Chegamos à S. Paulo em uma sexta-feira nublada, com vento e muito frio, por volta das duas da tarde. Era bom rever a cidade com sua aura cinzenta e agitada, sua alma feita de pedra, frio e garoa. Senti muita falta disso no sitio dos meus velhos.
Como Guto tinha afirmado, minha casa continuava como deixei e nada estava fora do lugar. Nenhum sinal dos milicos, dentro e fora. Tiveram mesmo a intençao de procurar por Leandro ali? Parecia que nao. De qualquer modo, eu estava resolvido: por via das duvidas nao gostaria de permanecer naquele local, e me mudaria o quanto antes.
Telefonei ao Guto avisando que jà estava de volta e à noite, antes do jantar, ele apareceu com as noticias que eu esperava. Meu cargo na Escolinha estava aparentemente mantido (acreditaram na mentira da minha "doença"), precisando apenas que eu falasse com o diretor, tendo decerto que enganà-lo mais um pouco. Quanto à casa que pedi que me arranjasse, ele falou que tinha conseguido ate agora um lugar com uma vizinha do colega dele, para os lados da Ipiranga.
- Ontem mesmo fui ver a casa - disse Guto, descascando uma das mexericas que eu trouxe do sitio - A mulher cobra um bom preço, porem, meu caro, a casa esta vinte vezes mais velha do que a dona. Chao de madeira sem nenhum lustre, janelas imensas que abrem aos pares, com postigos, uma escada rangente... Escura e fria como uma caverna. Tem cinco comodos. Creio que deve ter uma verdadeira assembleia de fantasmas là dentro.
Eu nao me importava com nada daquilo, desde que a construçao fosse solida o suficiente para alguem morar nela. Iria ver a casa, claro, mas jà estava decidido a me mudar depressa.
Por ultimo Guto tinha conseguido um emprego para o Jonas, numa fabrica de peças de aço. Nao pagavam bem, mas era o que havia por enquanto, e o rapaz parecia conformado. Estava, alias, muito mais calado do que o habitual e havia varios dias que praticamente nao me dirigia a palavra. Desde que falei em voltar à cidade que cessaram seus convites de passeio pelo sitio, e no domingo ele saiu para pescar sozinho, sem me avisar. Nas nossas aulas de toda noite Jonas estudava com o mesmo empenho de antes, contudo sem sorrisos, nem observaçao alguma, calado como um aluno mudo. Aborrecido comigo, talvez decepcionado ou frustrado por eu nao poder retribuir à altura o que ele esperava. Porque foi gostar de mim? Porque se envolvera a tal ponto, se permitindo a isso mesmo vendo o quanto Guilherme preenchia meus pensamentos, dominava meus sentimentos? Era um ingenuo. Provavelmente nunca se apaixonara e agora, de primeira, se envolvia com a pessoa errada. Um homem hermetico ao amor dele, absolutamente impermeavel a outra paixao que nao fosse pelo Gui.
Mesmo assim, quando me mudei para a casa escura da Ipiranga, nao deixei de levà-lo. De certa forma fiquei com pena dele. Ia ganhar pouco na fabrica, e se fosse morar sozinho teria grandes despesas. Comigo ele dividiria os custos, entao nao se sobrecarregaria. De mais a mais, estava acostumado com ele, com sua mansidao, silencio e lealdade. Aceitou morar comigo nem feliz nem infeliz, apenas resignado com seu destino.
Na casa sombria, que cheirava a bolor e madeiramento velho, nosso silencio parecia maior, insuperavel. As vezes, para quebrar com aquilo, eu punha algum disco no tocador e as horas ociosas eram entao preenchidas com Strauss, Chopin, Weber, e creio que Jonas começava a gostar pois ouvia as musicas ate o fim, sentado em uma cadeira em frente á janela grande como uma porta, olhando a rua debruçado sobre o parapeito.
Se aquela casa estranha era mal-assombrada, eu nao sabia, contudo cansei de ouvir sons de rangido na escada velha altas horas da noite, como se tivesse alguem pisando com cuidado nos degraus. Nao era o Jonas pois o quarto dele ficava ao lado do meu e as dobradiças da porta quase gritavam toda vez que ele a abria e fechava. Num domingo, enquanto almoçavamos e ele parecia mais falante, contou ter visto a figura translucida e apagada de um velho grande, cabeça branca, parado no alto da escada e olhando tristemente para o andar de baixo. Jonas tinha levantado para ir ao banheiro e, no corredor, o velho olhou diretamente para ele, balançando a cabeça como quem concorda com algo, em seguida descendo a escada vagarosamente. Perguntei se ele tinha ficado com medo. Jurou que nao.
Para mim, os vivos eram quem causavam estragos em minha vida. Particularmente aquela serpente branca, aquele ser maligno que tinha me enfeitiçado e caido fora quando se entediou. Eu precisava ve-lo, sentia uma urgencia disso todos os dias, trabalhava com a cabeça nele, nas lembranças lascivas, impossiveis de esquecer. Todas as tardes, ao final de meu turno na Escolinha, eu passava pela rua Augusta, observando atentamente na esperança de ver o garoto. Era inutil. Talvez ele evitasse aquele lugar por minha causa... Estaria ainda namorando o riquinho medroso? Provavelmente jà tinha se enjoado dele tambem.
Convencido de que na Augusta eu nao o encontraria, restava entao uma ultima alternativa que era procura-lo à porta da escola dele. Sabia onde ele estudava, pois D. Eliza me dissera: Colegio Padre Manuel da Nobrega. Como estudava no periodo matutino, eu precisaria sacrificar meio dia de trabalho para ir à sua procura, coisa que fiz sem pestanejar.
Às onze e meia da manha parei em frente ao predio baixo e largo do colegio. A rua era ampla, movimentada, e àquela hora apinhada de imponentes automoveis que esperavam os estudantes, com os motoristas fumando, entediados, olhando constantemente para os relogios de pulso. Em frente à escola havia uma praça pequena, muito bem cuidada, e foi nela que fiquei esperando, com os olhos postos no portao do colegio, indiferente á algazarra de passarinhos no arvoredo à minha volta. Quase meio-dia e uma funcionaria apareceu com as chaves, abrindo o portao e o escancarando. Era a hora. Iam sair. O sinal soou, estridente, e me levantei, andando devagar como num sonho.
A escola cuspiu para fora aquela enxurrada de adolescentes e crianças barulhentas, e no meio deles eu procurava divisar o Gui, ansiosamente, enquanto me aproximava ate perto da entrada. Minha respiraçao parou quando o vi todo sorridente junto dos colegas, mexendo na alça da mochila transversal que usava; estava magnifico no seu uniforme de colegio, calça de brim azul e camisa branca com o emblema da instituiçao. O meu mais lindo aluno. Bençao e maldiçao de minha vida.
- Guilherme - interpelei o garoto, tremulo, notando que ele empalideceu ao me ver.
Seus colegas me fitaram intrigados, e nao vi o riquinho medroso entre eles. Gui dispensou-os com um gesto, falando que podiam ir que ele "trocaria uma palavrinha com o professor". Afastaram -se sem pressa, e o garoto ainda me fixava com um olhar desconfiado onde tambem havia muita irritaçao.
- O que voce quer? - sussurrou - Tambem terei que mudar de escola para que nao me encontre?
Escondi a dor que aquela observaçao me causou, olhando para ele numa suplica ansiosa, uma saudade insuportavel do seu cheiro, seu corpo... Se eu pudesse chegar mais perto! Mas era impossivel assim, em publico.
- Queria falar com voce... _ sussurrei numa voz como que fatigada.
- Nao temos mais nada a falar um com o outro - murmurou ele, severo, num olhar feroz - Nossas relaçoes se acabaram, e de voce quero uma distancia eterna. Esqueceu que me bateu e machucou aquela vez na sua casa? Que me perseguiu na rua, como um tarado? Nao, nao peça perdao! Nao adianta! Seu tempo comigo venceu, Edu, entenda isso. E quando eu nao quero mais, jogo fora mesmo, pouco me importa. Alem de ter pegado nojo de voce, guardei tambem raiva e magoa.
- Nao, Gui - balbuciei com os olhos marejados, respirando com esforço - Por favor...
- Quando eu falei "nunca mais", era pra valer - concluiu ele, duro, me olhando sem piedade nenhuma, seus belos labios contraidos - Agora tenho que ir. Meu motorista esta esperando.
O movimento da rua estava cessando com a partida dos carros. Eu podia chorar, eu queria chorar enquanto ele se afastava devagar, mas nao podia. Embora tivessemos conversado aos sussurros, havia ainda algumas pessoas perto do colegio e achariam isso estranho. No entanto, por dentro, eu era dor absoluta. Abismo negro e infinito. Caindo sem parar. Minhas pernas tremiam.
Observei-o se encaminhar ao automovel reluzente parado debaixo de uma arvore na pracinha. Eu absorvia cada movimento de seu passo tranquilo e despreocupado, principiando a atravessar a rua, por entre o fluxo moderado de carros. Nao, ele nao tinha o direito de ir assim, sossegadamente, enquanto eu ficava sangrando ali. Era injusto e ingrato.
- Gui! _ chamei-o num tom agoniado.
Subitamente, ele voltou sua cabeça loura em minha direçao, parando e me fitando, o cabelo esvoaçando ao redor do seu rosto, tocado pelo vento, como na primeira vez em que o vi. Seu olhar era austero, firme, igual ao de um homem da màxima autoridade, alguem que exigia distancia sem precisar nada dizer. Pequeno e perverso ditador. Mas ele ficou parado me olhando alem do que devia, e aquele apressado Ford Farlaine branco veio avançando rapido, buzinando em cima da hora, sem tempo para frear. Devo ter gritado em pensamento, pois me senti congelado onde estava, vendo com um horror indescritivel o Ford atingir o meu Gui violentamente e jogà-lo a alguns metros de distancia no asfalto.
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Muito obrgada e ate a proxima! :)