- A gente não tem nada pra conversar, Rafael. – tentei tomar meu celular da mão dele, mas ele era mais forte que eu.
- Temos sim.
Ignorei ele e saí de perto. Subi as escadas quase correndo. Estava morrendo de medo do que ele iria falar. Quando cheguei ao quarto de hóspedes, comecei a procurar minha bolsa.
- Não tá aqui, tá no meu quarto. – ouvi, atrás de mim. Rafael estava na porta. Tentei sair, mas ele não se moveu.
- Com licença.
- Não até a gente conversar.
- Sobre o que? – perguntei, tentando parecer firme, enquanto minhas mãos tremiam.
- Eu sei Lucas. Sei de tudo. A Alice me contou.
“Que?”, gelei. Sentei na cama, em choque. “Porque a Alice fez isso?”
- Eu fiz ela me contar, sabe. Depois daquele dia na boate, eu não pressionei você. Mas eu sabia que você tinha contado pra ela o motivo de estar agindo estranho. E não só na boate, mas antes disso também. Porra, Lucas, porque você não me contou?
Não respondi.
- Olha, se é porque você me culpa por ajudar o Danilo a ficar com a Sabrina, eu só fiz isso porque não sabia dos seus sentimentos.
- Rafael... – tentei falar, mas não sabia o que dizer. Ele, então, continuou.
- E aí, depois que o Danilo e a Sabrina não deram certo, eu percebi como você pareceu mudar. Voltou ao normal, parecia feliz. E agora isso. Eu não engulo essa de você ter superado essa paixão tão rápido. O jeito como você estava ok com a Sabrina trazer o namorado dela aqui foi muito estranho. Por isso eu disse aquilo, não entendo como, justo você, iria estar de boa com aquilo.
Eu estava começando a não entender. “Por que eu seria contra a Sabrina arranjar um namorado?”
- Tudo bem que você não reagiu que nem o Danilo. Mas você parece nem ter se incomodado. E eu quero saber porque. E dessa vez eu não vou atrás da Alice pra obter as respostas...
- Rafael – eu interrompi – porque diabos eu estaria incomodado com o fato de a Sabrina arranjar um namorado?
- Pelo mesmo motivo que o Danilo.
- Que é? – “Eu não acredito que ele está pensando aquilo, que eu...”
- Que você gosta da Sabrina.
“Porra, Alice, o que você fez?”
- Rafael, eu não gosto da Sabrina.
- Lucas...
Dessa vez eu me levantei, olhei no fundo dos olhos dele, e repeti.
- Rafael, presta atenção. Eu não gosto da Sabrina. Nunca gostei.
E ele acreditou. Ficou calado por um minuto, e então fez eu me arrepender de ter desmentido a história de Alice.
- Então ela mentiu pra mim? A Alice?
- Fael...
- E o otário aqui acreditando em tudo. Preocupado com você. Você sabia que o motivo pelo o qual eu não queria que ela entrasse com o Juca era porque pensei que ia magoar você? Porra, Lucas. Vocês só me fazem de otário.
- Eu não te faço de otário, Rafael. – falei, dessa vez com raiva.
- Não? Sério? Depois de ter te resgatado de um banheiro imundo de boate, ter dirigido feito louco pela cidade, ter cuidado de você, passado a noite acordado pra ver se você estava bem, se estava respirando, se não vomitava ou tinha uma convulsão, o máximo que eu mereço é uma mentira esfarrapada? Porra, Lucas.
Não falei nada. Antes que eu pudesse me desculpar, ele disse.
- Vai embora, Lucas.
- Fael...
- Sério, cara, vai embora.
Ele se virou e saiu. Fui atrás dele, mas a porta do seu quarto estava trancada, minha bolsa jogada no corredor. Peguei a mochila e saí. Andei até a esquina da rua, virei na avenida e de lá peguei um táxi que me levou para casa. Minha mãe quis saber o motivo de eu ter voltado para casa, mas expliquei que estava com dor de barriga e que não estava no clima de festa do pijama. Ela me deixou em paz.
Passei a noite acordado, tentando pensar em jeitos de pedir desculpas à Rafael sem ter que contar a verdade pra ele. Não consegui pensar em nenhum. Conforme falhava em encontrar maneiras de ser perdoado, minha raiva por Alice crescia. Despejei tudo nela no dia seguinte, pelo telefone.
“Você não podia ter feito essa cagada, puta merda”
“Lucas, era isso ou falar a verdade”
“Claro que não, Alice. Você tinha a opção de ficar calada”
“Lucas, ele tava muito preocupado. Você tava agindo muito estranho. E depois da boate... Ele começou a pensar que você estava usando drogas. Ele estava pensando seriamente em falar com os seus pais. Eu tive que inventar alguma coisa”
Depois disso, não tive como discutir. Era melhor ele pensar que eu gostava da Sabrina do que achar que eu estava me drogando.
Na segunda, eu cheguei à conclusão de que, definitivamente, nada voltaria ao normal. Na escola, Sabrina não apareceu. Danilo sentou-se na frente da sala, sozinho. Rafael entrou e foi direto para os fundos, sem olhar para nós. Somente eu e Alice continuamos no nosso lugar de sempre. Na terça, Sabrina se juntou à nós, mas Danilo e Rafael continuaram a sentar longe. Aquilo não passou despercebido por nossos colegas de sala, e, até uns mais corajosos se arriscaram a perguntar o que havia acontecido, ao que respondemos “nada” para alguns e “não é da sua conta” para os mais insistentes.
Na sexta, no recreio, começamos a discutir aquilo que passamos a semana evitando falar.
- Eu não vou perdoar ele, nunca.
- Sabrina – Alice falou, a voz cheia de tristeza – eu entendo, sabe, mas...
- Mas nada, Alice. E você não pode falar nada – Sabrina apontou o dedo – Você ainda não explicou porque diabos o Rafael se recusa a falar com você e com o Lucas.
- É complicado – eu comecei.
- Foi alguma coisa que aconteceu ainda naquela noite? – ela quis saber.
- Mais ou menos.
- O que foi? Me conta, Lucas. – mas não era o tom curioso de sempre dela. Era um tom cheio de mágoa. – Eu não aguento isso. Eu preciso de vocês três. Já basta o Danilo, eu não posso perder mais ninguém.
- Você não vai perder ele, Sabrina – Alice.
- Mas você e o Lucas vão, se não derem um jeito nessa merda.
Mas não havia sido por falta de tentativa que não havíamos conseguido o perdão de Rafael. Mandei mensagens, liguei, fui até a sua casa, mas ele continuava a me ignorar. Com Alice, a mesma coisa.
Na sexta, eu já havia desistido de qualquer tentativa de conseguir o perdão dele. Esperava que, com sorte, ele superasse a raiva e voltasse a falar conosco, e, então, eu poderia pedir desculpas por tudo. Assim, quando cheguei na aula de natação, nem me dei ao trabalho de ir falar com Rafael. Ele já estava na piscina, e nadava em uma raia sozinho. Fiquei no outro extremo, dividindo a raia com uma garota do segundo ano. Ela estranhou.
- Porque você não tá na oito? – perguntou, se referindo à raia onde Rafael se encontrava. – O Rafael tá lá.
- A gente não tá se falando.
Ela pareceu entender, devido à minha resposta vaga, que eu não ia falar sobre aquilo, e não perguntou mais nada.
No final da aula, Rafael foi um dos primeiros a sair da piscina e foi direto para o vestiário. Eu permaneci nadando, decidido a não encontrar com ele quando entrasse para tomar banho. Contudo, quando vi que estava sozinho com o cara da boate – só de olhar pra ele, parecia sentir a dor do chute que levei no nariz – decidi que era hora de ir tomar banho. Quando entrei, só haviam dois chuveiros ligados. Entrei no terceiro. Logo, os dois chuveiros foram desligados. “Porra, o cara vai já aparecer aqui”. Impulsionado por esse pensamento, desliguei meu chuveiro e saí. Só então percebi que Rafael continuava lá. Estava terminando de colocar o tênis. Não falei com ele. De costas, pus a cueca, ainda com a toalha enrolada na cintura. Vesti a bermuda e, bem na hora, ouvi mais alguém entrar no banheiro. O cara da boate.
Senti um frio na barriga quando ele me encarou. Ele riu e falou, em voz baixa.
- Boiola.
Ignorei. Mas ele provocou, mais rápido.
- Que cheiro de veado. – se aproximou de mim, fingiu cheirar alguma coisa, e disse. – Podre.
De repente, senti ele se afastar de mim. Só então percebi que Rafael ainda estava lá, e havia o empurrado.
- Que porra é essa? – o cara da boate gritou.
- Que porra é essa nada! Quem tu pensa que é pra falar assim com ele? – Rafael falou, mais alto.
- Eu falo o que eu quiser. Tá incomodado por que? É o namorado desse veado?
Rafael se aproximou e o encarou.
- E se for?
- Então pede pra bichinha do seu namorado pra manter o pau dele longe da minha bunda.
Rafael então tentou socar o cara, mas errou seu rosto por pouco. Em resposta, levou uma rasteira, e caiu com tudo no chão.
- Xii, agora to sentindo cheiro de corno. – disse ele, entrando no último chuveiro.
- Fael... – tentei levantar ele do chão. Ele puxou o braço.
- Do que ele tava falando, Lucas? – ele me encarava. – Quer saber? Nem quero saber, você só vai mentir mesmo.
E saiu porta à fora. Terminei de me vestir correndo, e saí do banheiro, ainda a tempo de ouvir risadas vindo do banheiro. Corri atrás de Rafael, e só o alcancei quando cheguei no seu carro.
- Rafael, para! Me espera.
Ele esperou.
- Você machucou sua mão...
- Já tomei um anti inflamatório que minha mãe sempre deixa na minha mochila.
- Mas como você vai dirigindo pra casa assim?
Ele ficou calado.
- Deixa eu dirigir.
- Não precisa...
- Rafael, precisa sim.
- Você não tem carteira.
- Mas dirijo desde os quinze. Sua casa é perto, não tem perigo.
Ele se convenceu e entrou no banco do carona. Liguei o carro e logo estávamos na avenida. Não tentei puxar conversa, nem ele. Quando chegamos, abri a garagem com o controle, e estacionei o carro. Rafael saiu na frente e entrou em casa. Encontrei ele no seu quarto.
- Vou chamar um táxi pra você. – ele disse. – Não se preocupa, eu pago.
- Eu não vou embora enquanto a gente não conversar.
Ele pareceu pensar sobre o assunto, e devolveu o telefone para o gancho.
- Pode falar – e sentou na cama – mas, se você mentir, Lucas, eu juro que nunca mais olho na sua cara.
“Então é isso”, pensei. “Bom, parece que eu vou perder ele de qualquer jeito. Pelo menos prefiro perder pela verdade do que por uma mentira”.
- Rafael, eu nunca fui apaixonado pela Sabrina. Mas você não entendeu tudo errado. Eu estava, estou, apaixonado por alguém. E não é correspondido, sabe. E eu sempre desconfiei que não fosse, mas quando eu tive a comprovação, eu meio que pirei. E daí descobri que essa pessoa estava apaixonada por alguém muito próximo de mim, o que só fez as coisas ficarem pior. Rafael...
- O Danilo – ele me interrompeu.
- É.
- Lucas, você... Você é...
- Gay? – tive que falar duas vezes. Minha voz falhou da primeira. Meu corpo todo tremia, mas consegui falar. – Sou.
- E você tá apaixonado pelo Danilo... – ele me encarava, com uma expressão indecifrável – não pela Sabrina...
- É.
- Mas o que o cara do banheiro tem a ver com isso? Como ele sabia? E que história era aquela de...
- Rafael. Aquele foi o cara que me nocauteou no banheiro da boate. – vi seu rosto assumir uma expressão chocada. – eu tentei... eu... eu precisava esquecer o Danilo, sabe. E eu tinha acabado de ver ele e a Sabrina. Daí eu tentei ficar com aquele cara, no banheiro. Ele não reagiu bem.
Ele ficou calado. Passamos vários minutos em silêncio. Decidi continuar a falar.
- Me perdoa. De verdade. Mas eu não tava pronto pra contar nada disso pra ninguém. A Alice sabe, mas ela adivinhou, eu não queria contar nada. Por isso ela mentiu pra você, ela precisou distorcer a história. Ninguém sabe de nada, Rafael, mas só porque eu tinha medo, eu tenho medo de perder todo mundo. E o cara do banheiro, eu tava desesperado. Eu não sou assim, eu juro. Não sou nenhum pervertido, mas eu precisava muito superar o Danilo. E pensei, sabe, que ficar com outro cara poderia ajudar. Por isso fiz aquilo.
E aí, aconteceu. Rafael se levantou da cama rapidamente, e veio em minha direção. Vi sua mão vir em direção ao meu rosto, e me preparei para o soco.
Mas não houve nenhum soco.
Ele me beijou.
E ele prendia minha cabeça com as mãos, e beijava minha boca com força. Mas eu não me movi. Ele afastou o rosto.
- Abre a boca, Lucas.
- Que porra você tá fazendo, Rafael?
- Você disse que quer esquecer o Danilo, não é? E que ficar com outra pessoa pode ajudar. Então dessa vez a gente vai ter certeza que você fica com alguém que não vai te nocautear em um banheiro qualquer.
E me beijou de novo.
Dessa vez, eu abri a boca.