Engoli em seco. Edu olhava-me sem sequer piscar, desviando por vezes o foco para Nando, que estava, agora, estático sobre a cama.
Por longos segundos ninguém se pronunciou. Eram escutadas apenas as respirações de nós três, e os pensamentos silenciosos reinavam ali. Até que o garoto resolveu sair daquele clima.
Passou direto por mim, passo a passo, entrando no quarto. Abriu a boca para falar algo que não saiu, e tornou a fechá-la. Mas Nando se pronunciou.
— Edu, o que você escutou...
— O que eu escutei não é da minha conta, eu nem mesmo deveria estar aqui... — ele fez uma pausa, olhando-nos envergonhados. — Mas eu estava. E eu ouvi. Vocês estão mesmo... Vocês são...?
— Gays? — perguntei, arfando. Nando lançou-me um olhar repreendedor, e pude notar que ele ainda não se definia assim. — Sim, Edu. Estamos namorando. Somos gays.
— Uou — disse, apenas.
Não houve tempo para sequer outra indagação, pois a barulheira das duas garotas chegando chamou a nossa atenção.
Nessa começou a gritar, chamado-nos. Nos entreolhamos mais uma vez e, silenciosamente, decidimos que aquilo ficaria ali. Edu foi o primeiro a sair do quarto.
Assim que ele saiu, aproximei-me de Nando. Ele realmente parecia desesperado, nervoso, temeroso com o que poderia acontecer.
— Ele não pode contar, Miguel. Não agora — falou. Seus olhos me passavam uma insegurança que eu não havia visto antes.
— Mas você mesmo disse que ia contar para a sua mãe — afirmei, sustentando seu olhar. A minha resposta foi o silêncio. — Bem... Ele não deve contar nada. Conversaremos com ele depois.
Ao dizer isso, saí do quarto, indo para a sala. Diferenfe de mim, Nando continuou lá.
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Por mais que temessemos que algo de ruim acontecesse - tal como Edu contar algo para alguém - os dias passaram-se tranquilos. Todos pareciam querer viajar, exceto Nessa, sabe-se lá por quê.
Edu e Manu iriam para a casa de uns parentes dela, eu e Nando para a casa da mãe dele. Seriam as melhores férias da minha vida, segundo ele. E talvez fossem mesmo, por ele estar lá.
Combinamos de viajar no dia seguinte, bem cedo. Naquele fim de tarde, eu e Nando ficamos no quarto dele, agarrados, assistindo a uma comédia romântica bem trash - do jeitinho que eu gosto.
Não conversávamos muito (odeio que fala durante filmes, tira toda a concentração), mas só de estarmos juntos ali já era bom. Eu sentia a respiração do rapaz no meu pescoço, arfando, enquanto seu rosto estava quase que colado no meu - os olhos, vítreos, mirando a tela.
— Estou ansioso para amanhã, Guel — confessou.
— Aham. — Fez-se silêncio. Até que ele teimou em falar novamente.
— E você, também está? — disse, levantando um pouco o corpo e olhando para mim.
— Também. — Dizia, vidrado no filme. Nessa hora, a atriz pegou o sorvete e jogou na cara do outro ator, raivosa. Não contive o riso.
— Dá para você prestar atenção em mim e parar de risinhos? — bradou Nando. Virei-me com fogo nos olhos.
— Dá para você prestar atenção no filme e calar essa boca?
Neste momento, Nando saiu do quarto, a resmungos. Eu apenas soltei um muxoxo enquanto tornava a prestar atenção no sorvete e creme escorrendo pelo rosto do ator.
E assim fiz, até que o filme acabou e eu saí do quarto. Nando parecia meio carente, e quase tão estressado quanto as garotas na TPM - o que chegava a ser meio cômico.
Andei pelo segundo andar à procura dele, mas nem sinal. No andar de baixo também o procurei, mas novamente não encontrei. Até no quintal fui buscar, e, advinhem: nada! "Onde diabos ele foi?"
Verbalizei o pensamento a todos da casa, mas ninguém parecia saber. Nessa estava ocupada em seu quarto, fazendo sei lá o quê; Edu e Manu estavam, é... fazendo alguma coisa no quarto dele. Nos dois casos, nem quis perguntar o que faziam.
Subi ao meu quarto, correndo. Assim que entrei, vi a porta de meu guarda-roupas entreaberta, coisa que eu nunca fazia. Quando abri, encontrei umas roupas reviradas, como se alguma tivesse sido tirada.
"Ele saiu com alguma roupa minha, para variar", pensei. Aquela mania do Nando era irritante.
Peguei meu celular sobre o criado-mudo e teclei rapidamente o número dele, para em seguida ligar. Achando que ele não fosse atender, já resmungava a torto e a direito, tanto verbal quanto mentalmente.
O inesperado foi que ele atendeu no terceiro toque.
— O que é? — berrou do outro lado, irritadiço. Já dá para imaginar a minha cara de indignado, né?
— No meu tempo as pessoas diziam "alô", mas eu relevo. — Fiz uma pausa e continuei: — Onde você está?
— No quinto dos infernos — berrou novamente. Fiquei muito, mas muito tentado a desligar na cara dele. Ao contrário disso, continuei com a minha voz controlada.
— Ok, eu entendi. Tchau. — E, então, desliguei. Não esperei ele dar tchau.
Fechei violentamente a porta de meu guarda-roupa e tranquei a porta do meu quarto, jogando-me na cama em conseguinte.
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Não lembro especificamente de ter dormido, apenas recordava-me que havia remoído a raiva por tempos. Assim que acordei, nos primeiros minutos, nem sequer me lembrava da briga mais sem motivo do século, porém a voz de Fernando refrescou a minha memória.
— Miguel. Miguel! — berrava.
— O que é? — gritei em resposta. Estava sendo tão gentil quanto ele ao telefone.
— Abre a porta, precisamos conversar. — Revirei os olhos e fui vagarosamente à porta, a abrindo. A minha primeira visão foi a de um Fernando de braços cruzados, de cara fechada. — Com licença.
Nando entrou e olhou o entorno, procurando por algo que não existia.
— Isso tudo foi só porque eu não te dei atenção? Pelo amor de Deus, Nando!
— Não, Guel, não foi por isso. Foi porque você prefere um filme idiota ao seu namorado, foi porque você me tratou tão rude que achei que iria preferir ficar sozinho.
— Daí usurpou uma roupa minha e saiu feito um maluco por aí? — indaguei.
Nando contraiu o maxilar e descruzou os braços. Seu rosto estava tenso, e seus olhos penetrantes eram como agulhas nos meus. Ele pareceu ofendido.
Tirou a camisa com cuidado e jogou sobre a cama, depois fez o mesmo com a calça cáqui, ficando apenas de cueca.
— Daí eu peguei uma roupa sua [i]emprestada[/i] para ir alugar o nosso carro para amanhã. Mas tá aí, devolvi. Não vou usurpar mais nada, garanto. — Andou até a porta e olhou para trás, sua testa franzida. — Espero que a viagem ainda esteja de pé.
Com as últimas palavras, saiu, fechando a porta atrás de si. Enfim, aquela foi a nossa primeira briga séria pós-início de relacionamento, e a mais sem sentido também.
"O dia ainda vai ser longo", pensei.
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Às quatro da manhã eu não tinha mais raiva, porque eu mais me assemelhava a um zumbi movido a sono. Não que eu tivesse perdoado Nando, claro, isso demandaria muito mais tempo e alguns (muitos) pedidos de desculpa. Mas eu estava incapaz, era inerente à minha vontade.
Por sorte havíamos preparado tudo no dia anterior, e Nando parecia ter despertado antes de mim e levado tudo para o carro. Só tomei banho e me arrumei rapidamente, indo para a cozinha, buscando meu namorado-problema.
Quando cheguei lá, ele estava comendo, cabisbaixo. Sentei-me e balbuciei um bom-dia que mal fora respondido, enquanto Nando enfiava um pedaço de torrada na boca.
E o café foi assim: silencioso. Nada de palavras trocadas, nem olhares, mas Nando não parecia irritado - o que era estranho, pois se assin fosse ele estaria me olhando, certo?
Acabei de comer primeiro que ele e fui escovar os dentes no banheiro, voltando depois para a sala e sentando-me no sofá para esperá-lo. Em menos de cinco minutos ele apareceu, chamando-me para irmos.
É, não havia um clima de viagem. Eu estava morgado, com sono e chateado com tanta frescura e mágoa sem motivos de Nando. Não havia a mesma cumplicidade entre nós, o clima estava tenso. Não queria que ficasse daquele jeito. Mesmo.
O carro que Nando havia arrumado era um Novo Uno, preto. Todas as nossas bagagens estavam na mala, e o garoto já encaminhava-se para a porta do motorista. Perguntava-me se ele sabia mesmo dirigir, e se não teríamos problemas por ele ser menor de idade. Era só o que faltaria para a desgraça ser completa.
Fui para o assento do passageiro, ainda calado. Sentei-me, pus o cinto e fiquei olhando para a frente, sério. O brilho cálido da noite começava a abandonar o céu, dando lugar à luz brilhante do dia, na aurora.
Nando já havia entrado, agora apenas dava a partida e seguia estradas adentro. Rumamos para Touros.
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Foram duros quilômetros até a primeira palavra, dada por ele.
— Eu sei que exagerei ontem — disse, olhando ao longe. — Um pouco.
Limitei-me a soltar o ar rapidamente, desdenhando. Nem sequer olhei para ele.
— Manu veio conversar comigo ontem sobre a nossa briga, ela disse que foi inevitável ouvir. — Parou, como que para eu comentar, mas não teve sucesso. — Ela disse... que nós dois falamos besteira, e que eu fui infantil, mas que isso não era motivo para uma briga assim.
Eu concordava com Manu, e até imaginava a garota e seus trejeitos, vociferando cada letra daquela fala. Mas simplesmente concordar não era o suficiente.
— Eu... — Soltou pigarreio alto e bem descenecário — Me desculpe por ontem, Guel. Eu passei do limite do ridículo.
— Ainda bem que sabe — respondi, pela primeira vez. Após isso, fez-se silêncio.
Mais alguns quilômetros e Nando pôs Bungee Jump - de Rafael Almeida - para tocar. "Golpe baixo", vociferei mentalmente, porque aquela era a minha música favorita.
"Mas eu não vou roubar uma flor
Não vou pular de Bungee Jump
Não me peça mais nenhuma prova de amor
Apenas me ame"
O restante do caminho de ida foi regado a mais músicas do tipo, e quilômetros e mais quilômetros de asfalto; quer dizer, até certo ponto, porque o meu "motorista-namorado-idiota" resolveu pegar um atalho por uma estrada de terra mais esburacada que queijo suíço.
Não perguntei a ele se aquele atalho nos levaria a nosso destino, ou se ele apenas resolvera entrar lá para cortar caminho, apenas observei. Após alguns metros, a estrada de terra foi ficando mais estreita, e o vazio foi sendo tomado pelo denso verde (que saiu sabe-se lá de onde). Eu ouvia o canto de alguns pássaros, e por vezes os via. Mas foi quando algo grande correu ao lado do carro que me assustei.
— Aonde vamos? Ou melhor, onde estamos? — indaguei, apressado, olhando para Nando com rispidez.
— Espere, não posso contar.
Como sempre, mil e uma coisas se passam em minha cabeça, desde que ele estava perdido a planos conspiracionistas. Mas nada parecia fazer muito sentido, ou talvez eu não queria que fizesse.
Cerca de dez metros à frente, Nando virou para a esquerda, seguindo por uma parte mais baixa do terreno. Dali, eu via uma cachoeira enorme, com cascalhos numa margem e uma série de pedras lisas no restante do entorno. Era para aquele lugar que ele me levaria? Talvez fosse para quebrar o clima de briga, ou me afogar...
Nando parou o carro, mas não perto da cachoeira. Na estrada à frente, uma espécie de trilha pequena demais para um carro dispunha-se, e eu presumia que seguiríamos por ela.
— A pé daqui para a frente. Vem — chamou Nando, já descendo do carro. Não pude fazer mais do que segui-lo.
O garoto travou o carro e botou a chave no bolso, e estendeu a mão para mim em conseguinte. Guiou-me até a trilha e andamos, andamos, andamos, até chegarmos a uma pequena entrada escura, feita de pedra.
Nando nem esperou um segundo, entrou pela passagem, de quatro, e sumiu pela abertura. Lá de dentro, chamou-me, para que eu fizesse o mesmo.
"Jura que tenho que passar por aí?", questionava-me mentalmente. Antes que ele pudesse chamar de novo, rastejei-me pela entrada - para Nando foi mais difícil por ele ser mais musculoso, para mim foi facinho - e entrei numa espécie de caverna mal-iluminada.
De novo, Nando serviu de guia. Pegou na minha mão e puxou-me para o interior do local, numa parte mais baixa; seguimos abaixados por uns dez metros até sairmos num amplo espaço, com uma grande abertura no teto, por onde entrava luz. À esquerda, notei uma quantidade grande de água cristalina, e confesso que fiquei curioso para saber se era mesmo limpa; aliás, fiquei curioso para saber o que faríamos ali.
Nando não esperou que eu me impressionasse tanto, levou-me ainda mais para o interior do lugar, onde novamente uma escuridão era notada.
A diferença da parte anterior era que essa não só tinha um lago de água cristalina, como esse também brilhava, tênue, e preenchia a câmara de um brilho azulado. As paredes, escuras, assumiam a coloração, e alguns desenhos rupestres nela feitos ganhavam um charme à mais. Aquele lugar era perfeito.
— Descobri essa caverna quando eu tinha oito anos. Vim aqui com minha mãe, mas foi a única vez... — disse, olhando o entorno, enquanto passava as mãos pelas paredes. — Eu disse que esse seria nosso santuário, nosso local especial. Disse que nunca traria ninguém aqui, e realmente nunca trouxe.
Ele olhou para mim com um sorriso tímido, e eu não consegui não sorrir.
— Mas minha mãe disse que eu estava errado, que eu deveria trazer alguém muito importante para cá sempre que estivesse precisando. — Falando isso, Nando veio até mim e me puxou para ele. — Ela disse que eu só deveria trazer aqui quem eu amasse, não como eu amava ela, mas um amor... diferente. E eu cumpri isso.
Meu rosto esquentou nesse instante, e Nando sorriu novamente. Encostou sua testa na minha e fechou os olhos.
— Desculpa — sussurrou, antes do primeiro beijo naquele lugar. O primeiro de muitos.