Paolo foi abrir a porta assim mesmo como estava, em roupa de dormir. Por cima do ombro dele, vi perplexo que quem batia àquela hora era o Quin, o capanga de meu irmao.
- Pois nao? _ disse Paolo visivelmente surpreso.
- O meu patrao, Seu Rodolfo, nao esta passando muito bem e mandou buscar o irmao dele _ disse o homem nos encarando com um olhar grave e gelado _ Agora.
Paolo e eu nos entreolhamos, desconfiados. Aquilo certamente cheirava à qualquer cilada, e eu nao estava disposto a envolver meu italiano nessa sujeira toda. Peguei meu chapeu e meu paleto de cima da cadeira.
- Tudo bem _ disse _ Errei em nao avisar que dormiria fora e... ontem mesmo o Rodolfo teve uma crise epileptica...
Paolo nao engoliu aquela minha justificativa fragil, e me encarava intrigado.
- Eu mesmo posso acompanha-lo ate sua casa, Nano _ disse ele _ Sao pouco mais de nove da noite, nao esta tao tarde assim...
- Nao vejo necessidade _ cortou o capanga, austero _ Estou aqui justamente para levà-lo, voce nao precisa se incomodar.
- E quem disse que isso representa qualquer incomodo? _ Paolo enfrentou-o, sem medo _ Alias, seu patrao age como se o irmao dele fosse um menino, uma criança que fica ate tarde na casa dos outros. Chega a ser ridiculo!
Os olhos do Quin brilharam numa breve fagulha de odio, encarando o rapaz, porem em seus labios desenhou-se um ricto que pretendia ser um sorriso sarcastico.
- Deixe, Paolo. Eu vou _ falei cortando com toda aquela atmosfera tensa _ Obrigado por tudo e... ate breve.
Nao pude me despedir dele como gostaria, e o percebi um pouco triste e preocupado me observando sair acompanhado do sujeito. Precisava encontrar uma soluçao para aquele problema, nao poderia mais viver daquela forma, com Rodolfo controlando minha vida. Era uma barbaridade, uma injustiça incompreensivel.
O tal de Quin seguiu mudo como um totem ate o casarao, tendo-me ao seu lado indignado com aquilo tudo. Altercar com ele seria inutil: o cidadao apenas cumpria seus serviços, pouco se importava comigo. Agia como um leao adestrado e a maior prova disso foi quando adentramos o territorio da casa de meu irmao, e na penumbra da noite completa o homem se virou para mim num rapido murmurio.
- Hà um outro recado que meu patrao mandou ao senhor _ disse, em seguida me golpeando com toda a força na cara, de modo que cai no gramado umido de orvalho, sentindo o sangue escorrer de meu nariz que latejava como se tivesse sido arrancado.
- Miseràvel! _ grunhi, limpando o sangue na manga do paleto, tomado duma raiva subita.
- Ele espera pelo senhor no escritorio. A patroa e a menina jà devem estar dormindo... Em todo caso, lave esse sangue ali mesmo no chafariz _ disse o segurança, me dando as costas e entrando na casa.
Pensei em voltar para a casa de Paolo. Poderia mesmo pular o portao e sair para a rua, mas o que fariam conosco se nos pegassem? O que fariam com ele? Isso me corroia, eu nao podia correr o risco de colocar a vida dele sob ameaça. Indignado, furioso e humilhado fiz o que Quin disse e lavei meu rosto no chafariz do jardim, vendo à luminosidade fraca das luzes da sacada a agua tingir-se com filetes rubros de meu sangue. Levou tempo ate o sangramento cessar e eu poder entrar na casa, procurando pelo desgraçado do Rodolfo no escritorio.
- Sabia que voce nao estava doente coisa nenhuma! Maldito _ disse vendo-o estendido tranquilamente na poltrona de couro, fumando e lendo uma revista.
- E eu sabia que voce pretendia dormir com aquele veado napolitano _ disse ele me encarando e rindo _ O Quin fez um bom trabalho nesse seu rostinho delicado, Luciano.
- Tem mesmo a intençao de controlar minha vida, de me ameaçar como se eu fosse propriedade sua? _ indaguei, alterado _ Acha que permitirei isso?
- Voce permitiu faz muito tempo! _ sentenciou ele num olhar brutal _ Nao se lembra mais?
- Eu era uma criança _ murmurei com a voz tremula _ O que esperava que eu fizesse? Nao tive escolha. Voce nao me deu escolha!
Ele me fitou longamente, como se refletisse em algo em que nao tinha pensado.
- Era a minha maneira de lhe dar amor _ murmurou com uma convicçao suave _ Pois te amei e desejei desde que voce começou a andar, e eu o quis para mim, para sempre. Nunca pretendi casar com Yedda. Minha intençao era que voce nunca fosse estudar fora, que viveriamos juntos aqui nesta casa a vida toda. Porque para mim voce sempre foi o ponto central de minha vida, minha muleta e amparo. Penso e vivo para voce e isso sera para sempre, goste ou nao.
Eu nao podia acreditar no que ouvia, e sem querer começava a chorar em silencio, na frente dele, tremendo de espanto, raiva e repugnancia.
- Voce esta louco _ sussurrei.
- Nao, Luciano. Apenas amo demais _ disse ele tranquilamente _ Outra coisa: que voce se divirta com o carcamano de vez em quando, eu nao me importo tanto assim. Mas nao quero voce com ele o tempo todo, entendeu? Voce mora aqui comigo, vai continuar morando, e nao aceito que divida sua vida e seu afeto com outro homem que nao seja eu!
Nao suportei ouvir mais nada, e abandonei aquele escritorio como quem foge da toca de um animal peçonhento. Era loucura demais para minha compreensao, nao era possivel. Tranquei-me no quarto e ainda chorei por muito tempo debaixo do chuveiro, sem ver nenhuma soluçao imediata para aquele inferno. Paolo nao devia sofrer aquele tormento junto comigo, nao seria justo, porem, apos outra longa noite insone, vesti-me ainda de madrugada e perto das seis horas deixei o casarao em direçao á residencia de meu amigo, batendo freneticamente na porta assim que cheguei.
- Paolo! Paolo! Abra!
Ainda com o cabelo despenteado e cara de sono ele abriu a porta sem muita demora, atonito ao me ver, perguntando porque eu estava com um lado do rosto ferido, mas nao respondi nada, lançando-me em seus braços, sem conseguir controlar o nervosismo, balbuciando.
- Me leva embora daqui, por favor...
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Valeu, gente! Abraços para todos!
Ate! :)