura.

- Fiquei preocupado quando não te encontrei. Tive receio de que você tivesse partido. – balbuciou Andria, num misto de quase choro e alegria por constatar que seus temores não eram reais.

- Me deixe sozinho, preciso de um mínimo de privacidade. – retrucou com a voz abrandada.

- O que está fazendo aqui? – insistiu Andria.

- Estou batendo punheta! Sabe o que é punheta? Então, eu preciso descarregar minhas energias, ou vou enlouquecer. – revidou contrariado, por ter sido interrompido.

Sem dizer mais nada, Andria foi até ele, ajoelhou-se diante de suas pernas abertas e voltou a arriar o calção fazendo a pica enrijecida saltar para a liberdade. Deslizou suas mãos pela virilha peluda e segurou aquele cacete indômito com suavidade e determinação. Aproximou seus lábios da glande e beijou aquele orifício que, em seguida, começou a lambuzar sua boca. Abocanhou a cabeçorra e começou a chupar, enquanto punhetava o membro grosso e quente que pulsava em sua mão. Lambeu, explorou e acariciou aquela vara massuda e suculenta que ficava cada vez mais rija e difícil de movimentar. Lambeu o sacão peludo, chupando os bagos intumescidos com delicadeza e gula, enquanto os pentelhos grossos faziam cócegas em seus lábios. O piloto segurou sua cabeça entre suas pernas e gemia ao sabor daquela boca habilidosa massageando seu pau. Enfiava-o na garganta de Andria, fodendo a maciez úmida e aveludada de seus lábios. Agarrava-o com força desmedida e socava o caralhão até suas bolas taparem a boca dele, sufocando-o. Colocou-se de pé e puxava a cabeça dele contra sua virilha a cada tentativa que este fazia para conseguir respirar. Estava com tanto tesão que não percebeu que ele estava se sufocando com aquela jeba entalada em sua garganta, e deixou que sua porra inundasse aquela boca macia e desejosa. Andria engoliu aquele sêmen espesso e cheiroso com devoção e a idolatria de quem recebe aquilo como um presente. Saboreando, extasiado, cada gota daquele néctar viril. Wilhelm puxou-o para junto de si e o beijou demoradamente com a condescendência altiva de quem reconhece a prestimosidade do seu empenho em satisfazê-lo. Andria encarou-o com ternura, para que ele soubesse que estava ali, inteiro, de corpo e alma, para preencher suas carências. A partir desse dia não só compartilhavam um segredo, mas se tornaram cumplices em algo muito mais profundo. E, embora Wilhelm sentisse um tesão incontrolável pela bunda carnuda daquele jovem descobrindo o sexo, fazia um esforço sobre-humano para não deixar suas necessidades carnais obnubilarem sua racionalidade. Andria, conhecedor desse seu poder de sedução, lançava mão dos mais ardis estratagemas para sentir aquele caralho saboroso preenchendo suas entranhas, frustrando-se cada vez que o piloto conseguia sobrepor a razão às emoções. Wilhelm não se sentiu no direito de desvirginar aquele garoto, talvez criando expectativas que ele jamais poderia suprir, uma vez que ele tinha uma vida lá fora, e tão breve quando possível, queria voltar a vivê-la.

Num final de manhã de nevoeiro baixo e uma garoa persistente, voltando da escola, Andria viu um jipe militar estacionado em frente à porta principal da casa dos avós. Seus batimentos cardíacos dispararam, e subitamente suas pernas não queriam mais obedecer ao seu cérebro e ele estagnou no meio do gramado como se fosse uma estátua. Pela ampla janela da biblioteca conseguiu ver dois oficiais franceses postados diante do avô sentado atrás da mesa de mogno. Seu primeiro impulso foi correr até a torre e avisar o Wilhelm que ele precisava se esconder, pois fora descoberto. Chegou sem fôlego ao aposento onde ele fazia exercícios para melhorar a mobilidade do pé fraturado. Despejou atabalhoadamente as palavras de forma que ele quase não compreendeu do que se tratava. Andria o agarrou pelo braço e começou a puxá-lo escada abaixo querendo levá-lo a um esconderijo que ele já havia preparado para essa eventualidade. Quando teve a certeza que ele estava seguro, procurou dar um ar de descontração as suas feições e entrou na casa. A avó estava afundada numa poltrona, segurava uma caixinha forrada de veludo verde-musgo nas mãos trêmulas e a fitava com olhos devotos e úmidos.

- Mais uma vez, lamento ser o portador de notícia tão pesarosa, senhor Denzler. Até mais! – ouviu o oficial mais corpulento dizer, ao se despedir do avô com o quepe debaixo do braço e a postura rígida dos militares.

Andria acompanhou com o olhar a saída dos dois oficiais que passaram por ele sem dizer uma palavra. Seu coração experimentou um novo sobressalto. Quando chegou até o batente da porta da biblioteca sua intuição já adivinhara o motivo daquela visita, e vendo as expressões arrasadas nos rostos dos avós, sentiu as lágrimas quentes brotando de seus olhos e rolando incontroladas pela face. Um longo silêncio reinou entre os três.

- O que foi que aconteceu com papai? – conseguiu balbuciar depois de muito tempo. As palavras foram difíceis de articular.

- O quartel onde ele estava foi bombardeado no início desta semana. – disse o avô, sem conseguir encará-lo. Enquanto a avó retomava um soluço pungente diante daquela frase que corroborava mais uma vez aquilo que ela não queria acreditar.

Andria saiu correndo pela porta da frente sem se preocupar em fechá-la, e sem se incomodar com a garoa que havia se intensificado e começava a se transformar em chuva. Correu a esmo, sem rumo, até sentir câimbras nas pernas. Seu peito estava tão oprimido que parecia estar debaixo de uma pedra enorme, que dificultava a respiração. Suas roupas estavam molhadas de suor e da chuva quando ele desabou, de joelhos, na areia molhada da praia. As lágrimas haviam secado, mas sua visão continuava embaçada. Um vento frio começou a soprar depois que a chuva parou, a tarde estava escura e a umidade parecia ter penetrado seus ossos, quando sentiu uma mão sacudindo seu ombro. Foi como se ele voltasse de um transe. Num primeiro momento não sabia o que estava fazendo ali, nem que horas eram, apenas voltou seu olhar em direção a uma voz que acabara de dizer algo que ele não compreendeu.

- Andria! Andria! O que houve? Fiquei esperando seu retorno por horas. – disse Wilhelm, sem entender o que estava se passando.

- Meu pai ..., meu pai ... agora estou só no mundo. – balbuciou confuso, e sem coragem para pronunciar o que de fato acontecera a seu pai.

- Sinto muito Andria. Lamento que já tenha sofrido tanto com essa pouca idade. – condoeu-se, enquanto o ajudava a se levantar, envolvendo-o com seus braços. – Venha! Você não pode ficar aqui com essas roupas encharcadas. – acrescentou, tomando o rumo da torre.

Ajudou-o a se despir, e como ele não o largava, temendo romper aquele vínculo que parecia ser o único a dar motivo para estar vivo, enfiaram-se sob os cobertores. Wilhelm colocou a cabeça dele sobre seu peito e afagou seus cabelos. Isso o acalmou e fez cessar o choro contido. Depois de algum tempo, Andria começou a contar como fora a vida dele e do pai, após a morte da mãe. Falava pausadamente, como se estivesse revivendo cada instante daqueles episódios que narrava. Escurecera e eles permaneciam na penumbra que a luz do luar lançava sobre as tabuas do piso. Não perceberam a presença de Petru, parado nos degraus da escada, vislumbrando, boquiaberto, a cena do amigo nu, enlaçado nos braços de um homem estranho que falava alemão. Ele continuou a ouvir a conversa em silêncio, camuflado pela pouca luminosidade, tentando descobrir o segredo que o amigo vinha escondendo dele. Ele não sabe quanto tempo ficou ali, mas aos poucos foi decifrando o mistério, até se certificar de suas suspeitas. Andria estava escondendo um militar alemão, isto explicava seu comportamento esquisito dos últimos tempos. E, o pior, ele estava se entregando a ele como uma puta. Seu sangue ferveu nas veias. Ele fora sutil na sua persuasão, fora claro e objetivo nos seus desejos, e sempre fora rechaçado com ímpeto, agora um estranho desfrutava das caricias que ele reivindicava.

Tomado de um furor visceral, Petru entrou na casa chamando pelo avô de Andria. A casa estava quase às escuras, ambos estavam na cozinha envoltos num silêncio que, a princípio, ele nem percebeu. Mas quando pode encarar a feição do avô de Andria, e viu o amargor estampado nela, não conseguiu continuar.

- Você veio procurar pelo Andria? Já soube o que aconteceu a nosso filho? Ele deve estar por aí, tentando assimilar a morte do pai. – disse o velho senhor, mais acabrunhado e senil do que nunca.

- Como? O filho de vocês faleceu. O pai que Andria tanto esperava ter de volta. – conseguiu articular derrotado. – Sinto muito, muito mesmo, senhor e senhora Denzler. Vou contar a minha mãe. Vocês estão precisando de alguma coisa? – acrescentou solícito.

- Não obrigado, filho! Não há mais o que ser feito. – sussurrou a senhora Denzler, fazendo mecanicamente as tarefas para dar continuidade à vida.

O enterro aconteceu dois dias depois. Petru ficou ao lado de Andria quando o caixão desceu à sepultura, e segurou discretamente sua mão. Não voltaram de carro com os avós, a mãe e uma das irmãs de Petru. Preferiram vir caminhando em silêncio.

- Por que você dá abrigo a um homem que é seu inimigo? Dos mesmos que foram responsáveis pela morte do seu pai? – vociferou Petru, quando já estavam próximos da propriedade. – Eu já sei de tudo. Vi você se entregando a ele como uma puta vulgar. – acrescentou exasperado.

- Cretino! Você não sabe de nada. Você estava me espionando? – descontrolou-se Andria, diante da descoberta de seu segredo.

- Sei que você esconde um homem no alojamento da torre. Que se deita nos braços dele, e confidencia sua vida para ele, ao invés de entregá-lo aos militares. – continuou esbravejando.

- Vá para sua casa! Não vou ficar discutindo com você. – proclamou, antes de começar a correr em direção à torre.

Petru o seguiu, decidido a expor aquele segredo e entregar o homem à polícia. Quando Andria chegou ao piso superior não encontrou ninguém. Olhou pelas janelas que davam para o mar na expectativa de encontrar Wilhelm caminhando pela praia e avisá-lo do perigo. Quando se voltou para o interior do aposento viu um bilhete próximo aos travesseiros. – OBRIGADO POR TUDO O QUE FEZ POR MIM, MAS DIANTE DOS ACONTECIMENTOS NÃO POSSO MAIS ABUSAR DO SEU CARINHO. ENQUANTO EU VIVER VOCÊ ESTARÁ ENTRANHADO NO MEU SER. COM TERNURA, WILHELM. – Tudo virou um borrão vermelho diante de seus olhos, e ele investiu contra Petru com a fúria descontrolada de um leão. Despejou todo seu ódio, na forma de socos, contra a silhueta que permanecia parada diante dele.

- Eu vou te matar! Você fez ele ir embora. Você deve tê-lo ameaçado, seu desgraçado, miserável! – gritou, enquanto desferia os golpes sem um destino objetivo.

- Eu não fiz nada! Deixa de ser histérico. Ele te abandonou por que deve ser um cara sensato! – revidou, imobilizando a fúria do amigo.

- Eu já perdi tudo na vida! E você só quer ver a minha desgraça. – retorquiu, cego pelo abandono.

Petru era muito mais forte do que ele e imobilizou-o sobre a cama, machucou seus braços e diante dos gritos de Andria, deu-lhe um bofetão no rosto. Ele engoliu o choro e o encarou desafiador. Petru lançou-se sobre ele e o beijou com fúria, esfregando seus lábios nos dele até machucá-los. Andria tentava empurrar o corpo que o imobilizava, mas não conseguiu desloca-lo. Prevendo que ele poderia repetir a joelhada no saco que já o afastara uma vez, Petru arriou as calças de Andria até os joelhos, agarrou sua bundinha macia, e começou a palpá-la com força, fartando-se naquelas nádegas tenras. Decidido a tomá-lo para si, puxou a camisa dele fazendo os botões voarem pela cama, expondo os mamilos de biquinhos salientes. Mordeu-os com voracidade e volúpia, chupando-os até se tornarem montículos protuberantes, como os peitinhos de uma menina moça. Andria gemia sufocado por aquele ataque indefensável, contorcia-se na tentativa de uma fuga, mas só conseguia com isso aumentar o tesão de Petru por aquela pele morna que o excitava há tempos. Os dedos tarados dele penetraram o cuzinho de Andria, que interrompeu sua respiração ofegante liberando um grunhido exaltado quando seu esfíncter anal foi manipulado. Sentiu-se devassado pela luxúria que ardia nos olhos de Petru. Aquelas pregas temerosas atiçavam os instintos dele, deixando seu caralho tão duro que era impossível mantê-lo dentro das calças. Ele desabotoou a braguilha com maestria e rapidez, liberando sua jeba para a libertinagem. Roçou-a contra as nádegas macias de Andria, antes de guia-la, com uma das mãos, pelo rego imaculado à procura da intumescência espástica na qual queria se alojar. Forçou a cabeçorra contra o introito ocluído pelo descompasso entre os dois. Insistiu, persistiu, até que uma investida mais bruta fez com que um quarto da pica se atolasse no cuzinho indefeso. Andria gritou. Um berro estridente, carregado de dor, que iniciou uma sequência incontrolável de espasmos involuntários que percorriam todo seu corpo. Ciente de que alcançara seu intento, que tinha o amigo sob seu jugo, esperou que este voltasse a ter o controle sobre sua musculatura devassada. E então, dominou-o com uma penetração lenta, suave, que ia preenchendo as entranhas de Andria com a virilidade de seu cacete descomunal. Só parou quando a vara calibrosa estava completamente atolada naquele cuzinho apertado, fazendo suas bolas se comprimirem de encontro com o rego arreganhado. Moveu-se sensualmente procurando esfregar seu corpo naquela pele fresca, arrepiada e cheirosa que jazia languida e submissa a seu dispor, enquanto o cacete se movia comprimido dentro daquele covil úmido e morno. Petru beijava a nuca de Andria, lambia seu cangote, mordia seu pescoço marcando-o com seus dentes como se marca uma res assegurando sua posse. Começou a movimentar a jeba num entra e sai que fazia Andria soltar gemidos quando o cacete o arregaçava, e a arfar, quando deslizava esfolando sua ampola retal. Quando teve a certeza de que Andria não tinha mais vontade própria, que suas ações eram recebidas sem objeções, Petru virou-o de costas e abriu suas pernas, fazendo-o apoiar seus joelhos sobre seus ombros e meteu o caralho no cuzinho dele encarando-o com a libido a extravasar por todos os músculos de seu corpo. Andria conteve um gritinho sufocado e deixou-se invadir por aquela potência latejante e quente, comprimindo seus esfíncteres para agasalhar a rola calibrosa, submissa e carinhosamente. Eles convergiram até quase se fundirem, respiravam concatenadamente, sentiam seus corações pulsando em harmonia e deixaram o prazer fluir livre por seus corpos atados. Naquele instante todas as mazelas desapareceram, Andria esqueceu-se do mundo e da realidade fora daquele aposento, e aquela estaca cravada em suas entranhas deu-lhe a sensação de segurança que há muito ele procurava. Quando a porra viscosa começou a encher seu cuzinho, e seus olhos marejaram de tanta felicidade, deslizou as mãos pelo rosto de Petru trazendo-o para sua boca, e beijou-o seguidamente com sutileza e devoção. Petru entregou-se aquele carinho ciente de que seria o macho dele dali em diante.

Uma nova estação de vindima se aproximava. O avô de Andria não se sentia mais disposto e capaz de tocá-la sozinho, sua saúde já não estava lá estas coisas e, os fatos recentes o desestimularam de vez. Contratar trabalhadores sazonais, acompanhar a vindima de perto, e produzir a safra de vinho exigia mais do que ele se sentia capaz de render. E, na sequência, seria preciso fazer a colheita das oliveiras. Eram meses em que a propriedade vivia um pequeno alvoroço, trabalho não faltava, e isso, era coisa para gente jovem.

- O que você acha de contratarmos Petru para gerenciar os trabalhos este ano? Acha que ele vai aceitar? – perguntou a Andria, na mesa do almoço de domingo. – Ele conhece bem todas as atividades e me parece um rapaz muito responsável. – acrescentou.

- Acho que sim, vô. Há algum tempo atrás ele até comentou comigo que talvez fosse procurar um trabalho na vila. – respondeu animado.

- Peça para ele vir aqui conversar comigo. Ando muito cansado para tocar o trabalho sozinho. Vamos ver no que dá. – comentou o avô.

- Claro! Hoje mesmo vou até a casa dele. – emendou.

Embora a casa de Petru, e sua família, não distasse mais do que um quilômetro e meio da propriedade, o avô de Andria ofereceu-lhe o quarto de hóspedes. Ficaria bem alojado e estaria a poucos passos do trabalho, segundo suas palavras. Ele aceitou de pronto, pois isto significava estar sob o mesmo teto do seu objeto de desejo, e não precisaria arranjar desculpas para estar sempre ao seu lado. Andria também ficou feliz com essa vinda. Além de a casa ganhar mais vida, ele começava a sentir um interesse cada vez maior pelo amigo. Seus sentimentos estavam se transformando. Era certo que sempre gostara dele, mas esse gostar vinha adquirindo conotações mais sensuais, e ele sentia sua falta mesmo que estivessem sem se ver a poucas horas.

O verão terminou e seguiu-se um outono que prenunciava um inverno mais rigoroso. Os trabalhos na propriedade continuavam, embora boa parte do serviço estivesse concluída. Petru se mostrou um excelente capataz. Sabia ser enérgico o suficiente com os operários para que produzissem e, ao mesmo tempo, se sentissem contentes com isso. Sua perspicácia não deixava escapar nenhum pormenor, e a boa safra daquele ano estava gerando bons lucros. Com isso o avô de Andria passava a maior parte do tempo na biblioteca, deixando a seu encargo não apenas a propriedade, mas também o neto que mais parecia sua sombra, de tanto que estavam juntos. Talvez essa certeza de que tudo caminharia a contento sem sua presença, fosse, em parte, responsável por sua morte numa tarde em que o mistral soprava com força. Ele estava em sua poltrona diante da janela, com os óculos de aro fino e um livro de Heinrich Heine no colo, quando a avó de Andria entrou com o chá fumegante que ambos degustavam, diariamente, na cumplicidade calma dos muitos anos de casamento.

Mal as lágrimas de Andria secaram, e pouco mais de um mês depois, foi a vez de Jikol partir. Foi numa noite em que Petru, depois de todos se recolherem, deslizou sorrateiro para o quarto de Andria. Tal como nas inúmeras outras vezes em que suas necessidades carnais clamavam pelo corpo esguio, aconchegante e escultural do amigo, Petru ia afagar a cabeça do cão que ele sempre erguia se colocando a postos com sua entrada no quarto. Era uma espécie de passaporte que o autorizava a usufruir dos carinhos de seu dono. Mas desta vez isso não aconteceu, ele continuou com a cabeça apoiada sobre os chinelos de Andria aos pés da cama e não se moveu.

- Andria! O que há com Jikol? Faz tempo que ele está assim? – perguntou ao entrar.

- Assim como? Não faz dez minutos ele veio fazer festinha e depois foi se deitar. – respondeu, enquanto saia debaixo dos cobertores e se ajoelhava ao lado do companheiro de tantas caminhadas, sentindo as lágrimas rolando pelo rosto.

Quando Andria se preparava para comemorar vinte e um anos foi a avó quem o deixou, vitimada por uma pneumonia. Sua saúde havia se deteriorado muito depois da morte do esposo. Não eram incomuns suas internações no hospital por alguns dias, até que estivesse em melhores condições para voltar para casa. Passava boa parte do dia acamada, e precisava fazer um esforço que a esgotava para acompanhar as refeições do neto e Petru, à mesa. Mas fazia-o de boa vontade. Gostava de saber como andavam as coisas na propriedade, e não economizava elogios pelo excelente trabalho que Petru vinha fazendo. Também se sentia grata por Andria ter uma amizade tão valiosa quanto a sua, e completava dizendo que o destino havia lhe dado mais um neto, uma dádiva que a enchia de felicidade. No início da manhã em que seu caixão desceu à sepultura, o braço de Petru estava sob os ombros de Andria. Ele se sentia duplamente triste, pela morte de uma avó que a vida lhe presenteara, uma vez que não chegou a conhecer as suas, e pelo amigo que somava perdas ao longo de sua curta existência. Enquanto Andria sentia aquele braço protetor como seu único elo com alguém que minimamente lembrava uma família, e por quem ele já não tinha dúvida de estar apaixonado.

O amor deles ia sendo construído aos poucos, ora mais dinâmico e tórrido de paixão que ia se impregnando em Andria como o esperma de Petru, ora mais terno e fluido como a entrega e as caricias que Andria devotava a Petru. Iam se amalgamando sem perceber que estavam produzindo algo sólido que os uniu para sempre. Isso ficou perceptível quando Andria resolveu vender a propriedade e se mudar para o continente.

- Preciso saber o que existe além desse mar. Preciso dar um rumo à minha vida, e não acho que seja capaz de fazê-lo aqui, onde tantos fantasmas me assombram. – revelou, num final de tarde enquanto caminhavam pela praia e o sol ia se pondo tingido de alaranjado. – Parto no final do mês para a Suíça, onde os efeitos da guerra foram menos devastadores, e onde meus avós me deixaram um pequeno patrimônio. – completou.

- Não vou deixá-lo partir sozinho. Vou com você! – declarou Petru.

- Sei que você se sente na obrigação de me amparar. Até porque esta era a expectativa dos meus avós, mas você tem seus próprios anseios, não precisa abrir mão deles por mim. – sentenciou Andria. – Você deve querer constituir sua própria família, ter filhos. E, por mais que isso me doa, não quero que você abandone seus sonhos. – acrescentou.

- Talvez esses até fossem meus desejos há algum tempo atrás, mas não consigo mais me imaginar sem você. Não quero apenas te proteger, quero e preciso do seu amor, e não vou deixar que outro tire isso de mim. – confessou, interrompendo os passos e segurando o rosto de Andria entre as mãos, para encará-lo com determinação.

- Amo você mais do que tudo. Preciso de você como o ar que respiro. – declarou comovido.

- Além do que, não consigo nem pensar noutro macho pegando essa bunda, e esse cuzinho tesudos. Esse território é meu, só meu, entendeu? – brincou risonho, quando agarrou a nádega carnuda.

- Entendi sim! Você o deixa bem demarcado toda vez que entra em mim, minha mucosa fica dias sendo recordada disso, seu brutão! – devolveu num sorriso.

- É assim mesmo que tem que ser. – proclamou, cheio de si.

Seis anos depois Andria se formava em medicina na universidade de Zurique, a mesma onde dois anos antes Petru conseguira seu diploma de advogado. Durante esse tempo moraram num pequeno apartamento, no terceiro andar de um edifício em Niederhof, a duas quadras das margens arborizadas do rio Limmat. Fora um período difícil. Por um lado porque viviam dos minguados rendimentos de uns investimentos que o avô de Andria havia feito para garantir seu futuro, e por outro, porque os últimos dois anos de guerra e os primeiros depois dela, foram especialmente complicados para a Europa. Mas os dois, entretidos com seus estudos, quase não os perceberam passar. Petru trabalhava num escritório de advocacia onde não faltou serviço após o grande conflito, e suas qualidades, logo o promoveram à condição de sócio. Andria montou um consultório do outro lado da avenida onde ficava o escritório de Petru, o que os fazia ir e vir do trabalho, quase sempre, juntos. Ambos prosperaram na profissão e optaram por investir na construção de uma casa nos arredores da cidade, onde nos finais de tarde e início das noites de verão, jantavam sob a copa de uma frondosa faia no quintal dos fundos. Iam se recolher depois que as estrelas já estavam altas no céu, e terminavam a noite, invariável e carinhosamente entrelaçados em conchinha, com a rola de Petru amolecendo lentamente no cuzinho galado de Andria. Era um momento só deles, onde o mundo lá fora deixava de existir, e só a essência de suas almas atadas fazia sentido. Amaram-se assim por décadas, com poucos sobressaltos, muita cumplicidade, e momentos de felicidade única.

De todos os eventos pelos quais passou na vida, talvez o que mais o abateu foi a perda de Petru. Tantos anos juntos, fundindo seus corpos, praticamente todos os dias, num só, produziam a energia vital que o sustinha. Seria preciso mais do que lembranças para que ele pudesse completar sua existência. Ele sabia que teria de voltar às suas origens, tal qual um elefante velho que se afasta da manada para procurar um canto onde possa morrer em paz.

- Há uma casa, sim. Fica a pouco mais de um quilômetro daqui, no final da estrada. Não é grande, mas tem cômodos amplos e bem iluminados. É uma construção antiga e talvez necessite de uma reforma. – esclareceu o proprietário da pousada, depois que Andria lhe questionou sobre alguma casa à venda na redondeza, enquanto um funcionário levava sua bagagem para o andar superior da casa onde vivera sua juventude.

- Seria uma de pedras e telhado inclinado, com uma mansarda do lado esquerdo, logo depois da curva da estrada, com um pequeno galpão nos fundos? – perguntou Andria, ciente de tratar-se da mesma casa em que Petru vivera com a família.

- Esta mesmo. O galpão foi demolido, já faz tempo. – respondeu, encarando-o. - O senhor a conhece? Não pude deixar de ouvi-lo passando seus dados ao registrar-se, seu nome me pareceu familiar, eu tentava descobrir de onde. No verão de 1955, um casal de alemães com dois filhos pequenos, veio se hospedar conosco. Foi nosso primeiro verão como donos da propriedade, e me lembro bem do homem de compleição robusta, pele muito clara e loiro, que perguntou por Andria Denzler. Ele pareceu muito empenhado em encontrá-lo, mas as únicas referências de algum Denzler que constava nos registros do cartório da vila eram de Martim Denzler, pelo que ele me disse tratava-se de seu avô. – comentou o proprietário.

- Exatamente, era meu avô, ele foi o dono desta propriedade até pouco antes do final da guerra.

- Senhor Andria! ... Senhor Andria! ... Senhor Andria Denzler! – bradava, com a voz cada vez mais alta, da moça que, naquela manhã, fizera os proclamas de sua chegada na recepção da pousada. – Está tudo bem com o senhor? Vim ver se o senhor precisa de alguma coisa, e adverti-lo de que é melhor o senhor entrar, pois este vento frio pode adoecê-lo. – continuou, depois de conseguir sua atenção. Ela e os outros funcionários da pousada começaram a se preocupar, depois que aquele senhor grisalho se acomodara numa poltrona de vime, a beira da falésia, e passara boa parte do dia encarando o mar, como se estivesse esperando surgir algo pelo que ele ansiava.

- Como? Ah, sim. Não, obrigado. Não preciso de nada. – respondeu, depois de emergir das suas reminiscências, e perceber que estava anoitecendo.

- Quer que eu o acompanhe? – prontificou-se solícita. – Meu pai me disse que o senhor já foi o dono desta propriedade, na época da guerra? – indagou, num sorriso.

- É verdade, eu não passava de um garoto. – respondeu melancólico.

- Meus pais a compraram do homem para o qual o senhor a vendeu. Quase não me lembro dele, eu era muito menina. – continuou.

- Vendi-a para um casal de americanos, pouco depois do fim da guerra. Já não me lembro como se chamava. – comentou, sem puxar pela memória.

- Eles já tinham uma boa idade quando papai a comprou deles. – acrescentou a moça.

- Naquela direção havia uma construção, uma espécie de torre, ela ainda existe? – perguntou Andria, apontando em direção ao topo da colina.

- Sim, existe. Está coberta pelos castanheiros que cresceram muito e não permitem mais a visão desde aqui. Meu pai a reformou e hoje ela abriga um pequeno bangalô. – esclareceu.

- Você poderia me acompanhar até lá? – solicitou Andria.

- Com prazer! Quer se apoiar no meu braço, é uma caminhada de quatrocentos metros? – prontificou-se, sabendo que seria um esforço para aquele ancião chegar até lá.

- Não, grato. Estou bem. – respondeu.

A torre permanecia altiva reinando solitária no alto do promontório. Também lhe acrescentaram um balcão sob o par de janelas que dava para o mar. O térreo se transformara numa pequena sala de visitas. A escada de pedra que levava ao mezanino tinha agora um corrimão de ferro trabalhado. No amplo cômodo que se descortinava no topo da escada, as paredes continuavam caiadas de branco, o que o fazia parecer maior e bem arejado, e a cabeceira de uma ampla cama estava encostada na mesma parede, como Andria se recordava, com os dois pares de janelas frente a frente. Subitamente ele sentiu uma fraqueza subindo pelas pernas e precisou se apoiar no corrimão. A moça aproximou-se dele e procurou segurá-lo. Instantes depois ele deu dois passos em direção à cama. Ganhou outra vez aquele olhar perdido, parecendo que seus olhos cansados fitavam algo muito além do que estava a sua frente. Ergueu a mão no ar, como se quisesse acariciar alguma coisa. Uma imagem desbotada tremia diante de seus olhos. Nela, o rosto risonho, envolvido pelos cabelos loiros, e desalinhados, do piloto Wilhelm, tinha a mesma expressão de gratidão que ele conhecia. No refulgir da mesma imagem, aparecia o rosto de Petru jovem, encarando-o com aquele ar protetor que ele presenciou durante uma vida. Duas lágrimas apontaram simultâneas nos cantos dos olhos, e desceram mornas, por sua face, enquanto as imagens daqueles rostos se diluíam nelas. Uma dor aguda transpassou seu peito. Ele agora estava só.

- O senhor está bem, senhor Denzler? – inquiriu a moça.

Andria não respondeu. Virou-se e desceu as escadas. Caminharam pelo gramado até a casa, em silêncio. Um silêncio funesto.

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Comentários

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Linda história! Daria um bom filme e com certeza ganharia muitos prêmios. Eu entendi que no final o Adrian avistou o espírito do Wilhelm na famosa torre, como se o Wilhelm viesse busca-lo, linda história.

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Nossa, que conto lindo! Porém, triste. Emocionante a história, envolvente, picante e sobretudo, humana. Daria um ótimo enredo pra um filme e seria maravilhoso. Parabéns! Me emocionou bastante a história. Vc fez tudo perfeito,via todas as cenas na minha mente com uma nitidez impressionante.

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Me permita repetir. Este aqui é especial.

Romance (no sentido de paixão) de descobertas, rito de passagem... paixão juvenil e amadurecimento.

Daria um bom roteiro para um belo filme.

Mais uma vez, parabéns!

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Como sempre, tuas histórias de flash back são maravilhosas. Quanto amor o Andria teve em sua vida! Um amor igual ao dele e Petru é tão raro! Desejo ler mais contos escritos pro ti, pois és estonteante como escritor. Um abraço carinhoso,

Plutão

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Muito linda essa estoria, digna de um filme, parabéns!

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Há como ler e não se apaixonar? Suas histórias são maravilhosas! Sempre com o mesmo "que" de romantismo e erotismo... e, acredite, isso é fantástico! Sou um super fã seu!

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Conto triste, ele é bastante legal, mas deixa a gente pra baixo.

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Tenho uma legião de seguidores dos meus contos, mas quando identifico alguns pelos comentários, sejam eles elogiosos ou apontem uma crítica, fico extremamente contente, e muito grato por se dedicarem a leitura deles. Muito obrigado, valeu mesmo!!!

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Uau, que história linda. Confesso que o começo foi meio chatinho e confuso, e parecia que não despertaria meu interesse, mas quando menos percebi já estava lendo com afinco e torcendo pelos personagens (primeiro pelo alemão e depois pelo amigo). A única parte que não gostei foi do Andria terminar sozinho. Mas depois de reler o começo (que agora compreendo melhor) vejo que já era esperado... Enfim. Pra variar mais uma história sua que leva nota máxima com louvor e todos os elogios possíveis :D

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