Quando acordei, o mundo parecia se movimentar ao meu redor, e me sentia desorientado. Tentei falar, mas as palavras que saíam da minha boca não faziam sentido.
- Espera, Rafael, ele tá acordando... – ouvi a voz de Alice. – Lucas?
- Hã? – respondi, me debatendo: precisava sentir o chão, a sensação de ser carregado havia me deixado enjoado. Senti que me colocaram no chão, e não segurei mais: provoquei tudo o que havia no meu estômago, e um pouco mais.
- Que merda, Lucas, o que aconteceu? – agora era Rafael que falava comigo.
Não respondi.
- Rafael, vamo levar ele no hospital...
- Não – interrompi Alice – hospital não.
- Lucas... – ela pediu.
- Minha mãe tá em casa – Rafael falou – vamo pra lá, ela examina ele. Se precisarmos ir pro hospital, ela liga e já deixa alguém esperando por nós.
Senti Rafael me levantar, mas o enjoo já não era muito forte. Logo estávamos no carro. Senti que me colocaram deitado no banco de trás, com a cabeça no colo da Alice. Dormi.
Acordei com a voz da mãe do Rafael, seu rosto próximo ao meu. Ela fez eu me sentar e beber água. Respondi muitas perguntas, desde o meu nome até quem era o presidente do país. Senti ela apalpar minha cabeça à procura de machucados e tive que acompanhar o movimento de uma lanterna com o olhar. A conclusão: eu estava bem. A tontura e o enjoo eram devido ao álcool e ao desmaio. Nunca fiquei tão feliz por ter amigos com pais médicos, não podia nem imaginar a reação da minha mãe se ligassem pra ela de um hospital no meio da noite.
- Alice, vai levando o Lucas lá pra cima, põe ele no quarto do Fael. Filho, vem cá na cozinha comigo.
Me perguntei se Rafael receberia algum castigo por minha causa, e me senti mal. Apoiado entre Alice e o corrimão, consegui chegar ao segundo andar. Fomos direto para o quarto do Rafael, e Alice me deitou na cama.
- Lucas – ouvi ela chamar.
- Oi.
- O que aconteceu?
- Amanhã, Alice, amanhã eu conto.
Foi a última coisa da qual eu lembro antes de me entregar ao sono.
Quando acordei, pensei que ainda era noite: o quarto estava escuro. Percebi que era culpa dos blackouts nas janelas e, ao pegar o relógio ao lado da cama, vi que já era meio dia. Entrei no banheiro da suíte e levei outro susto: eu estava horrível. Meu nariz, roxo e inchado, explicava a dor que eu sentia. Lavei a boca com enxaguante bucal e molhei o rosto. Só então, notei um papel pregado no espelho, onde lia-se: “roupa limpa e toalha no guarda roupa”. Só então, notei que só estava de cueca. Voltei ao quarto e encontrei a toalha e a roupa separadas no guarda roupa. Tomei um banho longo, e, quando saí, me sentia muito melhor.
Enquanto me vestia, me perguntei se a cueca que eu vestia era nova ou se Rafael havia pegado qualquer uma de sua gaveta. Ri da possibilidade de ser a segunda hipótese. As roupas ficaram um pouco largas, Rafael era mais alto e mais forte do que eu, mas não me importei.
Quando desci, ele estava na sala, vendo TV.
- Bom dia, Bela Adormecida. – ele falou, ao me ver. Desligou a tevê e virou-se para me encarar.
- Bom dia, Fael. – respondi, nervoso. Sabia que ia ter que dar satisfações quanto à noite passada.
- Vai me contar o que aconteceu? – Ele perguntou. “Porra”, pensei. – Não precisa, se não quiser.
Me senti grato por aquilo.
- Alice não vai me dar essa opção de não falar nada.
- Eu sei. – ele riu – mas o importante é que agora tá tudo bem. Né?
Afirmei com a cabeça.
- Mesmo assim – falei – sinto como se devesse uma explicação, depois do trabalho que eu dei.
- Não precisa, Lucas, sério. Passou, ficou pra trás. Todo mundo tem uma história louca de boate pra contar, agora você tem a sua.
- É mesmo – confirmei, rindo – qual é a sua? Eu não sei.
Ele sorriu, com a sobrancelha levantada.
- É segredo, que nem a sua.
“Justo”, pensei.
Finalmente lembrei:
- Porra, meus pais!
- Calma – ele me tranquilizou – já tá tudo resolvido.
- Como assim?
- Seguinte: minha mãe ligou pra eles ontem à noite, seu pai atendeu. Se me permite dizer, sorte a sua que não foi a sua mãe – eu não podia negar, afirmei com a cabeça – Então, minha mãe falou com o seu pai e explicou que havíamos encontrado você desmaiado no banheiro e que imaginávamos que algum bêbado havia de dado um soco. Ela tranquilizou ele, disse que te examinou bem e que você estava ótimo, tirando a tontura causada pelo desmaio. Ela omitiu a parte da bebida – ele riu – mas ele não perguntou sobre isso. Ela se ofereceu pra levar você no hospital na hora, mas seu pai disse que não precisava, que confiava no diagnóstico dela. Ele pediu desculpas pelo transtorno, mas ela disse que não era nada. Seu pai pediu pra falar comigo e me fez prometer te levar pra casa assim que você acordasse, mas eu falei que minha mãe havia te dado um calmante e que, provavelmente, você iria dormir muito ainda. Foi basicamente isso.
Fiquei em silêncio, processando tudo. Eu já estava grato por todo o trabalho que Rafael e a mãe dele haviam passado pra cuidar de mim, mas ainda por cima me livrar da maior encrenca com meus pais...
- Fael, fico te devendo uma pra sempre.
- Não se preocupa, eu vou cobrar.
Pouco depois, ele me levou em casa. Agradeci, me despedi com um abraço e entrei em casa.
Meus pais estavam almoçando. Minha mãe correu pra me abraçar, e me bombardeou de perguntas. Respondi todas – havia passado todo o trajeto da casa do Rafael até a minha imaginando respostas para perguntas que pudessem a vir me perguntar.
- Você lembra quem te bateu, filho? – meu pai perguntou.
- Era um cara alto, loiro, e ele tava muito bêbado.
- Você fez alguma coisa pra irritar ele? – essa foi da minha irmã, que havia se juntado ao tribunal.
- Esbarrei nele, sem querer. Ele não gostou.
- Você tava bêbado? – minha mãe quis saber.
- Não, mãe. Tava animado, havia bebido um pouco – minha maior mentira de todas – mas não estava bêbado.
O questionário continuou por muito tempo, mas, enfim, eles chegaram à conclusão de que a culpa não era minha e que, portanto, não havia motivos para me castigar. Quase chorei de alegria, mas me contive. Comi e voltei pro meu quarto, onde dormi novamente.
Mais tarde, Alice apareceu. Então, tive que contar toda a verdade: do cara no vestiário – ocultei que havíamos nos masturbado – e como eu havia conhecido ele na escola e que ele havia dado em cima de mim e que, no banheiro da boate, eu havia tentado ficar com ele e havia sido nocauteado por isso. Ela pareceu acreditar na versão mais leve dos reais acontecimentos, e eu fiquei feliz por não mentir totalmente para ela. Mas aí, ela perguntou porque eu havia feito algo que não era típico de mim: tentar ficar com um cara no banheiro de uma boate. Tive que contar a verdade.
- Vi o Danilo ficando com a Sabrina na pista de dança, fiquei mal, e quando dei por mim, já estava no banheiro. Depois disso, você já sabe.
- O Danilo ficando com a Sabrina? Você tem certeza? – ela parecia estranhar.
- Tenho, Alice, absoluta.
- Me diz exatamente o que você viu.
- Eles estavam dançando, juntos, abraçados, rindo e falando coisas no ouvido um do outro. – a lembrança me dava náuseas.
- Lucas, você viu eles se beijarem? Pensa bem...
Parei pra pensar. “Não”, pensei, “Eles não se beijaram”. Ela pareceu perceber que eu havia chegado à essa conclusão.
- Lucas, o Danilo confessou o que ele sente pela Sabrina ontem.
Meu coração pareceu parar dentro do peito. Rapidamente, passaram imagens pela minha cabeça: Danilo e Sabrina se beijando, namorando, transando, de mãos dadas, rindo, se beijando, transando, rindo, gargalhando, rindo de mim... Mas aí, o choque:
- E a Sabrina deu um fora nele.
- Hã? – com tantas imagens na minha cabeça, não havia prestado atenção na última frase.
- A Sabrina, ela não quis ficar com ele. Ela disse que só via ele como amigo, quase irmão.
Me calei, sem reação. Durante todo aquele tempo imaginando eles juntos, eu sempre tive certeza de que ela corresponderia aos sentimentos dele. Em nenhum momento considerei aquela hipótese de que ela iria rejeitá-lo. Acho que, por ele parecer tão irresistível pra mim, não pensei que ele poderia ser bem resistível para outras pessoas.
Ali, acho que deveria ter sentido pena dele. Seria a coisa certa a se sentir – empatia. Ele era meu amigo, afinal de contas. Gostaria de dizer que me sentia triste por ele. Mas acho que eu não era uma pessoa boa o suficiente. Não era tão solidário. O que eu senti me fazia um ser humano egoísta, ou simplesmente um ser humano, dependendo do ponto de vista: me senti vingado. Senti como se o universo estivesse, pela primeira vez em muito tempo, ao meu favor. Aquilo sim, parecia justo: que ele sofresse a mesma dor que havia me feito sofrer.
Contudo, a euforia não durou por muito tempo. Sentia como se a dor dele tivesse anulado a minha e, agora, as coisas podiam voltar ao normal.
Na segunda, cheguei atrasado. Quando entrei, meus amigos já estavam sentados nos seus lugares habituais. Alice havia guardado a minha carteira.
- Lucas – Sabrina pulou da carteira e me abraçou. Naquele momento, eu podia ter a beijado e gritado mil agradecimentos, mas eu só ri e respondi:
- Tô bem, tô bem.
- Que caralho, amigo – ela exclamou – quem foi que fez isso com você? Lembra? A gente pode se juntar e bater nele. Ainda deixamos o corpo em uma vala, pra ele acordar sozinho, sem ninguém pra ajudar. Que sorte a sua o Pasquale ter te encontrado no banheiro.
- Foi o Pasquale que me encontrou? Pensei que tinha sido o Rafael.
- Não – Rafael se pronunciou – O Pasquale te encontrou e veio correndo procurar a gente.
Vasculhei a sala à procura do Pasquale, um de meus colegas de sala. O encontrei na frente da turma e fui logo agradecer. Ao voltar, meus amigos discutiam.
- Você podia ter avisado a gente – Sabrina estava inconformada.
- Eu avisei! – Alice se defendia.
- Duas horas depois, quando ele já estava dormindo e você já estava em casa. E todo esse tempo eu lá, procurando por vocês.
- Procurando por a gente? Você e o Danilo tavam lá no maior agarro... – Rafael falou, mas percebeu que havia falado besteira pelo o olhar que recebeu de todos. Lancei à ele um olhar de “depois explico”, e ele pareceu entender.
- Olha, Sabrina, não tinha nada que você pudesse ter feito – Alice continuou. – O importante é que já tá tudo bem, tudo normal.
“Normal”, pensei, “tudo vai voltar ao normal”. Olhei para o Danilo e sorri. Ele retribuiu o sorriso, mas não era o sorriso que eu tanto amava. Era um sorriso apagado, falso.
“Será mesmo?”. Ali, parecia que o normal havia ido embora para nunca mais voltar.