Seguir em frente nao foi assim tao facil, porem era preciso. Absorvi-me de trabalho para nao pensar em mais nada, em Leandro e sua maldita utopia, no fim brusco que ele impos à nossa historia, aparentemente sem o menor remorso. Devia estar a essas horas enfiado na selva como um indio, junto aos outros guerrilheiros, consolando o professor Raul, talvez de joelhos.
Guto queria que eu me distraisse um pouco. Nao bastando as aulas na Escolinha Santa Cecilia, eu ainda ganhava uns extras por fora, ajudando alunos em dificuldades nesta ou naquela materia, ou ensinando ingles que era tambem minha especialidade.
- Vamos comigo ao barzinho hoje - convidou ele logo depois de eu chegar em casa - Deixa o Leandro lá com o velho dele.
- Nao estou mais pensando no Leandro - respondi, pondo minha pasta na mesa - Voce quer uma agua? Um suco? Nem te ofereci nada...
- Nao precisa. Olha, voce se troca e passamos na casa da Carla, certo? - disse ele se referindo à namorada.
Mesmo cansado e ainda precisando trabalhar no sàbado, resolvi ir com eles. Tomei um banho rapido e me troquei.
O Guto era amigo meu e do Leandro desde a epoca do pensionato. Foi o primeiro a descobrir e acobertar nosso caso, embora nao entendesse muito bem aquele fato de sermos homossexuais. Seu apoio foi de fundamental importancia quando um dos padres que cuidavam do pensionato flagrou Leandro e eu numa cena de intimidade quase sexual, num descuido que demos em deixar a porta destrancada. Fomos expulsos sem demora, e ainda ouvimos um longo sermao sobre "o pecado dos atos contra a natureza", aguentando muita chacota dos outros rapazes da pensao. No mesmo dia Guto arrumou com o pai da Carla uma das casinhas que o coroa alugava e, apesar de ser bem longe de nossos empregos, foi a melhor opçao, talvez a unica. Tivemos sorte, Leandro e eu, a casa era pequena mas boa, sem goteiras nem cupins, com instalaçoes eletricas novas. A pintura precisava de manutençao, mas era algo risivel por enquanto.
Fazia quase um ano que moravamos ali, e a meu ver estava tudo indo bem ate Leandro retomar o contato com seus ex colegas de faculdade que integravam a Uniao Nacional dos Estudantes, rebelados contra o governo. Influenciaram-no a se filiar ao Partido Comunista do Brasil, o PC do B, com o professor Raul encabeçando toda aquela maluquice, começando a afastar meu namorado de mim.
Era fato que Leandro sempre teve um pezinho nas ideias de esquerda. Desde que entrei no pensionato e passei a dividir o quarto com ele percebia que volta e meia seus assuntos ganhavam um ar de revolta contra o regime militar no qual viviamos. Quando publicaram o AI-5, seu odio nao conheceu limites: os militares, dizia ele, deviam ser fuzilados às dezenas, ate que nao restasse nenhum. Viria entao a revoluçao do povo, os trabalhadores no poder, a justiça social tao esperada. E eu o ouvia sem muito interesse, mais preocupado com minhas aulas no dia seguinte. A politica que se fodesse.
Existiam, entretanto, boatos sobre pessoas que eram obrigadas a depor, acompanhavam os milicos e desapareciam sem deixar rastro. Aquilo era estranho, mas ninguem tinha certeza de nada. De todo modo, Leandro sempre queimava seus panfletos mimeografados assim que os recebia dos "camaradas" e os lia. Incinerava num latao de tinta no nosso quintal, altas horas da noite. Registro de suas ideias vermelhas aqui em casa? Nenhum. Os caras podiam vasculhar à vontade. Uma coisa surreal aquilo tudo, de um lado e de outro, e fosse a sujeira que fosse eu nao queria me meter nela. Ate onde sabia, sempre tive bom senso e equilibrio em todos os aspectos de minha vida.
- Vamos, Edu? - chamou o Guto là na sala.
A noite estava amena, agradavel, porem encoberta e negra como piche. Passamos na casa da Carla e ela ja estava pronta, muito bonita com seus cabelos presos num coque da moda. Antigamente costumavamos sair em casais, nos quatro, e embora ela soubesse de meu relacionamento com Leandro nunca nos recriminou, sequer tocava no assunto. Aquilo era segredo absoluto entre a gente, bem como os motivos da partida dele: assunto proibido.
Nao permanecemos muito tempo no bar que estava cheio e barulhento, com uns bebados idiotas discutindo entre si. A coisa cheirava à briga e logo saimos num certo acordo mudo. No dia seguinte eu teria que dar aula particular numa casa de uns granfinos, ajudar um guri que pelo visto andava dando trabalho aos pais, com evasao escolar, màs companhias e nada de estudos. A mae dele deu a entender isso ao telefone, quando me contratou. O menino corria o risco de repetir de ano e cabia à mim descascar aquele abacaxi.
A Rua Augusta fervilhava de veiculos e pedestres aquela hora em que iamos embora. Distraido, senti o zumbido agudo da moto que passou chispando por mim, quase me atropelando, acompanhada de um grito estridente :
- Sai da frente, palhaço!
Era conduzida por um cara grande, porem foi o rapazinho na garupa quem gritou, olhando para tras e me mostrando o dedo do meio. Alem da evidente grosseria, me chamou a atençao o fato do moleque ser branco como um polones, os cabelos loiros e lisos esvoaçando ao redor do rosto.
- Que imbecis! - disse Carla, indignada.
- Sao esses riquinhos babacas - resmungou o Guto - Pensam que a rua lhes pertence.
Fiquei calado, mas xinguei mentalmente a dupla que quase me atropelou. Deixei o casal sozinho, indo para minha casa, descansar um pouco para o dia seguinte. Trabalho e mais trabalho. Me ajudava a esquecer a solidao recente, aquele humilhante abandono, o vazio que ainda doia. Talvez logo eu recuperasse o velho equilibrio de minha vida simples, minha "vidinha de merda", como dissera o infeliz do Leandro.
Oito horas da manha. Era o horario combinado e là estava eu em frente ao portao de ferro em arabescos daquela especie de mansao do seculo passado. Restaurada, claro, mas aquela casa nao teria menos de cem anos, ainda mais que era incrustada numa chacara, defendida por muros altos, velhos, esverdeados por limo e trepadeiras escuras e grossas como dedos nodosos de bruxa.
Demoraram a me perceber ali, porem quando fui anunciado logo entrei, reparando bem em redor, o jardim cuidado, as arvores antigas e gigantes, toda uma atmosfera com odor de tempos idos, de um passado resistente sobre aquele lugar.
Na piscina imensa, destoando do resto por parecer nova demais, nadava vigorosamente aquela coisa branca e esguia, metido numa sunga verde. Ao me ver ali, parado e perplexo, cessou o nado e saiu da piscina, secando com gestos ageis o cabelo lourissimo. Era, sem duvida, aquele garoto que me xingou na rua, na garupa da moto do outro.
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