"A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de doidos." (Erasmo)
1969
Aquela estupidez dele tinha nome e profissão: Raul, professor. Que milicos, que revoluçao socialista, que nada! Estava me deixando por causa daquele coroa safado. Disposto a se embrenhar na mata, na selva amazônica, arriscando a morrer com uma bala nas costas por causa do maldito professor. Jogando fora toda nossa historia, nossa uniao, como um punhado de roupa velha.
- Eu desconfiava! - exclamei sem conter a raiva e a magoa - Por isso essa indiferença, essas saidas noturnas... Era ele, nao era?
- Ficou louco, Edu? - gritou ele - O cara tem idade para ser meu pai!
- E dai? O Guto viu voces dois juntos no carro, no estacionamento da faculdade. Disse que o velho estava com a mao na sua nuca... Negue agora!
- Isso nao quer dizer nada - ele resmungou, terminando de fechar a maleta abarrotada - O Guto sempre foi abelhudo. Nao foi à toa que descobriu nosso caso là no pensionato... Mas agora ele anda vendo coisas e voce vai na onda.
Pegou na gaveta da comoda umas coisas suas: varias fotografias, isqueiro e cigarros, um canivete suiço, o livro de Garcia Lorca que lhe dei de aniversario e o Karl Marx amarelado e sem capa, presente do professor Raul. Ultimamente, aquele livro era a sua "Biblia", o norteador do seu ideal, do seu novo futuro sombrio, e como eu passei a odiar aquele volume de folhas ensebadas e nojentas, mil vezes manuseadas...
- Eu vou por algo maior - declarou ele com certo orgulho.
- Sei bem o que significa esse "algo maior" - falei num sarcasmo perverso.
- Que ridiculo! - ele me encarou, zangado - Sabe mesmo o que me desencantou em voce? Foi essa sua alienaçao. Enquanto o pais todo esta envolvido por uma coberta de sombra e medo, voce nao quer saber de nada, continua com sua vidinha de merda, dando aulas para aquelas crianças ricas e idiotas, indo ao cinema, comprando livros e revistas inuteis, porque tudo esta muito bem, nao? Que se foda o Brasil inteiro desde que voce fique bem nessa sua existencia de burgues.
- E eu tenho o dever de me ocupar com isso? - repliquei, irritado - Configura um grave crime o fato de eu nao querer me meter nessa historia? Porque eu nao ligo, mesmo. Danem-se os militares, os comunistas, os banqueiros, toda essa corja! Nao quero saber, nao me interessa. O que eu queria era ter voce comigo como antes. A gente se amava, Leandro, nossa vida era boa. Desde que voce começou a andar com esses ex colegas de faculdade, esses revoltadinhos da UNE, do Partido, o canalha do Raul...
- Cala a boca! - sibilou ele, furioso - Nao me faça sair daqui com odio de voce, Edu. Cada palavra sua me faz ter ainda mais decepçao... Se nao tem capacidade para compreender essa luta, entao se cale, viva nessa sua concha tranquila. Do outro lado tem gente dando a propria vida pela liberdade de idiotas como voce.
Saiu do quarto, pronto para ir embora. Como ele conseguia ir assim, pleno de decisao,de tranquilidade? Eu nao representava mais nada? Raul era entao o seu mais novo heroi? Nao podia ser. Senti um desespero e fui atras dele, segurando seu braço.
- Pensa bem, Leandro... - murmurei, fitando-o de perto - Voce tem a vida inteira pela frente... Talvez esteja se arriscando demais.
- Vou tambem por isso - respondeu, me encarando - Por ser jovem e audacioso. Os mais velhos sao como voce: nao estao dando a minima. Mas eu... talvez eu volte e entao... podemos ver como vamos ficar.
A sensaçao de que eu nunca mais ia ve-lo era forte, dolorosa, um golpe seco e inesperado em meu coraçao sempre tao sossegado e que agora sangrava de tristeza. Olhamos um para o outro e engolindo o meu orgulho abracei-o com força, mas ele retribuiu muito pouco, parecia frio de repente. Eu nao era mais o que ele esperava em um homem. Raul e Karl Marx eram melhores, e estavam levando-no de mim fazia algum tempo, sem que eu nada pudesse fazer para impedir; e agora era para sempre.
- Vou ficar bem_ ele disse, abrindo a porta para a escuridão da noite fria, me olhando uma ultima vez, sem o amor de antes, apenas com melancolia - Adeus, Edu.
E se foi, fechando a porta atras de si. Meu namorado ha mais de um ano, indo embora. Fiquei parado no meio da sala, olhando tristemente para o nada, mas sem conseguir chorar.
*
*
*
Olà, gente, quanto tempo, rs. De volta à ativa, a esse vicio bom :)
Espero que curtam essa historia, que vou tentar para que nao se torne longa, triste ou piegas como as outras. Vamos ver!
Opinem à vontade, como sempre. Gosto disso!
Abraço! :D