Deixei que ele passasse, e se acomodou no sofá com um suspiro de cansaço, olhando em volta, e depois me fitando.
- Tudo bem com você? Com sua saúde?_ perguntou.
- Sim_ respondi, surpreso com a pergunta_ E você? Como vai? E Bruno?
- Bruno ficou todo quebrado depois daquela liçao que dei nele. Se recuperou, quis uma desforra e apanhou outra vez, na academia mesmo. Acabamos sendo expulsos por violar as regras. Depois disso nao o vi mais, pois logo precisei largar o esporte, de qualquer jeito...
Observava-o, em silencio, com um mau pressentimento. Não esquecia a surra que ele tinha me dado, mas no momento aquilo me pareceu estranhamente insignificante. Tony me encarou por um momento.
- Estou doente, Marquinhos_ falou com voz soturna.
- Doente?_ respirei fundo, pensando no pior_ Doente...de quê?
Ele nao respondeu, ao invés disso tirou lentamente a cacharrel que usava, expondo então uma das visões mais horríveis que já tive: seu tórax, peito, braços e pescoço cobertos por manchas grossas, de um vermelho arroxeado, grandes e pequenas, irregulares, às dezenas. Fiquei gelado, a respiraçao suspensa.
- Sarcoma de Kaposi_ disse ele, vestindo a cacharrel, devagar _ Comecei a quimioterapia essa semana, para reverter isso. Mas de resto... é Aids, Marquinhos.
Minhas mãos tremiam, e eu respirava com esforço. Não era possivel. Ele tinha prometido. Eu tinha confiado.
- Perdi quase oito quilos em vinte dias_ continuou o Tony com voz cansada_ Peguei uma pneumonia no comecinho, mas ainda assim foi duro de curar. Meus pais estão como loucos, é evidente o horror nos olhos deles, a pena, a tristeza. Que injustiça com a gente, cara! Tinhamos a vida inteira pela frente, a vida inteira...
Falou essas ultimas palavras numa mistura de tristeza profunda e de indignaçao, e seus olhos marejaram, coisa que nunca vi nele. " Nós? A gente?", pensei com terror, ainda mudo.
- Eu vou embora, vou para os Estados Unidos. Creio que lá os recursos são melhores do que aqui_ disse Tony, suspirando, e completou numa determinação feroz_ Vamos ver se eu nao venço essa merda! Nao é tão facil assim me derrubar, não.
- Tony, voce tinha me dito que nao havia perigo_ falei, alarmado_ Eu confiei em voce, Tony, eu achei que estavamos livres, que foi só o Mauro...
- Eu nao tive culpa, cara_ disse ele, nervoso_ Tambem achei que estava tudo bem... Marquinhos, ninguem teve culpa. Mas voce me parece bem, talvez nao tenha pegado nada, tenha dado sorte. De qualquer jeito, cara, faça um exame. Tem um remédio agora, o AZT, dizem que garante uma...sobrevida...nao sei. Estou tomando, tem uns efeitos colaterais malditos, mas é o que tem por enquanto.
Se levantou para ir embora, e me fitou, com pena, talvez de nós dois.
- Sei que ficou magoado comigo, porque bati em você_ disse ele_ Eu fiquei com raiva na hora, mas ainda assim me segurei, senão acho que teria te moído. O Alex esta cuidando direitinho de você? Aquele moleque sempre teve mais juízo do que nós... Marquinhos, por trás de toda a raiva, tenho um carinho por voce, cara. Quero o seu bem, e agora mais do que nunca. Se cuida, moleque. Olha, eu vou fazer o diabo para voltar, voltar melhor do que antes. Lutarei até o ultimo segundo, e nao morro sem ter dado todo o meu suor e sangue antes.
Deu um tapinha no meu ombro, um sorriso palido e se foi, andando devagar. Eu fechei a porta e me encostei na parede, perplexo, sem acreditar, mas logo rompendo num choro desesperado, escondendo o rosto entre as mãos. Custei a me acalmar, porem bastou Alex chegar para eu vê-lo e todo aquele medo gigantesco tomar conta, me fazendo chorar, soluçando, enquanto o abraçava com força e agonia.
- Mas o que houve, meu anjo?_ disse ele surpreso, esfregando minhas costas devagar.
Eu nao conseguia falar, tremia e balbuciava palavras desconexas. Ele pegou um copo de agua com açúcar e enquanto eu bebia ele me acariciava no braço, no rosto, me acalmando aos pouquinhos. Quando me acalmei respirei fundo, começando a contar devagar tudo sobre a visita do Tony, das manchas no corpo dele, da doença e da minha certeza de estar tambem doente.
Alex ficou pálido me escutando, uma sombra de medo passando por seus olhos. Apertou meus dedos nos seus, num movimento nervoso.
- Não é verdade_ falou como que para si mesmo_ Não, Marquinhos, não faz isso comigo, cara.
Seus olhos marejaram e ele respirou fundo, como que se contendo. Passou a mao pelos cabelos num gesto agoniado, e doía tanto meu coraçao vê-lo assim.
- Talvez voce nao tenha pegado nada_ falou, numa esperança_ Precisa fazer o exame e ver isso. Amanhã mesmo vamos ao laboratório.
- Tenho medo de ter certeza_ disse, desanimado_ Olha isso aqui que apareceu no meu pescoço. Seria um sintoma?
Alex olhou o carocinho de perto, intrigado, mas ficou na dúvida. Perguntou se doía, o que neguei.
- Não sei, amor. Pode ser outra coisa_ disse ele, passando a mao nos meus cabelos_ As manchas do Tony eu já ouvi falar de que se tratavam de um tipo de câncer comum em infectados. Na praia eu suspeitei disso quando repararam nas manchinhas dele, mas nao tive certeza, podia ser uma alergia, uma erisipela...
- Quando o ex namorado dele voltou doente, eu notei que o Tony suspeitou de alguma coisa_ falei, me encostando em Alex que me envolveu pelos ombros, beijando meu rosto_ Falei para fazermos o exame, porem ele nao quis, jurou que estavamos limpos, e eu acreditei, cara. Minha saúde ia às mil maravilhas, nada de resfriado, de tosse, nada. Nao falam isso, que começa como uma gripe? Sei tão pouco sobre Aids, as informaçoes são tão duvidosas, ninguem explica direito... Porque falam que a doença é culpa de nós, gays, que é um castigo? Falam em "câncer gay", como se só a gente pegasse...
- Gente ignorante, meu anjo_ disse ele, suspirando_ Olha, fica calmo. Vamos ao médico amanhã mesmo, tirar essa duvida e fazer esse exame que se Deus quiser será negativo. Vai ficar tudo bem, Marquinhos.
Dei um sorriso desanimado, sem muita esperança. A presença dele me acalmava, me consolava. Nao quis ir para casa nessa noite, telefonou para a mãe e falou que dormiria fora, na casa de um "amigo". Fez chocolate derretido porque sabia que eu gostava e ficou me mimando o tempo todo, apesar do clima silencioso e triste ali do apartamento.
Deitamos cedo, com ele me abraçando por trás, apertado, daquele jeito que eu gostava, cantando baixinho Asleep, dos Smiths, enquanto eu chorava outra vez, em silencio, pensando na injustiça que era aquilo tudo. Eu era tão jovem, estava tão feliz... Porque logo agora?
- Estou com voce, meu amor - sussurrou Alex depois de cantar a musica toda - Sempre estarei. Sempre.
Na nossa ultima transa, que foi na noite passada, discutimos a possibilidade de deixar a camisinha de lado. Foi uma idéia do Alex, mesmo sabendo de minha vida altamente promíscua antes do nosso namoro. Agora eu pensava com alivio que nao haviamos tido tempo de pôr em prática aquela imprudência.
Dormi mal, nervoso, ansioso com a consulta no dia seguinte, sonhando que as manchas do corpo de Tony estavam em mim, me queimando a pele. Acordava assustado, e numa dessas pude perceber que Alex nao dormia, mas chorava, com o braço escondendo o rosto, soluçando baixo, para eu nao ouvir.
Me encolhi no meu canto para que ele nao percebesse que eu o vira. Senti uma tristeza tão grande e tão profunda que parecia já um prenuncio do fim.
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