" Os minutos que nos uniram são mais poderosos do que os séculos. E a luz que iluminou nossas almas é mais forte do que as trevas. Se a tempestade nos separa neste mar encolerizado, a maré alta nos juntará naquela praia tranquila; se a vida nos matar, a morte nos ressuscitará " (Khalil Gibran)
1946
No trem que me levava de S.Paulo à minha cidade natal, Jundiai, a ansiedade, o receio e o nervosismo me dominavam. Estava hà doze anos longe de casa, e apenas tinha retornado rapidamente em duas ocasioes distintas: no casamento do meu irmao Rodolfo e hà um ano, quando meu pai faleceu. Agora, entretanto, eu voltava para ficar.
Foram sete anos no internato, e depois mais cinco na Universidade de Direito. Vinha agora com um diploma novinho em folha, nenhuma saudade de casa e muita saudade do meu Paolo.
Trazia, como sempre, a medalhinha que ele me deu. Nao tirava nem para tomar banho, e como era feita em ouro, presa por uma finissima corrente de ouro maciço que tive de arranjar pois ele tinha apenas a medalha, era uma joia solida e de extremo valor sentimental: o Sagrado Coraçao de Jesus com um pequenino rubi no centro da figura, no formato de um coraçao incrustado na peça.
- A unica coisa de valor que tenho _ dissera ele na vespera de minha partida para a capital, naquela nossa despedida chorosa ao cair da noite, nos fundos do jardim de minha casa _ Fica com ele, Nano, que sera como se voce ficasse comigo todos os dias.
Era uma tristeza tao grande deixa-lo, ir embora para um lugar distante e desconhecido, por longo tempo... Nao sabia se crianças entenderiam o que seria o amor, mas ali, à luz melancolica do outono, da tarde que se despedia como que tambem dando o seu adeus à nossa curta historia ate aquele momento, compreendi que o amava mais do que qualquer outra pessoa, mais talvez do que a mim mesmo. Que o tinha amado desde a primeira vez, no instante em que vi aquele menino pobremente vestido, vendendo jornais na esquina de minha casa.
Apesar do abismo social que deveria nos separar, a amizade foi imediata, foi um tipo de encaixe ideal como se aquela fosse a situaçao esperada, algo que tinha que acontecer. Nas folgas dele do trabalho, brincavamos no imenso jardim là de casa com a conivencia dos empregados e a indiferença de meu pai que se enterrara em vida desde a morte de minha mae hà alguns anos.
Paolo tinha um ano a menos de idade do que eu, que tinha acabado de completar onze. Sua casa era grande, posto que extremamente humilde, sempre repleta de visitas e parentes, pois sendo eles de descendencia italiana, eram alegres, unidos e hospitaleiros. Todas as vezes em que là estive fui muito bem recebido, muito bem alimentado por iguarias estranhas e deliciosas, e me diverti a valer nos dias de feriado e festa onde cantavam e dançavam no quintal cimentado.
- Lucianino! _ me recebia a mae do Paolo naquele sotaque forte, ao me ver chegar nos domingos de macarronada.
Ela usava o diminutivo em italiano do meu nome, Luciano, enquanto Paolo, desde o principio, me apelidara de Nano. Apenas ele me chamava assim, e eu gostava mais, dava à nossa relaçao um carater de exclusividade, de intimidade unica. No quarto limpo e simples onde ele dormia com a cama abarrotada de gatos de varias cores e tamanhos, ficavamos sozinhos esperando a macarronada ficar pronta, jogando bolinhas de gude no chao encerado.
Ouvia-se a conversa alta e abundante da familia dele là na sala, e, quando nos cansavamos do jogo, nos encostavamos ao pe' da cama, sentados no chao. Nunca temi sujar minhas roupas comportadas, de excelentes tecidos que o alfaiate Manuel transformava em otimas peças de qualidade.
- Eu queria entender porque gosto tanto de voce, em tao pouco tempo _ disse Paolo de um jeito serio, num longo intervalo de nossa conversa despretensiosa _ Nao acha isso estranho?
Eu tambem pensava o mesmo, porem me calei, vermelho de vergonha. Como ia explicar que tinha vontade de abraça-lo bem apertado muitas vezes ao dia, que queria seu corpo perto do meu, que imaginava como seria o cheiro de seus cabelos pretos e fortes? Eu mesmo nao entendia isso.
- Deixa eu fazer uma coisa, Nano? _ pediu ele com voz tremula, me olhando de pertinho, um olhar de receio, de expectativa.
- O que? _ sussurrei.
Ele nao respondeu, nervoso, respirando curto e pondo sua mao levemente ao lado de meu rosto, encostando numa pressao macia e salina sua boca na minha. Como se uma rajada de vento violento tivesse rompido com força a tranca de uma porta, o susto, o choque e sobretudo uma intensa alegria me invadiram num golpe, arrancando tudo dentro de mim e me fazendo flutuar como uma pipa. Abri a boca e a lingua quente dele tocou na minha, desajeitada, e era estranho, doce, novo; nossa respiraçao falhou e precisamos nos soltar, permanecendo por longos minutos sentados lado a lado, dominando nosso constrangimento e aquela felicidade que era tao grande para que a entendessemos de uma vez.
- Voce gostou? _ perguntou ele sem me olhar, quebrando o silencio.
- Sim, mas... _ eu mesclava confusao, espanto e alegria _ Somos meninos, Paolo. Nao sei se meninos fazem isso...
- Mas eu gosto de voce assim...
- Eu tambem _ sussurrei, corando _ Faz tempo.
Ele sorriu consigo, repentinamente contente. Puxou pelas duas pernas um gato amarelo que dormia na cama e abraçou o bichano, rindo no pelo dele, sussurrando ao animal qualquer coisa que nao entendi. Achei estranho e engraçado o jeito dele, e me lembro de termos brincado bastante naquele dia, no quintal da familia dele junto com as outras crianças.
Entretanto, creio que devido à nossa imaturidade e vergonha, aquele beijo tornou a se repetir apenas mais duas vezes. Uma delas foi numa tarde de tempestade e raios quando eu, com medo, fui abraçado por ele, interrompendo nossa partida de cartas no chao do quarto. Do abraço, Paolo tomou a iniciativa do beijo, e foi mais demorado, mais arrepiante do que o outro, ainda que seguido por constrangimento novamente e por poucas palavras. Na ultima vez, na nossa despedida na minha casa, naquela tarde fria. Ele chorou, e era a primeira vez que eu via aquele menino sempre tao audaz e impetuoso chorar na minha frente. Abracei-o, comovido, e ele me beijou entre as lagrimas, sussurrando que me amava. A minha tristeza nao tinha precedentes, e apesar de estar, na verdade, fugindo daquele inferno asqueroso que eu estava vivendo havia dois meses desde que meu irmao Rodolfo voltara do Exercito, eu nunca iria querer aquilo, que era ficar afastado do meu italianinho.
- Voce volta, Nano? _ perguntou ele, secando as lagrimas na manga da blusa velha.
- Volto. Eu juro... _ prometi, fungando de choro _ E venho te procurar.
- Eu vou esperar.
Estaria ele ainda esperando? Era o que eu me indagava agora. Aquele trinta de março de 1934 ainda estava vivo em mim, e assim tinha permanecido por todos aqueles anos. Eram lembranças que nao se apagavam, que nao perdiam o vigor, e que agora embalavam minha volta para casa no sacolejo do trem.
Enfim, chegamos à estaçao por volta das dez horas. Segundo o telegrama que recebi ainda em S. Paulo, meu irmao e minha cunhada Yedda me receberiam; contudo, assim que desembarquei, vi apenas Rodolfo ali na estaçao me aguardando no seu costumeiro ar cinico. Outra vez, olhando-o, o mesmo asco, odio e terror de antes me assaltavam como se eu ainda tivesse onze anos de idade.
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Espero que curtam esse conto. Sera uma historia diferente da anterior, uma historia de amor mais tradicional.
Opinem! :)
Abraços em todos!