Vencer aquela antiga vergonha e contar tudo a Paolo, desde o principio, nao foi o pior. Lamentavel mesmo foi observar o seu profundo sofrimento à medida em que ouvia o que eu tinha passado e ainda passava nas garras de meu irmao.
- Nano, me diz que nada disso aconteceu _ murmurou ele segurando minhas maos assim que acabei de falar _ Fala que nao foi verdade... que nao foi...
- Infelizmente aconteceu, Paolo _ disse, alisando seus dedos compridos.
Ele se ergueu num impulso, atordoado, andando pela sala como se estivesse sem rumo nenhum, passando a mao nervosamente pelos cabelos. De repente, parando, deu um soco tao forte contra a madeira da porta que ate mesmo a janela estremeceu.
- Que covarde! _ bradou furioso _ Canalha! Infeliz! Isso nao pode ficar assim, nao pode...
Voltou-se nervoso para mim.
- Voce nao volta mais para aquela casa! _ exclamou.
- Ele esta me ameaçando. Anda com o segurança armado, ainda por cima _ falei, aflito _ E sei que ele seria bem capaz de cumprir com suas ameaças.
- Mas nao pode, nao pode... _ Paolo nao parava com suas voltas pela sala, quase esbarrando nos moveis, o cenho franzido, sombrio _ Porque nao me contou isso antes? Aquela vez, quando eramos pequenos?
- Vergonha, Paolo _ confessei _ Vergonha, medo, necessidade de nao perturbar sua vida...
- Perturbar? _ ele me olhou, perplexo _ Mas como perturbaria? Sua vida e a minha sao a mesma coisa, estamos integrados um ao outro igual a galhos da mesma arvore, somos dois e somos um, Luciano. Nao tem que me poupar de nada, nao sou mais aquela criança ingenua do passado.
Sim, a criança talvez fosse eu. Compreendi isso e nao ousei retrucà-lo por ele estar pleno de razao. Entretanto, a soluçao de tao grave problema nao viria facilmente, embora Paolo concordasse com a questao principal.
- Acho que de fato precisamos ir embora daqui _ declarou.
- Mas para onde?
- Eu tenho uns colegas em Itu, trabalhei là por uns meses, posso ver isso depois _ ele refletiu por um momento _ Estando naquela cidade, podemos resolver o que vamos fazer...
- Sinto tanto atrapalhar sua vida, Paolo! _ exclamei, consternado _ Às vezes penso que nem deveria ter voltado.
- Nao repita isso, Nano, por favor _ disse ele serio, vindo se sentar ao meu lado _ Eu nunca mais quero ficar longe de voce outra vez.
E me abraçou forte, comovido, transmitindo toda a segurança, todo o amparo de que eu necessitava ha tempos. Estava quase na hora de ele ir para o seu trabalho no armazem, mas antes planejamos rapidamente o que fariamos: eu devia passar o dia todo no casarao e mostrar a Rodolfo que nao tinha a intençao de sair, depois, às onze da noite, quando a casa toda estivesse dormindo, apanharia minhas coisas (nada alem do necessario) e iria para os fundos da casa sorrateiramente, esperar por Paolo no nosso antigo lugar no jardim. Como a grade do portao era facil de escalar, eu pularia para a rua e juntos aguardariamos na residencia dele a hora exata do trem seguir para Itu.
O plano parecia complicado, mas era o que de melhor nos ocorrera por enquanto. Bastante ansioso e com medo, despedi-me de meu italiano, voltando ao casarao onde jà começavam a acordar. Yedda havia se levantado, fatigada pela gravidez, porem nem sinal de Rodolfo ou do seu capanga. Mais tarde descobri que tinham ido cedo para a chàcara dos mineiros. Foi melhor assim.
Passei o dia numa ansiedade terrivel, organizando em segredo e com a porta trancada, uma maleta de viagem com o necessario. Mal vi Rodolfo nesse dia e ele, sabendo que eu estava em casa, pareceu mais tranquilo e me deixou em paz. Por volta das nove da noite, me recolhi ao quarto, tranquei a porta e fiquei aguardando. Alguns minutos depois vi com aquele velho horror nauseante a maçaneta da porta girar varias vezes: Rodolfo tentava entrar. Insistiu por algum tempo, esmurrou a porta de leve e afinal se afastou no seu passo duro. Seria o maior alivio do mundo me livrar para sempre daquele devasso maldito dentro de poucas horas.
No horario marcado esgueirei-me como um ladrao para fora do quarto, deslizando pela casa silenciosa e escura, girando a chave da porta principal e afinal ganhando a area externa. Do outro lado da rua, conforme o combinado, Paolo me esperava.
- Tudo certo? _ sussurrou _ E o capanga?
- Ele nao vigia à noite, apenas durante o dia _ falei baixinho, passando a maleta pela grade e me preparando para escalar o portao _ Vou pular.
Ate que foi rapido, embora eu fosse desajeitado e quase tenha caido. Paolo quis levar minha maleta e, apressados, rumamos para a casa dele. Em voz baixa ele ia me contando que pedira demissao do emprego à tarde e que avisara aos pais que passaria uma temporada em Itu, buscar uma colocaçao melhor e rever os colegas. Uma mentira bem fraca, na verdade.
- Deixei o Fausto com os velhos _ disse ele meio chateado _ Vou sentir falta do meu gordinho.
Minha culpa por ve-lo abrir mao de sua vida pacata por mim, nao atenuava. Na casa dele eu nao consegui dormir direito, receoso de que algo desse errado, nervoso, sentindo-o se abraçar a mim na cama, cautelosamente.
- Por isso voce se encolhe todo quando toco em voce _ sussurrou, penalizado _ Pobrezinho do meu Nano, del mio amore...
Fiquei com vontade de chorar ali, acalentado por ele, contudo me segurei. Dormi mal, sobressaltado, e às cinco horas despertei com o barulho do Paolo na cozinha fazendo um cafe rapido para nos.
- O trem sai às seis _ disse ele assim que terminamos o cafe _ Bom... vamos? Deixei com meus pais o dinheiro referente ao aluguel da casa, mas... nao sei se volto. Nao sei.
Na hora do nosso embarque observamos atentamente toda a estaçao, temerosos de que Rodolfo ou o seu capanga surgissem de repente, o que, felizmente nao aconteceu. Assim, naquele inicio de manha tepido e encoberto abandonamos Jundiai em direçao à Itu, em direçao à minha liberdade.
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Opinem, galera! Estao gostando ou nao?
Um grande abraço em cada um *-*