As coisas pareceram mais calmas nos dias que se seguiram e, com aquele episódio do surto do Zeca, demos por um tempo uma freada no consumo da droga. Os meninos passaram a cheirar menos, mas a fumar mais maconha. Eu ficava só na cerveja e no uísque, junto com Alex. E o Zeca tambem parecia um pouco mais sossegado, ou estava disfarçando muito bem.
Foi por essa época que o meu nome, já com uma certa fama ruim na faculdade, começou a ser ainda mais sujado. Tudo porque, depois de Samuel e o colega dele, começou a aparecer cada vez mais caras atras de mim, na certeza de que eu era gay, a fim de sexo ou mesmo uma chupada num canto escondido. Eu nao recusava, desde que o rapaz fosse bonito, e toda semana era um ou dois, e em algumas noites eu cabulava aula para foder com algum cara delicioso no carro dele, no banheiro desativado ou onde desse. Varias vezes só dava tempo de chupar mesmo, mas mesmo assim eu nao desperdiçava nada, adorava beber aquilo.
Foi uma garota, a única que se dava relativamente bem comigo ali na sala, quem me avisou que meu apelido na faculdade estava sendo "bandejão comunitário", ou seja, comia quem quisesse, bastava chegar. Fiquei furioso e inutilmente tentei descobrir o autor do apelido. Nao achei que fosse Vitor ou Rafa, que evitavam sequer olhar para mim, chegando a sair de perto quando eu passava por eles, como se eu fosse um animal peçonhento.
"Um bando de veado nessa faculdade. E eu que levo a fama!", pensei, com raiva de todos os caras dali com quem tinha saido. Muitos tinham namorada, mas gostavam mesmo era de se divertir com homem por baixo dos panos. Nao tinham, nem teriam nunca, dignidade para se assumir, como eu. Desprezava-os por isso.
Houve uma noite de novembro, bem no inicio do mês, em que estavamos todos quietos prestando atençao à aula do professor quando o ar da sala pareceu congelar no terror geral que foi a apariçao daquela verdadeira anunciaçao da morte, batendo no limiar da porta aberta e pedindo em voz baixa licença para entrar.
Olhei petrificado para Mauro. Estava macérrimo, a camiseta e a calça "dançando" de folgadas em seu corpo, as faces encovadas e manchadas, os cabelos ralos e sem brilho, assim como os olhos.
A cara de espanto e medo dos alunos, olhando- o, foi indisfarçavel. O professor deu licença a ele, que se acomodou numa carteira vazia do meio da sala. Vi uma moça olha-lo com asco, afastando a cadeira mais para o lado, mas Mauro nao pareceu reparar nisso. Do seu lugar no fundo, Vitor se levantou, agachando-se diante dele e lhe dando um abraço desajeitado.
- Senti sua falta_ falou baixinho, com carinho, alisando-lhe o ombro ossudo.
Mauro sorriu, mas o professor chamou a atençao deles, pedindo que deixassem os cumprimentos para depois. Vitor voltou ao seu lugar e eu nao ousava me mexer, nao conseguia mais olhar para meu amigo que era agora um tipo de espectro humano que ainda respirava por milagre. Um terror estranho me dominava.
Tentei evita-lo, porem assim que a aula terminou, senti no meu pulso aquela mão fria e óssea como a garra de um morcego me segurando.
- Nao me reconhece mais, Marcos?_ disse ele me olhando de modo fixo.
- Claro, Mauro _balbucie _Estou feliz que tenha voltado...Veio para ficar?
- Vim encerrar minha matricula, mas tive vontade de assustir à aula uma ultima vez_ ele me soltou, passando a sorrir com um desprezo sinistro_ Queria olhar pra essa sua cara de traidor, sua puta!
Recuei, perplexo, olhando em volta. A sala parecia vazia, mas no fundo Vitor nos observava, sentado, sorrindo num ar de vingança, balançando a cadeira contra a parede.
- Nao sei do que esta falando..._ sussurrei, e senti na minha cara aquele tapa seco que ardeu na hora.
- Seu vagabundo!_ disse Mauro ofegante, avançando para mim_ Você nao vale nada. Tomou o Tony de mim, traiu um cara bacana como o Vitor e agora anda por aí dando esse rabo para todo mundo, entupido de droga até os cabelos! Acha que nao sei? Que já nao me contaram desde que voltei?O povo aqui tem a lingua comprida, meu caro, e Vitor tem me escrito cartas há um mês, quando passei o endereço de meus tios. Ele me alertou sobre voce!
- O que eu faço nao é problema seu!_ repliquei, começando a me irritar- Nao tenho culpa se o Tony nao te quis mais. Aliás, como ele iria querer um namorado doente?
Ele tentou me bater na cara outra vez, porem segurei seu braço esquelético, tentando empurra-lo. Se quisesse o derrubaria facilmente, ele era leve como uma criança, mas Vitor gritou atras de mim, me detendo.
- Vai bater no cara doente, seu covarde?
Parei, olhando-os com raiva. Comecei a arrumar meu material dentro da mochila para sair dali logo.
- Estou com Aids, Marcos_ disparou Mauro, me olhando de perto_ Acho que todos já desconfiavam. Fiquei internado por meses, saí, estou em tratamento, porem meu organismo nao esta respondendo ao remédio. Nao duro muito.
Continuei preocupado com o meu material na mochila, sem olhar para Mauro. Sentia como se tivesse engolido um iceberg cortante feito faca.
- Se há justiça nessa vida, passei essa doença ao desgraçado do Tony ,que já deve tê-la passado a voce_ disse ele, numa serenidade estranha_ Estamos agora no mesmo barco furado, é questao de tempo. Fico consolado em saber que voces nao vão escapar, como eu...
Saí da sala depressa, respirando forte, ainda ouvindo atras de mim a voz esganiçada de Mauro.
- Fuja, sua cobra! Vai se lembrar de mim a noite toda!
Corri, passando pelo pátio esvaziado de alunos, ganhei a rua na noite abafada e com garoa. Andei muito até achar um táxi, sentindo o peito apertado, pensando o tempo todo num desespero que não, não, não era possivel. "Eu só tenho vinte anos".
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Valeu, gente:)
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Ate a proxima! :D