As noites em que ele nao aparecia eram longas, frias e tristes. Na sala mal iluminada pelo abajur com sua lampada fraca e suja, eu ficava ouvindo Beethoven bem baixinho, ou uma opera de Wagner, esperando o sono vir e o meu ciume se acalmar e me tirar da cabeça as imagens pavorosas que surgiam sobre o Guilherme com outros homens.
Algumas vezes Jonas me fazia companhia nessas horas. Nao representava quase nada para mim aquela presença meio silenciosa dele, como que sempre constrangido e com receio de desagradar. Uma noite, entretanto, ele fez uma observaçao cautelosa sobre o Gui.
- O guri sumiu daqui de casa, nao? - disse em voz baixa, e na penumbra da sala notei de relance que ele apertou o meio das pernas devagar.
Nao respondi nada, jà que nao havia o que dizer. Nosso silencio dizia tudo, e palavras eram desnecessarias. Meu olhar tristonho permaneceu longo tempo parado, olhando sem ver uma ponta do tapete sujo e desfiado. Se ele tambem sentia falta do Gui de uma maneira indireta, porque assim acabava aquele seu estranho modo de obter prazer nos observando, que se consolasse com lembranças. Era mais facil. Dificil era estar na minha pele de miseravel apaixonado, doente de ciume e desprezado.
Puxei outro assunto com ele, meio sem interesse. Quis saber se ele tinha namorada là em Londrina, onde vivia com os pais. Respondeu que namorava uma mocinha sem graça, que vendia cocadas na praça da cidade, mas era uma coisa à toa, um namorico de portao e ele nem se despediu dela quando veio embora. Fez uma pausa na conversa e começou depois a falar sobre os pais, dando a entender que estava longe de ser o filho preferido do casal de velhos, e eu o compreendia sem que ele precisasse dizer muito. Desde cedo dando duro na vida, ele estudou pouco porque precisava ajudar nas despesas da casa, enquanto o pai se virava em mil para proporcionar ao Guto a oportunidade de cursar uma faculdade aqui na capital. Enquanto um irmao seguia trabalhando como um condenado, semi-analfabeto, o outro conseguia formaçao superior. O orgulho da familia.
- Sou um burro de carga desde pequeno - dizia Jonas com um sorriso triste, meio magoado, tentando inutilmente fazer caçoada.
Eu o observava com atençao, sentindo empatia por ele, apesar de lá na minha casa nunca ter recebido tratamento diferente. Era rigidez e amor em doses iguais para todos, minhas duas irmas gemeas de vinte e tres anos e eu. Ambas jà estavam casadas e eu sobrava, aguentando as cobranças deles por uma namorada que, claro, nunca viria. Sorte que moravam longe, no nosso sitio em Campinas.
As horas passavam lentamente, eu colocava ópera para ouvirmos e Jonas não entendia porque naquelas músicas "gritavam tanto". A rusticidade dele me espantava as vezes, assim como suas unhas sujas de mecânico, já que ele tinha arranjado serviço numa oficinazinha longe dali, dias atrás. Do que ele gostava de ouvir? Perguntei e me respondeu que apreciava modas de viola, algo absolutamente horrivel no meu entendimento, e lembrei que meu pai tambem gostava. Quando indaguei sobre o tipo de aprendizado que ele recebeu na escola, Jonas enrolou e nada respondeu de concreto; passei entao a achar que ele nao sabia quase nada, que nao lia livros nao porque nao gostasse deles, mas porque nao sabia mesmo ler muito bem.
- Se quiser posso lhe dar umas aulas toda noite, depois do jantar _ sugeri _ Temos esse tempo vago, mesmo.
Ele relutou um pouco, naquele orgulho simples e que de nada ajudava. Insisti e afinal concordou, observando-me separar cadernos e lapis para começarmos na outra noite, substituindo aquelas penosas horas de silencio inutil e da falta do Gui, por algo mais necessario.
Como imaginei ele era praticamente analfabeto, assinava o proprio nome pessimamente, nao sabia matematica e lia muito pouco, enroscando as palavras. Felizmente era esforçado, atento e apesar das maos grossas de homem que pegava pesado no trabalho, cuidava com zelo do seu material de estudo. Chegou a encapar os cadernos com folhas de jornal, pregando etiquetas com seu nome em letras de forma, mantendo os lapis presos por uma larga tira de couro branco. Orgulhava-se do aprendizado, de cada pequeno progresso, e eu me orgulhava por ele.
Afinal, apos quase tres semanas de sumiço, sem aulas por causa das ferias de julho, o Gui surgiu là em casa numa noite gelada. Veio com um ar de tedio, de quem começava a se cansar de algo. Nao me abraçou, nao cumprimentou o Jonas, disse apenas um "oi" sem graça para mim e seguiu para o quarto. Troquei um olhar significativo com Jonas que se levantou devagar; fui atras do Guilherme, tomando o cuidado de deixar a porta encostada para o outro.
- O que aconteceu? - indaguei enquanto o garoto se despia com movimentos vagarosos - Sumiu por semanas! Quase fui na sua casa atras de voce.
- Se tivesse ido encontraria os portoes fechados - respondeu sem me olhar - Viajei com os meus pais, passamos as ferias na Holanda. Satisfeito? Agora vamos logo com isso antes que eu me irrite.
Aquela violenta voracidade que eu tinha dele falou mais alto. Despi-me com rapidez e avancei com furia sobre ele, doido por sua carne tepida, cheirosa e macia como a de um filhotinho. Ele gritou abafado quando o penetrei salivando de gula como um maniaco, enquanto metia e o sufocava de beijos sofregos, erguendo suas pernas e socando agilmente como um pilao. Que saudade de seu odor adocicado, de seus cabelos lisos. Ouro e seda, misturados. Suas caretas eram de dor, e ele mordia os labios, respirando com esforço.
- Està doendo, Edu - reclamava, de olhos marejados - Para!
- Nao... Espera... Espera - beijei-o com ardor, mordendo seus labios entreabertos, metendo mais, louco já de prazer.
- Eu odeio voce... Odeio - sussurrou ele chorando, olhando para o lado.
Meu prazer chegava na velocidade de um cometa, explodindo na Terra, explodindo dentro dele, e parecia que era tanto esporro, uma enxurrada alva e quente. Retesei o corpo, como que fulminado, arquejando de olhos fechados e depois me deixando escorregar naquele torpor, naquela moleza em cima do garoto, beijando-o de mansinho, num agradecimento. Ele me empurrou para o lado, irritado, e deitando de costas vi Jonas na fresta da porta, terminando de guardar o penis sujo dentro da calça, me fitando diretamente com uma expressao sombria. Fechou a porta em silencio.
Saindo devagar daquele maravilhoso entorpecimento, notei Guilherme se vestindo apressado para ir embora. No lençol onde ele estivera deitado via-se muito esperma espalhado, misturado a algumas marcas de sangue. Olhei para ele, preocupado.
- Voce esta bem? Desculpe te-lo machucado - falei me levantando e tocando-o, no que fui repelido com irritaçao.
- O que voce acha? Olhe o seu tamanho e olhe o meu - respondeu, furioso - Estou pegando raiva e nojo de voce, Edu!
- Nojo? E porque? - fiquei perplexo - Acaso chega aqui jà saciado? Encontrou outro? Responda!
- No dia que eu encontrar alguem que me mereça, voce sera o primeiro a saber - falou num cortante desprezo.
- Eu mato - murmurei, louco de ciume e de odio - Mato os dois.
- Tenho certeza que nao, professor - finalizou ele com sarcasmo, saindo do quarto.
Vesti rapidamente minha cueca e fui atras dele assim mesmo, suado, descabelado. Segurei seu braço quando ele jà alcançava a porta.
- Voce esta diferente comigo - disse a ele numa impaciencia crescente, perscrutando-o com o olhar - Deve estar com outro, um panaca qualquer que voce seduziu por brincadeira, como eu...
- E se for? - ele me desafiou, chegando perto de meu rosto, empinando aquele seu nariz petulante - Jà pensou, meu querido professor? Eu chegando aqui na sua casa, vindo te beijar com minha boca ainda pegajosa do semen do outro? Sabe, alguns brinquedos cansam depressa...
Aquilo foi demais, nao pude me segurar. Quando percebi tinha estapeado-o com força, com raiva. Ele quase caiu, tocando o lado atingido do seu rosto que avermelhava intensamente. A culpa e a perplexidade me acertaram como um alvo facil demais.
- Desgraçado! - ele gritou, avançando para mim, tentando me socar, enquanto eu o segurei, apertando aquele garoto num desespero subito, suplicando baixinho que me perdoasse, porem ele nem me ouvia, se debatia furioso - Me solte! Seu louco filho da puta!
- Solta ele, Edu! - disse o Jonas atras de mim, com uma voz assustada.
Larguei o Gui que se afastou furioso e tornou a avançar, me aplicando uma ardida bofetada na cara. Recuei, e nos olhavamos com espanto, quase horror.
- Nunca mais olha na minha cara - disse ele em voz baixa, segurando por tras a maçaneta da porta, pronto para ir.
Observei-o com o coraçao parando no meu peito. Nao, qualquer coisa, menos aquilo. Era cruel demais, ele nao podia... Me ajoelhei diante daquele serafim maligno, enxotando de uma vez qualquer vestigio de dignidade que me sobrava.
- Nao, Gui... Por favor, nao vá... Por favor - balbuciei com a voz embargando.
- Nunca mais, Edu - disse ele num tom severo, inabalável, abrindo afinal a porta e saindo numa carreira dentro da noite fria, negra.
Fiquei ali parado, sem acreditar, olhando por onde ele tinha saido. Sem querer eu já chorava, soluçando baixinho. Morrer nao era assim. Morrer devia ser algo sereno, como um sono irresistivel. Aquilo era dor pura, uma paulada na cabeça, sem chance de defesa. Alma ferida de morte. Perda total.
- Edu - disse Jonas pondo a mao no meu ombro, me fazendo levantar - Venha. Deixe disso, rapaz.
Me deixei levar ao quarto, docilmente, um pouco tonto feito estivesse narcotizado. A cama ainda estava morna, ainda tinha o cheiro dele. Chorei em silencio, me encolhendo, sendo observado pelo Jonas em pe' diante de mim, serio, espectador mudo de meu sofrimento.
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Valeu, gente! :)
Opinem para que eu possa melhorar, ta?
Abraços, seus lindos!