Alheio ao meu velho e natural equilibrio, sucedeu em mim um estado nervoso que durou cerca de tres dias, de tao abalado que eu me encontrava. Algo novo e horrivel, pois nunca me senti assim, arrasado, sem querer mais viver, como que perdido dentro de mim mesmo. Dormia mal, nao conseguia comer nada e chorava escondido quando chegava a noite.
Era ele na minha mente o tempo inteiro, sorrindo, fazendo expressoes de gozo, de zombaria, aquela criança endiabrada que tive a desgraça de conhecer. Como era possivel eu sentir uma paixao tao forte assim, tao agressiva, algo que me tirava completamente do prumo, que me aniquiliva numa mistura insuportavel e enlouquecida de paraiso e inferno? Mas sabia que ele era meu. Essa era a unica verdade que me bastava e pela qual eu devia ter forças para lutar.
Jonas ficava apreensivo me vendo desse jeito e tentava ajudar como podia. Insistia para que eu comesse alguma coisa, me levantasse ao menos, e eu quase nao falava com ele, num tipo de mudez catatonica. Certa tarde, vindo do trabalho mais cedo, ele colocou o tocador de discos no meu quarto, para que eu "me distraisse", segundo ele, e por um tempo ficava ouvindo Chopin com seu piano tristissimo, aumentando meu desgosto, e depois o Wagner, com o Preludio do Parsifal, e nessa eu nao evitava de chorar baixinho, afundando a cara no travesseiro.
- Mas isso deixa voce pior! - dizia o Jonas, desligando o tocador.
Talvez por nao saber mais lidar com a situaçao, um dia ele trouxe Guto que ficou assombrado com minha situaçao. Certificou -se de que fisicamente eu parecia bem, mas como era esperto, logo interrogou o irmao com um tom desconfiado.
- Nunca o vi assim, Jonas. O que diabos aconteceu?
Jonas enrolava e pouco dizia, tentando nao mentir mal, dando desculpas desconexas, afirmando de nada saber. Seu olhar inquieto, todavia, o denunciava.
- Voces estao me escondendo alguma coisa! - disse Guto irritado - E eu vou descobrir!
Acuou o irmao por mais uns minutos, tentando arrancar alguma coisa dele. Meu olhar feroz, meu silencio, pareciam dizer tudo a Jonas que apesar de enfraquecido pela pressao nao cedeu. Guto foi embora indignado, esbravejando que nao confiavamos nele inteiramente, e que tinha com toda a certeza algo grave por tras daquilo tudo. Que ele fosse às favas com sua bisbilhotice! Nao permitiria que se envolvesse outra vez em meus assuntos privados.
Calado, Jonas permaneceu ainda um certo tempo me observando com um semblante tenso, como quem tinha escapado por um triz de um perigo. Parecia um garoto assustado. Outra vez aquele nosso acordo mudo dizia muito, e eu o agradecia em silencio, ao passo que ele me transmitia a sensaçao de uma sólida lealdade.
Um novo dia, uma manhã apagada, o sol deixando cair luzes de amarelo esbranquiçado pelas coisas, uma luz fria. Pelo vidro da janela do quarto eu observava aquele dia que surgia, indiferente ele a qualquer dor minha, a qualquer alegria. Era como o Gui vindo me abraçar na sua efusividade passageira, todo morno, branco e amarelo. Cheiro de talco, de roupa limpa. Saliva fresca de menino, hálito lácteo de criança.
No periodo da tarde resolvi fazer uma tentativa. Como ainda estava em ferias, tinha esse tempo sobrando e levantando-me apesar de um pouco enfraquecido, me vesti e tomei um onibus em direçao á Rua Augusta onde o vi pela primeira vez.
Obviamente que as chances de encontra-lo nao eram numerosas, entretanto eu contava com paciencia e tempo de sobra. Onde ele costumava ir? Nunca perguntei sobre isso. Pouco me importavam seus gostos, seus habitos, tudo o que eu queria ele me dava generosamente e o resto parecia bobagem. Lanchonetes, talvez? Entrei em varias delas, consumi sem muita vontade milk-shakes e sucos, porem nada dele aparecer. Espera-lo em frente á sua casa seria arriscado e estranho, jà que aquela era uma rua de condominios, de mansoes e chácaras, e qualquer movimento anormal ali seria alvo de desconfianças.
Repeti aquela rotina por dias, passando todas as tardes na rua, entrando e saindo de lanchonetes, de lojas de discos, de cinemas, espreitando sempre atento. O fracasso de minhas buscas me desanimava terrivelmente, lançando-me outra vez ao abismo da depressao, mas houve afinal uma brecha de sol num finalzinho de tarde gelada, como que para me acender as esperanças.
Eu olhava para meu copo vazio e sujo da espuma da cerveja que acabei de beber quando ele entrou na lanchonete, aquela criatura alvar, o deus da minha vida, meu carrasco e anjo salvador. Lindo num sueter azul marinho que salientava sua cor, calça jeans, os cabelos macios meio espatifados na franja. Chegou rindo, acompanhado de um garoto que aparentava a mesma idade que a dele, vestido de pulover cinza com camisa e gravata vermelha, um ar de riquinho. Era tambem muito bonito, os cabelos cacheados de um castanho fulvo, a boca vermelha e magnifica; tinha, no entanto, um certo jeito debil, como se fosse muito fràgil ou muito timido.
Nao me notaram, acomodaram-se na mesa là da frente enquanto eu estava ao fundo, observando-os com o coraçao quase parando, estremecendo vez ou outra. Meus olhos devoravam o Guilherme e eu já estava excitado, sentia-me como um depravado em publico. Temia que ele me visse e fosse embora jà que estava em frente à mim e foi, infelizmente, o que aconteceu. Antes de fazer os pedidos ele passeou o olhar por todo o estabelecimento e parou em mim, serio e compenetrado, me fixando com aqueles olhos perfeitos. Pareceu contrariado, falou rapidamente algo ao outro garoto e se levantaram. Mais do que depressa paguei minha despesa e os segui, saindo pela rua cujos postes de iluminaçao se acendiam com a chegada da noitinha.
A principio não corríamos, pois a rua estava cheia aquela hora, e aos encontrões nas pessoas que iam e vinham, eu conseguia mantê-los na minha vista. As vezes Gui olhava para trás, me via em seu encalço e pegando na mão do garoto apertava o passo, agora quase correndo. Viraram numa esquina e corri para lá, vendo-os desembocar noutra rua, nessa com pouco movimento.
- Guilherme! _ gritei, mas ele nao se voltou para trás.
Corri mais rápido, porem eles eram ágeis, menores do que eu, e corriam melhor. Já suava apesar do frio. Outra rua, estreita e sombria como uma viela medieval. Eles se atrapalharam com o lixo acumulado pelas calçadas e acelerando o passo alcancei-os, conseguindo afinal segurar no braço do Gui que tentou se soltar com um repelão, numa voz um tanto apavorada.
- Me larga, Edu!
- O que voce quer com ele, cara? - o outro garoto tentou intervir, ofegante e assustado, mas eu o empurrei com força, fazendo-o quase perder o equilibrio.
Gui se debatia, visivelmente com medo, quase chorando. Olhei ao redor com receio de que nos vissem. Ao lado havia um grande muro de casa, sem pintura, e do outro umas casas tambem muradas, de onde partia cheiro de comida sendo feita. Ao final da rua uma grande caixa d' agua enferrujada, com vazamento, abrigando outro amontoado de lixo à seus pes. Do outro lado, por onde viemos, o asfalto com a rua melhor e mais larga. Arriscadissimo. A qualquer momento alguem nos veria ali.
- Vou chamar ajuda - disse o amigo do Gui, olhando em volta.
- Se fizer isso te dou uma surra que voce fica por aqui mesmo - ameacei e ele se encolheu, ainda mais assustado.
Com dificuldade arrastei o Gui ate o final da rua, ao pe' da caixa d' agua, aproveitando-me da penumbra daquele lugar soturno. Prendi o garoto nos braços, contra um muro de concreto aspero, e beijei-o com uma sede enlouquecida, uma saudade que me dilacerava sem pena, a toda hora, me matando aos pouquinhos. Ele mal abria a boca, virava o rosto e arquejava, numa careta de nojo e medo.
- Olha pra mim - sussurrei, segurando seu rosto - Fica comigo de novo. Por favor.
- Eu nao quero - ele choramingou, evitando me olhar.
- Eu te amo, te amo muito -supliquei numa agonia, abraçando-o com força, sorvendo seu aroma de olhos fechados - Por favor...
- Nao, Edu, nao...
- Larga o Gui, desgraçado! - exclamou o garoto atras de mim num rompante de furia, me esmurrando as costas - Larga o meu namorado!
Voltei-me para ele como num pesadelo, como se fosse acordar na pior parte. Namorado? Um flerte, talvez, ate passasse, mas namorado? Num fervor de odio repentino tentei socà-lo, contudo ele recuou, àgil, percebendo minha intençao a tempo. Livre de meus braços, Gui foi para junto dele, respirando forte, olhando em volta: em uma das casas à esquerda duas crianças sujas e curiosas nos espiavam pela grade do portao, cochichando. Esse inconveniente nao o impediu, entretanto, de me fitar com um olhar carregado de raiva, desprezo e asco.
- Me deixe em paz! - falou em voz baixa, cortante como um punhal - Eu te odeio. Odeio!
Pegou na mao do garoto, puxando-o e sairam correndo pela rua afora, sumindo na luz vaga do crepusculo que descia. Eu fiquei imovel, olhando o local por onde tinham ido embora, sentindo-me estranhamente vazio. Vazio e gelado como um copo no congelador. Agachei-me encostado ao muro, sentando na calçada em meio aos sacos e tambores de lixo, aos poucos a noite fria me envolvendo, escura e cruel como uma sinistra mensageira do derradeiro fracasso, do meu fim necessario.
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Obrigadissimo a todos, quem le e comenta, quem soh le...
Comentem para trocarmos ideias, ok? :)
Beijao, seus bonitos! *-*