Parte III - Primeiro dia
O alarme do celular parecia alto demais na manhã seguinte. Me levantei assustado, e, por reflexo, desliguei o alarme. E me deitei novamente. Passei alguns segundos deitado, imaginando por que diabos aquele celular fazia tanto barul...
- PORRA!
Levantei de um salto, jogando as cobertas para longe. Dois dos meus travesseiros (durmo com três, vício antigo) foram parar nos cantos do quarto, e me dirigi meio alucinado ao celular na estante. Sete horas. Aliviado, suspirei e me sentei na cama para me acalmar. Essa história de nervosismo de primeiro dia já estava passando dos limites, o dia mal havia começado e eu já tinha quase infartado. Bem, não poderia ficar muito pior... poderia?
Fui à cozinha tomar um copo d'água, e, depois, ao banheiro para tomar um banho. A água quente me ajudou a relaxar. Não há melhor maneira de começar um dia do que com um banho quente. Terminado, vesti uma roupa simples, mas bonita e confortável. Pretendia causar uma primeira boa impressão, seja lá quem fosse tê-la. Passei um perfume e fiz o melhor possível para manter meu cabelo em ordem. Não duraria dez minutos, mas não custava tentar.
Coloquei meu relógio de pulso, peguei meu celular, fone de ouvido, carteira, minha mochila, e, pela primeira vez de muitas, saí em direção à minha nova segunda casa.
Pensei um pouco e resolvi que não valia o esforço de pegar o ônibus, já que andaria apenas três quadras, e queria dar uma olhada em tudo. A caminhada valia a pena, já que o local era muito bonito, bem arborizado, e com um ar fresco matinal. A avenida, bastante movimentada, era fácil de atravessar devido aos pontos de faixa para pedestres, com fiscalização. Logo estava entrando no campus pela primeira vez.
O local era simplesmente imenso. Vários prédios de tamanhos variados, para todos os lados, e grandes espaços vazios, gramados, com árvores espalhadas e alguns bancos. Imenso, bonito, e intimidador. Logo peguei o mapa que havia ganhado no ato de matrícula, verificando-o até me localizar. Procurei, então, pelo local da minha primeira aula. Ops. Não estava em lugar nenhum. Já começando a me desesperar, me dirigi ao prédio à minha frente, onde pediria informação.
Estava lotado, com várias pessoas conversando na entrada, tornando difícil se movimentar por ali. Havia também algumas pessoas claramente perdidas, olhando em volta com expressões acanhadas nos rostos. Algumas também estavam, assim como eu, com mapas nas mãos, tentando decifrá-lo. Calouros também eram facilmente identificáveis, devido à notável ausência de cabelo.
Esqueci de comentar o porque de não estar careca. No final do meu segundo ano, eu havia passado no vestibular de uma faculdade particular da minha cidade, o qual havia feito apenas para teste. Mesmo assim, meus amigos haviam tido a ideia brilhante de me deixar careca de qualquer forma, e assim foi. Eu sei que reclamo bastante da rebeldia do meu cabelo, mas isso não quer dizer que não o amo do jeito que ele é. Meu ódio foi imenso. Saber que perdi meu cabelo sendo que nem mesmo iria entrar no curso, já que meu sonho era uma federal, me revoltava. Por isso, tinha conseguido salvar meu cabelo agora, alegando que ele já havia sido cortado com antecedência, mesmo esta sendo de um ano. Bem, aquilo valeu para alguma coisa.
Procurei por alguma pessoa que pudesse me dar informação, e logo me dirigi a um cara que parecia não ser novato por ali.
- Com licença, pode me informar onde é a Faculdade de Direito?
- Hmm, calouro é? - Ele deu um sorriso. - É aquele prédio logo ali - e apontou para um prédio próximo ao que eu estava.
- Obrigado - respondi, sorrindo, e fui em direção ao tal prédio.
Chegando lá, a mesma coisa. Várias pessoas, mas neste a entrada estava mais vazia. Estava entrando no prédio quando a placa na frente me chamou a atenção. Faculdade de Tecnologia. Ahh, ótimo. Tinha esquecido da principal regra do primeiro dia: cuidado com o trote. Inocência de calouro. Meio desamparado, procurei, dessa vez, por alguém que não fosse um estudante, até que localizei um senhor que estava limpando o chão.
- Com licença, senhor, poderia me informar onde é a Faculdade de Direito?
- Claro, é esse prédio logo aí em frente.
Tive vontade de me afundar no chão. Era o prédio onde estivera há dez minutos. Fazendo uma nota mental para procurar oportunidades para dar o troco àquele carinha, seja lá quem ele fosse, agradeci ao senhor e voltei pelo caminho que acabara de traçar. E o pior era que, nesse intervalo, já haviam passado dez minutos desde o início do primeiro horário. Sofrer um trote, andar de um lado para o outro e chegar atrasado na primeira aula. Não poderia ser pior. Bem, na verdade, com todos aqueles prédios, eu bem poderia ter passado horas sem encontrar o lugar certo, mas só pensar na possibilidade já me dava calafrios. Mais conformado, apenas apertei o passo.
A entrada agora estava bem mais vazia, com o início do primeiro horário, e tratei logo de procurar minha sala. O sistema era bem simples, então logo subi um lance de escadas e bati na porta da minha sala antes de abrir.
- Com licença, professor.
O professor estava em pé no outro canto da sala, e apenas olhou para mim e acenou com a cabeça. Ele aparentava ter seus cinquenta anos, com cabelos pretos já clareando, meio gordo, e vestia um terno.
Vasculhei a sala, procurando um lugar vazio, ignorando os olhares sobre mim, até que encontrei uma cadeira vazia e me dirigi para lá. Ajeitei minhas coisas, tirei minha blusa de frio e olhei para o professor.
- Bem, como eu estava dizendo, o Direito é um fenômeno social de extrema importância para o bom funcionamento da sociedade - ele tinha uma voz forte, grossa, e gesticulava com as mãos. - Já nas sociedades arcaicas pode se observar o surgimento desse fenômeno como...
A animação de primeiro dia me permitiu ficar atento a cada palavra dita pelo professor. Ou pelo menos por um tempo. Logo estava divagando, distante em alguns momentos e presente quando alguma coisa que parecia ser importante me chamava a atenção, como a bibliografia, que pelo visto seria imensa. Bem, ler não seria problema para mim, embora ter de abrir mão de meus livros pelas noções de direito seria no mínimo menos emocionante.
Decidi dar uma olhada nos meus colegas. A maioria aparentava ter mais ou menos minha idade, embora houvesse alguns mais velhos. Vários pareciam estar prestando atenção a cada palavra dita, e outros nem faziam esforço para esconder o desinteresse. Já tinha ouvido vários boatos a respeito da presença de hipsters e outros estilos mais underground na universidade, mas pelo visto o Direito não tinha muitos desses. Pelo menos na minha sala não havia ninguém assim. Eram todos mais ou menos do meu estilo. Vários garotos e garotas chamaram minha atenção, outros nem tanto. O mesmo de sempre.
Já estava me sentindo como se o tempo estivesse parado quando o professor finalmente anunciou o fim da aula. Todos se levantaram e percebi, com horror, que já haviam alguns grupos formados. Perfeito. Esperava que todos estivessem na mesma situação que eu, sem conhecer ninguém, mas pelo visto estava totalmente enganado. Havia sim muitos que pareciam perdidos, como eu, mas vários pareciam já se conhecer ou então eram bem rápidos em amizades novas. Meio desanimado, fui saindo da sala, quando uma mão puxou meu ombro.
- Ei, com licença, você esqueceu sua blusa de frio.
Era uma garota de estatura mediana, com cabelos pretos meio ondulados e olhos castanhos. Tinha um sorriso bem simpático, e era bonita. Parece que estava sentada atrás de mim, então não havia notado-a antes.
- Ahh, obrigado. Estou meio distraído hoje.
- Que isso, por nada. E aí, o que achou da primeira aula?
- Interessante no início, entediante no meio, mortífera no final - disse, me dirigindo a saída.
Ela riu e caminhou comigo quando saímos da sala.
- Tive a mesma impressão. Meu nome é Andressa. Você é... ?
- Lucas, prazer. Você é daqui?
- Não. E você?
- Também não.
Conversamos por bastante tempo. Era bom achar alguém que parecia tão deslocado quanto eu. E era benéfico para nós dois, pois, pelo menos assim, não ficaríamos sozinhos. Juntos, fomos até o local da segunda aula. A sala era maior, e mais confortável. Nos sentamos e esperamos o professor aparecer. Logo uma mulher, aparentando seus trinta e cinco anos, com um vestido social e bastante elegante entrou na sala, e fez-se silêncio. Ela colocou suas coisas na mesa, postou-se diante dela e cruzou as mãos.
- Bom dia. Meu nome é Lúcia e serei a professora de Metodologia Jurídica Aplicada. Eu leciono nesta universidade há cinco anos, sou formada em Direito e fiz mestrado e doutorado no exterior - Ela deu mais detalhes, dos quais não me lembro, e passou mais alguns minutos explicitando seu currículo e o programa das aulas - Gostaria, nessa primeira aula, que se apresentassem, dissessem um pouco sobre vocês, onde estudaram, se são daqui, para que tanto eu quanto seus colegas possamos conhecê-los melhor. Então, em ordem por favor.
Um por um, nos apresentamos, e pude enfim ter um panorama melhor da turma. Havia pessoas de todos os lugares do Brasil, embora pelo menos metade da turma fosse dali mesmo. A faixa etária predominante era de 17 a 20 anos, embora houvesse uma garota e um garoto com 15 e 16 anos, respectivamente, e duas pessoas mais de idade. Das pessoas que eram da cidade, muitas vinham dos mesmos colégios, o que explicava o fato de já se conhecerem. Terminadas as apresentações, a professora deu algumas noções de sua matéria e, logo, finalizou a aula.
- Então, vai almoçar por aqui? - Andressa me perguntou.
- É, acho que vou sim, embora não saiba onde há comida por aqui - disse, e ela riu um pouco da minha desinformação.
- Bem, eu dei uma olhada no lugar antes do início das aulas, então estou melhor informada. Tem algumas lanchonetes espalhadas nos prédios, alguns restaurantes também, e, obviamente, o Restaurante Universitário, mas não queria ir lá logo no primeiro dia. Estava pensando em ir num restaurante que parece ser muito bom, não muito longe daqui. Vamos?
- Claro, vamos sim.
- Er... com licençagaroto estava cutucando as costas da Andressa. - Não pude deixar de ouvir a conversa de vocês, e, bem, não conheço nada da região, e... bem... se não for incomodar, gostaria de saber se poderia ir com vocês - ele finalizou, corando muito.
- Pode sim, sem problemas. Danilo, certo? - Falei, lembrando de quando ele se apresentou.
- Sim - ele disse, parecendo admirado de que eu me lembrasse.
- Prazer, meu nome é Lucas, e esta aqui é a Andressa.
- Oi - ele desviou o olhar para baixo.
- Bem, vamos então - Andressa disse, e saímos do prédio a seguindo.
Danilo era da um pouco mais alto que eu, com cabelos castanho-claros e olhos pretos. Parecia bastante tímido com a situação, mas logo estávamos conversando normalmente. Ele era da cidade, mas não conhecia ninguém por ali, apenas de vista, segundo ele. Logo nós três estávamos bastante a vontade, e já conversávamos animados a respeito do que esperávamos do curso, o que tínhamos achado dos professores, e outras coisas.
O restaurante se provou realmente ótimo. Definitivamente passaria bastante tempo por ali. A comida era deliciosa e com certeza mais saudável que qualquer fast-food, e com um preço até razoável. Almoçamos e passamos mais um tempo conversando, já que tínhamos duas horas de intervalo.
Quando faltava mais ou menos meia hora para o próximo horário, saímos e rumamos para outro prédio, um pouco mais distante. Andressa, para meu contentamento, já sabia onde era, então não teria que sair por aí perguntando nem ter que enterrar a cara no mapa de novo. Danilo também já sabia onde era. Me senti extremamente desinformado. Quando chegamos à entrada, reconheci algumas das pessoas da minha turma meio amontoadas, prestando atenção em alguma coisa. Então, rumamos para lá. Rodeamos algumas das pessoas até achar um lugar com visão para a pessoa que estava falando. Era um grupo de pessoas com camisas personalizadas do Direito.
- Bem, acho que já posso começar - um cara de uns vinte anos de idade falou, atraindo a atenção de todos. - Sejam bem vindos, calouros. Sou membro do Centro Acadêmico de Direito e, junto com meus colegas, vim aqui para dar as boas vindas e dar a vocês algumas informações úteis. Como publicado no Facebook, temos algumas atividades de integração para vocês essa semana. Faremos um passeio pelos locais importantes da Universidade, para que vocês a conheçam melhor, e... - ele listou uma série de atividades que estariam promovendo durante a primeira semana, e ouvimos tudo atentamente. - Por fim, na sexta feira à noite, haverá uma festa, a primeira festa universitária de vocês - houve um murmúrio de aprovação e excitação, e ele pediu silêncio. - Daremos todas as informações a respeito da festa pelo grupo, então quem ainda não estiver participando procure. Agora, não vou atrasar mais vocês. Encontro-os aqui no próximo horário para o passeio no campus. Até mais tarde.
Todos se dispersaram rapidamente e seguimos para a última aula do dia. Esse outro prédio era bem maior, e parecia ser local de aulas para alunos de vários cursos diferentes. Havia um amplo espaço vazio no meio, com gramados e até algumas árvores. Havia alguns alunos sentados à sombra das árvores, lendo, conversando, ou até se agarrando descaradamente em um dos casos. Era um local bastante agradável, embora eu tenha preferido o prédio da Faculdade de Direito. Chegamos a nossa sala e entramos. A estrutura desta era bastante pior que a das salas do primeiro prédio. Uma das desvantagens de universidade pública. Bem, já estava conformado com isso, quando decidi focar na qualidade do curso.
Sentei-me mais ao fundo com Danilo e Andressa, e ficamos conversando, até entrar a pessoa mais gorda que já vi na minha vida. Tinha a expressão séria e era alto, e a barriga balançava quando ele andava. Era, ao mesmo tempo, medonho e hilário. Logo ele começou a aula, e percebi logo de cara que era um daqueles que não parava de falar nunca. E quando eu digo nunca é nunca mesmo. Olhei no relógio e o que pra mim tinham sido no mínimo 2 horas de aula eram, até agora, vinte e cinco minutos. Conformado, voltei a prestar atenção. Esperava que, quando as matérias realmente começassem, as aulas ficassem mais interessantes.
Quando finalmente acabou, me levantei e arrumei minhas coisas pra sair. Todos estavam indo na mesma direção, a entrada do prédio, onde seguiríamos para o passeio pela universidade.
- Ei, calouros, andem logo - ouvi aquele mesmo cara gritando quando me aproximei. - O campus é imenso, então temos que nos apressar.
Quando todos chegaram, ou quase todos, já que alguns apenas foram embora, seguimos para o passeio. Nosso veterano apresentou prédio por prédio, e os caminhos mais fáceis até cada um. Fascinado, ouvia tudo com extrema atenção, e, quando olhei no relógio, já eram sete horas da noite. Por fim, ele nos levou até a o prédio do Direito. Lá ele nos deu instruções detalhadas sobre como proceder nas aulas, o que esperar do início do curso, as atividades extracurriculares oferecidas, e outras informações úteis. Finalmente, desejou-nos boas vindas novamente e fomos dispensados.
Eu, Danilo e Andressa ficamos conversando, na entrada, sobre como havia sido o passeio, até que o celular de Danilo tocou e ele se despediu dizendo que a mãe tinha chegado.
- Então, acho que já vou indo também - disse a Andressa. Estava bem cansado e não via a hora de chegar em casa.
- Eu também. Você mora aqui perto?
- Moro sim, e você?
- Não tive essa sorte. Acho que vou levar no mínimo uma hora pra chegar em casa.
A cidade era bem grande, e eu sabia que muitos moravam bem afastados. No início, meus pais pensaram em alugar um apartamento numa região mais afastada, já que era bem mais barato, mas no fim concordaram que valeria a pena um preço a mais para ficar mais próximo da faculdade. Eu amo aqueles dois.
Por fim, nos despedimos e rumamos cada um para sua casa. Agora na volta, não estava muito animado com a ideia de andar até o bloco, embora fossem apenas três quadras de distância, então peguei um ônibus. Não estava muito lotado, mas também não estava exatamente confortável. Bem, teria que me acostumar com isso, pelo menos até completar dezoito anos, ou encarar a caminhada.
Ainda bem que o trajeto não durava mais que 3 minutos e, logo, estava na frente do bloco. Na entrada, Sr. Walter logo puxou assunto.
- Ei, garoto. E aí, como foi o primeiro dia?
- Boa noite, Sr. Walter. Foi tudo bem. Até melhor do que eu imaginava, pra dizer a verdade.
- Eu te disse - ele falou sorrindo.
Sorri de volta e disse que estava bem cansado, então iria subir. Ele liberou a entrada e logo estava entrando em casa. Fui direto para o banheiro e tomei um banho demorado. A água quente aliviou as dores que estava sentindo de tantas horas de caminhada. Sedentarismo é foda. Terminado, me vesti e fui ver o que tinha para comer, já que estava morto de fome.
Vasculhei tudo o que tinha comprado até me decidir por um ravioli semi pronto. Simples e fácil, já que não estava a fim de cozinhar hoje. Eu me viro até bem na cozinha, já que sempre achei muito interessante, mas é raro eu encontrar a disposição para cozinhar. E, cansado como estava, hoje não era um dos meus dias. Tudo pronto, me servi de um copo de suco e fui para a sala.
Decidi ver um filme e escolhi liguei a TV. Meus pais iriam adorar sugerir que eu começasse a estudar logo no primeiro dia, mas convenientemente eles não podiam mais fazer isso, então apenas me sentei no sofá e relaxei enquanto comia e assistia ao filme.
Terminado, lavei o que tinha sujado e arrumei tudo. Liguei para meus pais e conversei um pouco com eles sobre o meu primeiro dia, avisei que compraria os livros indicados pela internet e ouvi enquanto minha mãe fazia o questionário de praxe sobre minhas obrigações. Depois de desligar, me arrumei para dormir e deitei na minha cama.
Olhei para o teto e refleti sobre como havia sido meu primeiro dia. As aulas eram o que eu já esperava, uma mistura de interessante e tedioso. As pessoas, bem, elas não pareciam ser tão ruins quanto eu esperava. E já tinha dois colegas com quem passar os primeiros dias, então não estaria sozinho. Nada mal para um primeiro dia. Satisfeito, me virei e dormi.