A azàfama foi geral: gritos, exclamaçoes de surpresa e horror, sons de buzina, as pessoas se aglomerando em volta do garoto caido.
- Alguem chame uma ambulancia! Depressa! - gritou uma das funcionarias do colegio, abrindo passagem entre o grupo de pessoas que olhavam com expressoes de pena e assombro para o Guilherme.
Lentamente, como quem tivesse de subito a alma arrancada e agisse roboticamente, caminhei ate là, andando feito um sonambulo. "Ele vai levantar, vai sim. Vai sacudir a poeira da roupa e sorrir daquele seu jeito zombeteiro, dizendo que nao foi nada demais, e que precisa ir embora, pois o motorista esta esperando... "
Abri caminho por entre o aglomerado de pessoas assustadas. A alguns passos à frente do grupo, Guilherme estava estendido numa posiçao imovel e estranha, de bruços com seus braços abertos molemente jogados, assim como as pernas, semelhantes aos membros frouxos de um boneco de pano esquecido no chao. Aberta ao lado dele, jazia sua mochila, despontando livros e cadernos bagunçados. O rosto dele estava virado para o outro lado, mas entre seus cabelos tao bonitos e tao claros enxergava-se um tipo de talho sinistro de onde minava sangue em abundancia, formando uma poça debaixo da cabeça dele, escorrendo em filetes e largas faixas pelo lado.
"Levanta, Gui. Por favor".
- Gui... - sussurei, rouco, ajoelhando diante dele, tocajdo seus cabelos, sujando minha mao de sangue - Nao... nao...
- Senhor, nao pode encostar nele - disse uma das funcionarias, pegando-me pelo braço e procurando me tirar dali.
- Me deixe! - berrei, olhando-os com odio - Sou o professor dele.
Num impulso, suspendi o corpo do Gui e o abracei, ainda ajoelhado, sentindo seu sangue quente me ensopando a camisa. Morno e tenro, como sempre foi, e agora com aquela expressao de um sono triste, profundo. Tinha um ralado feio na testa, sanguinolento, em meio aos fios de seda amarela da franja comprida.
- Acorda, acorda por favor - sussurei olhando-o entre as lagrimas.
- Senhor, jà chamaram um medico. A ambulancia deve estar a caminho - tornou a dizer a funcionaria - Nao pode mexer no garoto ate o doutor chegar.
- Saiam daqui! - gritei, notando que me olhavam com pena, alguns com um ar intrigado.
O motorista do Ford Farlaine gesticulava, se explicando pelo acidente. Era um homem baixo e gordo, terno elegante, jeito de advogado, de fala fluente. Culpava o Gui pelo acontecido, apesar de admitir que vinha dirigindo rapido, com pressa pois tinha um almoço importante ao meio - dia e estava atrasado. O garoto, que tinha começado a atravessar a rua, estupidamente parou por um momento e ficou olhando para tras. Uma maluquice. Ele buzinou, tentou frear, porem foi muito tarde.
"Desgraçado", pensei, sentindo o odor denso do sangue do menino "Devia apodrecer na cadeia! ".
Ao longe soou um barulho de sirene. A ambulancia estava vindo.
- Solte o garoto, professor - a funcionaria me puxou firme mas delicadamente dali, enquanto eu abandonava o Gui outra vez no chao, devagar como se temesse feri-lo mais.
Quando a ambulancia surgiu e os socorristas me viram, acharam que eu tambem estava ferido pois tinha a camisa branca e um lado da calça cobertos de sangue, chegando ao ponto de grudar o tecido no corpo. Logo tambem apareceu o diretor da escola, vindo ás pressas de seu almoço interrompido. Quis saber quem era o responsavel pelo menino, mas o motorista que tinha vindo buscar o garoto no colegio voltara apressado para a mansao avisar os patroes sobre o acidente. Um imprudente. Ficou tao assustado que ao inves de telefonar avisando, preferiu dar a noticia pessoalmente, deixando o Gui daquele jeito.
O medico nem precisou examinar muito o acidentado.
- Esta morto _ declarou.
Mesmo tendo certeza disso, aquela era uma confirmaçao brutal de se ouvir. E se existia no mundo todo uma dor pior do que aquela, eu admirava quem conseguiu suporta-la para contar tudo depois. Nao, achei que nao existia. Era como ter a alma triturada lentamente, depois sugada para que desaparecesse para sempre. Alias, desaparecer agora nao seria uma soluçao tao ruim assim.
Observei como que numa imagem distante, apagada e pequenina, eles cobrirem o corpo do Gui com um tipo de plastico preto, falando ao diretor da escola que nada havia a ser feito, e que todavia precisavam acionar o Instituto de Medicina Legista para recolherem o cadaver; a policia tambem foi chamada e estava à caminho.
"Policia", eu pensei num vago sobressalto, me afastando dali devagar. Se chamassem as testemunhas do acidente para depor, talvez fizessem a ligaçao de meu nome a Leandro, como o Guto me alertou aquela vez. Precisava evitar aquilo, e achava na verdade estranhissimo que para isso eu conseguisse manter certa frieza e raciocinio necessarios. Minha famosa sensatez nao estava, afinal, perdida para sempre. O senso de sobrevivencia falava mais alto, mesmo em meio ao meu caos pessoal.
Inutil dizer que, caminhando pela rua demoradamente ate chegar em casa, as pessoas me olhavam aterrrorizadas por conta do estado de minhas roupas e minha expressao decerto palida, desamparada. Nao se atreviam a chegar perto, e talvez me julgassem um louco, assassino ou fugitivo de alguma briga. Foi sorte nao terem acionado a policia para mim.
A sala de minha casa nunca me parecera tao esquisita, triste e fria. Naquele horario, o sol entrava pelo vidro da larga janela e invadia o chao com brilho mortiço, esquentando o piso de madeira e tirando dele aquele cheiro tenebroso de coisa velha. As particulas de poeira levantavam á luz daquela tarde que se iniciava. E eu, como se fosse rezar, mas sem a menor vocaçao para isso, deixei-me cair naquele amplo retangulo de luminosidade melancolica, abraçando os joelhos, chorando tudo o que eu nao tinha chorado na rua, diante do corpo dele, tudo o que nao chorei na minha vida inteira.
- Deus, me mata... Me mata para que eu nao sinta essa dor...
As horas passavam, eu chorava e o sol recuava, deixando de me esquentar e indo embora depressa, trazendo o frio e a penumbra para dentro de casa. Deus me traria a morte ainda naquela noite, tinha que trazer. Eu nao conseguiria aguentar mais. Que ela entrasse por aquela porta e me levasse de uma vez.
Mas quem entrou em casa assim que a noite começou a surgir foi Jonas, vindo do seu serviço na fabrica. Pareceu chocado ao me ver, emitiu uma exclamaçao de espanto e correu para perto de mim, se abaixando, perguntando o que tinha havido comigo, se eu estava ferido, por conta do sangue... Agarrei-me a ele com desespero, arfando num sussurro de agonia.
- Ele morreu, Jonas... morreu...
Nao lhe vi a expressao do rosto, porem ele nada disse, compreendendo tudo e se limitando a me abraçar com força, quase me sufocando, acariciando meus cabelos num gesto consolador, manso e um pouco rude. O frio entrava como uma invasao pela porta e as janelas abertas, e era ele tomando conta de mim, enregelando minha vida inteira. Nao era a morte, ainda, mas talvez fosse um beijo dela, respondendo ao meu chamado como se dissesse que ainda nos veriamos. E porque nao agora? Porque?
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Bom, espero que nao se decepcionem com esse capitulo. Isso jà estava planejado desde o começo :)
Beijo em cada um! Aguardo suas opinioes!