- Voce deve ser o novo professor? - indagou o garoto chegando perto de mim, ofegante pelo nado; tinha uma voz impaciente, aguda, como se ainda nao fosse totalmente desenvolvida.
- Sou... sou - respondi gaguejando, sem tirar os olhos de cima dele.
Sera que nao se lembrava mais que quase tinha me atropelado junto do colega, que me fizera um gesto obceno? Parecia que nao. Era um garoto muito novo, eu nao lhe daria mais de quinze anos, talvez menos. Corpo franzino, sem pelos no peito branco como marmore, o rosto de traços delicados, nariz pequeno e afilado, labios levemente rosados, entreabertos pela respiraçao curta, os olhos impertinentes, de um verde azulado magnifico. Uma beleza agressiva, como ele todo, conforme logo descobri.
- Pode ir embora - falou com desdem - Nao preciso de professores.
Encarei-o, estupefato, sem saber ao certo o que fazer. Todavia, para minha sorte, veio là de dentro da casa uma mulher loura e alta, com cerca de quarenta anos, um porte imponente. Devia ser a mae do garoto.
- Professor Eduardo, como vai? Sou a Eliza, mae do Guilherme - disse ela como que se desculpando - Nao leve a mal as maneiras tortas dele. Ele precisa e vai ter sim um professor.
- Sem o meu consentimento! Nao pedem minha opiniao, nem querem saber! - bradou o garoto num acesso de ira - Acham que quero perder parte do meu sabado estudando?
- Acho que voce nao tem escolha, mocinho! -replicou a mae dele, olhando-o dum modo brutal - Agora suba e coloque uma roupa, que o professor jà vai entrar. Ande!
- Voce me paga! - sussurrou ele à mae, de passagem, correndo furioso para dentro.
Ela me olhou um pouco constrangida, e eu achei chocante que um pivete como aquele ameaçasse a propria mae tranquilamente. Talvez minha educaçao tenha sido muito antiga e rigida. Os pais mais jovens decerto nao tinham o mesmo pulso firme dos seus antecessores.
Passamos para dentro de casa, numa sala moderna e suntuosa, diferente da antiguidade que era o aspecto exterior da habitaçao. Foi servido cafe com biscoitos e a mae do Guilherme ia me explicando todo o problema escolar do garoto: ele ia à escola quando queria, e se ia sequer abria o caderno, preferindo a bagunça com os outros maus elementos da classe; suas notas avermelhavam o boletim. Aquela era jà a segunda escola em um ano, mas nao estava adiantando nada. Os pais discutiam com ele, ameaçavam, porem era tudo inutil, apenas o tornava mais rebelde. Era essa a situaçao ha dois anos (ele tinha acabado de completar quinze, como eu supus) .
Evidentemente, o problema era maior do que eu poderia resolver. Porem, ali, minha unica tarefa seria fazer o garoto melhorar as notas e passar de ano, o resto era espinhoso demais para que eu me metesse.
Depois do cafe, me indicaram o quarto de Guilherme e uma empregada subiu comigo ate o longo corredor, luxuoso como o de um hotel de primeiro mundo, desses que saiam em revistas de viagem. O som alto do tocador de discos me recebeu no quarto do moleque, rodando o "Monday, Monday", do conjunto The Mamas & The Papas.
Guilherme estava deitado na cama larga, olhando para o teto, parecendo irritado. Vestia camiseta azul marinho e um calçao branco, como o de um tenista.
- Pode abaixar o som? - pedi, colocando meu material numa mesa redonda de madeira trabalhada que havia ali, coberta de revistas - Nao precisa desligar...
Ele se levantou e me encarando com raiva, abaixou o som do disco. Puxou depois uma das cadeiras da mesa e se sentou com um ar de estafa, me olhando mexer no material dentro da pasta.
- Fica ate que horas? - perguntou.
- Ate meio-dia.
- Tudo isso? - ele fez uma careta de desanimo.
- Quer aprender toda a materia atrasada em meia hora? -falei, me sentando - Em primeiro lugar vou passar um teste para voce. Esta no ginasio, nao? Preciso ver o que voce já sabe.
- Odeio estudar. Odeio a escola - resmungou.
- Voce e mais um punhado de garotos. Mas nao quer se tornar um ignorante, quer?
- Sou rico, querido. Tenho de tudo - declarou num ar de mofa, singularmente afeminado.
Era a primeira vez que eu lhe flagrava assim. Nao pude perceber, antes, mas as vezes ele mexia com certo orgulho e cuidado naquela cabeleira clarissima, abundante e extremamente lisa que lhe cobria o começo das sobrancelhas, descia ao lado tapando as orelhas e terminava no inicio da nuca. Era o penteado da moda, uma influencia "Beatle", e nele ficava perfeito.
- De que adianta ser rico e burro? - disse eu, sem rodeios - Seus amigos ricos e inteligentes vao zombar da sua ignorancia. Nesse ponto seu dinheiro nao vai lhe ajudar.
Aquilo pareceu atingi -lo no ego pois se calou, me observando redigir o teste numa folha de almaço.
- Que idade voce tem? - indagou ele de repente -Parece ser bem novo para um professor.
- Tenho vinte e sete. Sou professor ha alguns anos já.
- Jovem ainda. Meus professores sao todos velhos e feios. Detesto eles.
Essa observaçao me fez ficar constrangido, e evitei olhar para ele.
- Mora onde?
- Na Vila Mariana - respondi.
- Longe pra burro! - exclamou ele chegando perto, arrastando sua cadeira para o meu lado - Deixe ver o teste... Bela letra! Voce se assustarà com meus garranchos... Eduardo seu nome, nao?
- Pode me chamar de Edu - olhei-o: estava perto demais e exalava um cheiro doce como de suco, de talco, nao soube precisar.
- E voce pode me chamar de Gui - disse ele com certo tom sarcastico, olhando-me rapidamente e voltando os olhos para o papel almaço; passou a lingua depressa sobre os labios num gesto distraido, uma lingua vermelhissima, como a de um gato - Nao prometo ser um bom aluno, nao.
Ouvi essa ultima frase quase sem entender, fitando-o profundamente. Eu parecia ter engolido um pedaço de brasa, tamanho o calor que se irradiava dentro de meu corpo. Respirei fundo para retomar meu autodominio. "Perigo", pensei.
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Quem quiser, pode me escrever :
aline.lopez@gmail.com
Valeu! :)