Longas madrugadas geladas. O inverno parecia interminavel, e a bruma entrava com suas goticulas de agua fria, suspensas e rodopiantes, pela janela aberta do meu quarto. Tanto frio que eu tiritava na cama. Mas aquela era uma hora de grande felicidade para mim.
A hora em que ele aparecia.
Eu sorria numa expectativa nervosa, de olhos fixos na porta. Duas horas da manha. Ele nunca atrasava, nem adiantava. O relogio marcava o horario e a porta lentamente rangia nas dobradiças velhas num "riiiiinnnnc" prolongado,e entao sua figura alva, serena e pequena se aproximava em passos sem som, como se nao tocassem o chao, os olhos claros presos nos meus. Havia penumbra no quarto, porem eu o enxergava perfeitamente bem.
Gelado, sem cheiro nenhum, sua boca tinha o sabor da agua fria. Eu o tomava nos braços num desespero, ele se rendia de um jeito serio, solene, e era como se eu penetrasse uma nuvem de chuva invernal. Seus gemidos, entretanto, eram os mesmos, manhosos, infantis, sonolentos, mesmo sendo emitidos como que à distancia, de uma sala fechada no andar inferior ali da casa.
Na primeira vez em que ele veio, foi exatamente uma semana depois daquela desgraça. Eu dormia exausto pelo pranto, e Jonas tinha ficado comigo ate bem tarde me consolando com seu silencio. Num sobressalto, despertei com a mao gelada na minha testa e, espantado, vi que se tratava dele, do meu garoto. Tinha um ar de tristeza longinqua, eterea, quase austera.
- Voce veio - balbuciei, segurando seu pulso fino, gelado feito um cilindro de vidro - Tanto que chamei... Me perdoa!
- Isso nao importa mais - disse ele em voz baixa, distante.
- Voce morreu por minha culpa! _ exclamei com angustia, dando vazao a todo o meu remorso, um remorso que eu escondia talvez de mim mesmo.
Uma lagrima brilhou no olho dele, desceu e caiu, cintilante como uma gota de cristal.
- Eu tinha tanto o que viver... _sussurrou.
- Me perdoa, por favor _ supliquei, apertando seu braço que me parecia estranhamente gelatinoso, semelhante a uma borracha amolecida.
- Jà nao faz mais diferença _ disse ele suspirando, evitando me olhar.
Como ele estava triste e mudado! Parecia ter perdido metade de sua personalidade agressiva e invasora, que tanto me aniquilava. Assim mesmo eu o queria com o mesmo vigor de antes, o mesmo arrebatamento, a mesma paixao. Nao, ele nao correspondia à altura, era como se estivesse ali comigo cumprindo um dever, algo como um encargo de consciencia. Porem era meu, de um jeito ou de outro, e mesmo tendo a sensaçao de ser um sexo vazio, solitario, de um frio mortal que me deixava arrepiado ate o dia seguinte, como se tivesse dormido com uma divindade do gelo, ainda assim era com o meu Gui, e isso me deixava contente para o dia todo.
Jonas me olhava estranho à mesa do cafe', ou à noite, enquanto eu lia na sala.
- Ainda esta falando sozinho de madrugada _ disse ele uma vez, com cautela.
Nao podia contar que falava, na verdade, com o Gui. Talvez ele nao acreditasse.
- Devo estar falando dormindo _ desconversei.
- Deve ser mesmo _ disse ele devagar, me olhando fixamente, deixando claro naquele olhar que suspeitava de algo _ Outra coisa: voce agora dorme com a porta e a janela aberta. Vai ficar doente desse jeito.
- Garanto que nao _ falei com um sorriso.
Ele achava aquilo estranho, era visivel. Para onde tinha ido o meu profundo luto, assim de repente? Mas se ele soubesse, acharia decerto que eu estava ficando louco, o que, claro, nao era verdade.
Naquela madrugada, Gui entrou pela janela. Nao sei como foi, apenas senti que o ar do quarto se tornou momentaneamente glacial, e quando me voltei, o vi sentado no parapeito da janela, de joelhos encolhidos, olhando para fora com uma expressao melancolica. Perguntei porque nao tinha entrado pela porta e me respondeu que era porque nao gostava do velho do corredor que sempre xingava quando o via.
- Disse que a casa dele virou um lar de pederastas _ falou ele com um ar de mofa.
Contei que Jonas estava desconfiado de mim, e que decerto andava me julgando como um desequilibrado mental.
- Às vezes ele ouve atras da porta. Igual aquela vez na sua outra casa. _ sussurrou o Gui, vindo se sentar ao meu lado na cama, sugando todo o meu calor _ Mas nao se atreve a olhar porque tem medo... E ele sabe, Edu. Sabe e lamenta. Esta apaixonado por voce.
- Eu nao gosto dele. Foi voce quem eu amei. Voce... _ murmurei, abraçando-o como quem envolve um lirio branco que passou a noite sob o vento frio.
- Mas eu nunca te amei _ disse ele baixinho.
"Entao porque vem? Ate depois da morte me tortura, zomba de mim, de meu amor. Disse que nunca mais queria me ver, que desejava distancia, mas esta aqui comigo", pensei com afliçao, sem, todavia, solta-lo.
Ao longo dos dias, eu podia notar que nao era apenas Jonas quem me olhava com um ar estranho e intrigado. No meu trabalho isso estava se tornando frequente. As crianças falavam que o professor estava "esquisito", e eu olhava-as sem compreender porque diziam aquilo. Certo dia o diretor me chamou à sala dele, e numa comprida conversa da qual eu nada entendi, ele finalizou dizendo que iria me dar uma licença para que eu me tratasse adequadamente.
- Porque? Nao estou doente _ falei, surpreso.
- Insisto professor _ ele falava pausadamente, como a uma criança _ Com esse tempo livre o senhor podera encontrar um profissional adequado. Conheço um psiquiatra, muito meu amigo, doutor Ismael...
- Psiquiatra? _exclamei.
Nao pudemos nos entender, e tive afinal de aceitar a licença forçada. O que pensavam? Que eu tinha enlouquecido? Voltei para casa indignado. Que canalhas! Como ousavam me julgar daquela forma? Aquilo era um insulto.
Jonas ouviu meu desabafo naquela habitual mudez dele, sem me julgar como os outros. Ele talvez pensasse como eles, mas nao o dizia, embora eu suspeitasse disso.
- Serà bom para voce descansar por esse periodo _ ele se limitou a dizer, me olhando atentamente.
Guto e Carla tambem faziam uma expressao de espanto quando conversavam comigo. Porque agiam assim? Me olhavam como quem observa algo bizarro e surpreendente, as vezes com pena. Sem querer, ouvi um trecho de conversa deles com Jonas certa noite, na sala.
- Ele nao diz coisa com coisa _ falava o Guto em voz baixa, alarmado _ Tem um olhar distante, parado, e aquele sorriso estranho... Precisamos fazer algo...
- Nao hà o que possa ser feito, creio eu _ disse Carla, consternada _ Desde que o Leandro foi embora que... Bem, ele nao esta normal desde entao.
- Nao podem internà-lo! _ disse Jonas revoltado, alterando a voz _ Sei que ele nao esta louco. Em todo o resto age normalmente, toma banho, se barbeia, conta dinheiro... Convivo com ele, percebo que esta um pouquinho fora do ar, mas nao passa disso. Talvez seja apenas uma fase ruim, e nao loucura... Nao vao internar o Edu, nao!
- E nem podemos fazer isso _ redarguiu Guto _ Apenas a familia pode autorizar a internaçao.
Do que eles estavam falando? Porque me internariam? Eu nao estava louco, como pensavam. Seriam tao estupidos e crueis a esse ponto? O Jonas, ao menos, me entendia razoavelmente e me apoiava. Dele eu nada tinha o que temer.
- Nao deixo fazerem nada com voce _ disse ele nessa noite, assim que o casal foi embora _ Fique tranquilo. Enquanto eu estiver aqui, pode ficar sossegado que nada vai lhe acontecer.
Me deu um abraço desajeitado, constrangido, forte. Senti segurança com ele, naquele olhar rapido que trocamos, mais uma vez um acordo silencioso e leal que selàvamos.
Em certos momentos, ele se mostrava singularmente carinhoso. Gostava de segurar minha mao nas noites em que ouviamos opera na sala, enquanto eu mantinha meus pensamentos fixos na madrugada que passei com Gui e na que viria.
- Porque agora voce esta sempre assim, gelado? _ disse Jonas baixinho como se fosse para si mesmo.
Observei-o calado, tentando atinar o motivo daquela pergunta.
- Parece que, de repente, voce dormiu, começou a sonhar e nao quis acordar mais _ continuou ele no mesmo tom, me olhando nos olhos _ E eu acho que voce quis isso, pois do contrario nao aguentaria viver na realidade... Mas um dia, Edu, voce pode decidir acordar. E, se isso nao demorar muito, eu ainda estarei aqui... com uma vantagem.
Apertou meus dedos nos seus, sorrindo de leve, fitando nossas maos juntas.
- A vantagem de que eu, pelo menos, estarei vivo.
Nao sei explicar o impulso que me levou a beija-lo vagarosamente sobre seus labios mornos, diferentes do toque fantasmal do Guilherme. Creio que foi por gratidao e carinho. Pois naquele momento compreendi de uma vez por todas que ele sempre estaria do meu lado, fosse qual fosse a situaçao. E ainda que ouvisse atras da porta, assombrado com o espectro do meu menino pela casa, na minha cama, sua lealdade estaria em primeiro lugar para mim; podia me abraçar e beijar quando quisesse, como de agora em diante, ele seria sempre o meu querido Jonas fiel, justo e silencioso.
Madrugada de lua crescente, estrelas tao pequenas e distantes, de um brilho intenso como vidrilhos, igual a micro cacos de lampada. Eu cantalorava baixinho Che Gelida Manina, da opera La Boheme, esperando, recostado à cabeceira da cama.
- Da proxima vez me receba cantando Monday, Monday _ disse Gui sentado à janela; desceu devagar, num sorriso leve, quase imperceptivel _ Lembra?
- Lembro! _ sorri largamente, envolvendo-o nos braços, arrastando aquela coisa fria, espantosamente branca e sinistramente tenra para a cama _ Vem, vem... Me deixa louco de prazer, vai...
Sem suor, sem cheiro nenhum. O mesmo que mergulhar meu pau em àgua fria. Mas eu gozava tanto! As caretas de prazer dele ainda estavam là, posto que breves e vagas. Os cabelos macios tinham a temperatura dos pelos de um coelho que apanhou geada a madrugada toda. Cheiro de bruma. Cheiro de nada.
- Eles pensam que estou louco _ falei, suado e entorpecido, deitando-me de costas na cama revirada.
- E voce esta _ disse ele com naturalidade, olhando para o teto.
- Nunca me senti tao lucido, nunca meus pensamentos me pareceram tao claros, tao corretos _ disse como que para mim mesmo _ Nao creio ter perdido toda minha sensatez assim de repente. Sinto que estou perfeitamente bem.
- Sua sensatez desapareceu faz tempo, Edu _ falou Gui, me olhando nos olhos, arrepiando ate os pelos de minhas pernas _ E sua lucidez tambem. Entretanto, veja uma coisa: se voce tivesse se mantido sensato, nunca mais me veria, como eu quis que assim fosse. Voce iria querer isso? Nao ter sequer esse contato comigo?
- Nao _ respondi de imediato.
- Entao, nesse caso, a loucura para voce se transformou numa bençao, num presente.
- Esta certo... Todavia, começo a pensar que voce me fez louco por vingança _ sussurrei, tocando em sua face eterea.
- Ainda duvida, professor? _ ele esboçou um sorriso mau, mordendo e lambendo o labio daquele jeito seu perverso, que sempre me tirou do prumo.
"Maldito", pensei, avançando para ele num frenesi, vidrado de luxuria, vendo-o se abrir para mim, me condenando outra ao inferno, me fazendo mergulhar em sombra, frio e loucura. Maravilhosa insanidade eterna... Que assim seja.
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Chegamos ao final de mais um conto! Receio que estejam decepcionados, mas este era o final planejado desde o inicio, e sobretudo, o final que se desenhava a cada capitulo. :)
Espero que gostem!
Agradeço a gentil companhia de todos, os votos, e comentarios.
Tenham um lindo final de ano, amigos!
Ate qualquer dia! :D