Outro final de ano se aproximando, e nao havia nada a se comemorar dessa vez. O fato, quem sabe, de eu ter fechado o ano letivo na faculdade de modo razoável? No ano seguinte seria a minha formatura, e entao? Estaria vivo até lá?
Tirei outras férias do banco e fiquei aliviado por poder descansar melhor em casa. Apesar do meu serviço ser leve, os efeitos colaterais do remédio que incluiam fadiga e desanimo me faziam render menos na agência e as horas se arrastavam. Em casa eu era muito bem tratado, com Alex de férias da faculdade e passando o dia todo comigo, me cobrindo de cuidados, carinhos, fazendo todas as minhas vontades.
Ele foi rebelde com os pais nesse ano, bateu o pé e se recusou a viajar com eles por um tour que fariam pela Europa, até meados de fevereiro. Nao me contou direito, mas creio que chegou a brigar com eles para ficar, alegando que um amigo estava doente, que era sozinho e precisava de ajuda. No final ele veio de qualquer jeito, trouxe uma mala com seus pertences, alguns discos, e ficou morando comigo por quase dois meses.
A teimosia dele era uma coisa impressionante. Via que eu estava até pálido de tanta náusea e mesmo assim me forçava a comer, fosse uma sopa rala ou a omelete dele que era boa, bem macia. Claro que as vezes eu vomitava, e ficava com raiva por ele me obrigar a comer, mas bastava a náusea amenizar e lá estava ele me cercando com um copo imenso de achocolatado com leite gelado, me fazendo beber tudo.
- Nem minha mãe era desse jeito comigo, Alex_ eu dizia, ligando a TV, e sentindo o achocolatado demorar a ser bem recebido pelo meu estomago.
- Acho que voce sabe que eu te amo mais do que ela, do que qualquer outra pessoa_ falava ele, se acomodando ao meu lado _ Ei, nao olhei suas costas hoje. Vai, tira a camiseta.
Suspirando, fiz o que ele pediu e me virei de costas. Após um momento ele me beijou o ombro, devagar.
- Está perfeito. E a sola dos pés? Já viu? Tem tambem a mucosa da boca, meu anjo, as vezes o sarcoma aparece ali, lembra do que o médico falou?_ disse ele, e olhou dentro de minha boca com atençao_ Ótimo. Nada ainda. Nem vai ter.
- Estou dizendo, nem parece que isso esta por dentro me destruindo. Nao sinto nada, só esse efeito agressivo do remédio_ falei, vestindo a camiseta e me encostando nele _ Fora as ínguas e o suor noturno, de resto estou bem.
- Nao entendo disso direito, Marquinhos, mas acho que seu organismo esta reagindo bem ao AZT_ sussurrou ele, acariciando minha cabeça_ Suas defesas podem estar um pouco mais fortalecidas e o virus pode ter sido, digamos, "freado". Seu novo exame agora em janeiro dirá isso, quem sabe? A contagem dos seus linfócitos e o teste da carga viral vai nos responder essa questao. Creio que teremos boas noticias.
Seria possivel que eu estivesse melhorando? Nao curado, pois ainda nao havia cura, embora falassem que ela logo apareceria, porem com a doença controlada. Quisera isso fosse verdade e eu pudesse ainda viver muitos anos, como o Alex acreditava que seria.
Meu exame foi feito na primeira semana de janeiro de 1989. Fomos ao laboratorio bem cedinho, colhi o sangue, voltamos e ajudei Alex a fazer uma salada bem azeda, que assim eu nao ficava com enjôo. Almoçamos cedo e ficamos na sacada, estendidos na cadeira reclinável, eu deitado ao peito dele, tendo seus braços me envolvendo. Ouviamos West End Girls, do Pet Shop Boys, tocando lá na sala, entremeada ao som da rua que chegava ate ali naquele dia útil.
- Que saudade de ir à boate_ falei_ Dancei muito essa musica ano passado.
- Quando estiver mais disposto, podemos ir. Mas nao para ficar ate de madrugada, como antes. E sem bebida, tambem.
- Tão sem graça assim?
- Ou isso ou nada. Nao tem outro jeito_ disse ele.
- Se o medico liberar eu quero ir, nem que seja só um pouquinho_ falei, alisando as coxas dele lentamente, pouco escondidas por aquele calçao branco curto, deixando ver a pele coberta de pelos clarinhos _ Que coxas grossas voce tem! Servem para quê, vovó?
Alex deu risada, imitando a voz do Lobo Mau.
- São para melhor te prender entre elas, Chapeuzinho.
- E isso é tão bom vovó!_ dei uma risada alta, me virando sobre ele e beijando sua boca longamente.
- Um foguete, voce, nao sossega nem doente_ disse ele, baixinho_ Na sua libido o remedio nao afetou nada. Porque eu nao percebi, sabia?
- Acho que nao_ sorri, respirando fundo_ Afetou foi nada.
O lado do disco terminou lá dentro, e quase cochilando, nao nos levantamos para virar. Soprava um vento fresco naquela hora, acabei pegando no sono ali mesmo.
Enfim saiu o resultado do meu exame e o levamos para meu medico ver. Como da outra vez nos recebeu juntos, leu o papel em silencio, escreveu na minha ficha e foi me examinar na maca.
- Esta tendo febre? Muito suor à noite? Diarréia?_ perguntou me olhando as costas e peito desnudos_ Deixe ver os pés. Tire o tênis.
- Estou suando muito de noite, mas é só _ falei.
Ele examinou minhas gengivas e por dentro de meus olhos. Apalpou minhas ínguas e disse que logo, logo sumiriam. Me pesou, anotou na ficha, comentou que eu nao tinha emagrecido, o que era bom. Apesar de o remedio prometer anemia como efeito colateral, isso ainda nao tinha aparecido.
Alex falou que nao deixava que eu me alimentasse mal, e o doutor concordou com ele, pedindo que continuasse com aquele cuidado. Cigarro e alcool deviam ser evitados. O primeiro por afetar os pulmoes, que no paciente com Aids seriam um tipo de calcanhar de Aquiles. Mas nao fumavamos, eu nunca gostei mesmo, e Alex tinha parado fazia muito tempo, logo depois de eu comentar um dia com ele que detestava homem com cheiro de cigarro. Alcool nao podia por interferir no medicamento. Uma regra dura, mas obedeci sem questionar. O medico ainda perguntou se seguiamos usando preservativo no sexo, o que confirmamos.
- Bem, Marcos, seu estado geral esta bom_ disse ele afinal, me olhando_ O exame acusou isso. As células CD4 que sao destruidas pelo virus estao num numero estagnado em voce. Ou seja, o AZT esta adiando a evoluçao da doença, desacelerando o ritmo da reduçao dessas células de defesa. Sua carga viral tambem esta mediana, e vamos trabalhar para que fique baixa e depois, indetectavel, o que seria excelente. Por enquanto, nao houve recuo da doença, claro, mas nao houve avanço, o que já é ótimo.
- Eu falei, cara, falei que daria certo!_ disse Alex empolgado, segurando minha mão.
Sorri, sem acreditar. Parecia pouco, é verdade, mas para mim me acendeu uma esperança que era ate entao uma fagulha. Continuei ouvindo as explicaçoes do doutor, algumas recomendaçoes e enfim saimos, Alex e eu quase alegres.
- Vamos tomar um sorvete, para comemorar_ disse ele.
Achamos uma sorveteria no outro quarteirao, nao muito movimentada. Pedi sorvete de chocolate, com muita castanha moida por cima. Tocava alto ali um The Police, Every Breath You Take. Era tudo tao simples, viver era simples, e eu senti uma alegria tao grande com aquilo, uma sede de vida ainda maior do que a que eu naturalmente já tinha.
- Vamos na boate sábado, Alex?_ pedi a ele, num entusiasmo.
- Só um pouco, certo? Acho que voce esta merecendo.
Me deu um sorriso bonito, e eu retribuí. Seria muito bom, com certeza!
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Valeu, povo!
Ate a proxima, lindos.
Beijao! :)