Daqui o mundo parece apenas uma pequena fresta de luz no vidro do navio. O balançar do mar, e o som repetitivo das ondas ao bater no cais me fizeram perder a sanidade por alguns momentos, chegando a vomitar e a cair tonto no chão de madeira.
Havia algo ali tão estupidamente cruel, insano e sem escrúpulos que me fez ficar com medo a viagem inteira. Com certeza estava com medo dos meus pais, do fato de me trancarem nesse navio e me mandarem para esse reformatório. Disseram que seria ótimo para a minha índole.
Olhei para o mar, o enjoo eminente voltou. Lembrei-me dos panfletos que mamãe me entregou um dia antes da viajem, no hotel do qual ficamos hospedados. Pelas fotos, o reformatório era um local agradável e com muitas pessoas. Mal sabia eu que aquele lugar seria a prisão do qual eu nunca conseguiria sair.
Tons de cinza rondam toda a atmosfera da minúscula ilha que via da janela redonda e embaçada pela água do mar que parecia pular em pequenos respingos do lado de fora. Era lá que eu ficaria durante os próximos seis meses da minha vida. Reformatório São Pedro, na ilha São Pedro.
A distancia causava-me náuseas, via o pontinho pequeno balançar como se não houvesse preso a água, e sim fluindo feito o navio que estou. Infelizmente, a medida que nos aproximávamos via que a ilha não era pequena, muito pelo contrário. Quando comecei a conseguir distinguir os muros altos de pedra cinza, da vegetação grossa e verde que a rondava feito um grande tapete caracterizado por ondulações, vi que a ilha era enorme.
Não sei se foi o lado do qual o navio ancorou, ou se realmente a ilha tinha aquela face cinza e aterrorizante que vi enquanto encarava as paredes gigantescas do bombordo do navio.
Olhei para minhas mãos, elas estavam agarradas a cerca do navio como se está fosse me manter lá. Sã e salvo. Para sempre seguro em uma flutuante casca de navio, onde o nome “Princesa do mar” estava escrito no bombordo, junto à pintura pouco chamativa de uma sereia loira de seios a amostra.
A cada momento que se passava, via diante de mim a melancolia se consolidando na cor cinza.
O dono do barco era amigo da minha mãe, e se dispôs por pura e espontânea vontade em me levar para a ilha onde estava agora. Era um rapaz de no mínimo cinquenta anos. Tinha uma barba branca e suja típica de marinheiros, e usava um sobretudo marrom que cobria seu estomago volumoso. Suas mãos eram grandes e ásperas, as senti em contato com meu ombro.
— Boa sorte— Disse ele dando leves tapas no meu braço.
Parecia que eu necessitaria de sorte desta vez. O infinito era apenas a porta de entrada do meu fugaz encontro com o horrível cenário. Mil coisas passaram pela minha mente. E então, subitamente fui despertado pela voz rouca do marinheiro ao meu lado
— Eles estão te aguardando ali— Apontou para a área onde rapazes com uniformes azul sucintamente me observavam. Aguardavam ao lado de um jipe igualmente azul.
Meus olhos ainda encaravam a ilha, misteriosa em seus tons frios. O céu estava nebuloso, parecia que uma tempestade viria nos surpreender hoje.
— Adeus, bom senhor. Obrigado por me trazer aqui. — Eu disse enquanto me distanciava do rapaz, que observava sob os ventos fortes que parecia balançar toda a ilha e todas as arvores que a ela estavam presas. Fiquei preso, senti-me preso igualmente a elas quando pisei na madeira fraca e ensopada do caís.
Senti que ao me despedir do velho barbudo, estava automaticamente me despedindo do mundo fora daquela ilha, consenti que só fugiria dali mergulhando estritamente fundo no gelado mar que a rondava, e consequentemente morrendo pelas fortes correntes que levavam em direção as pedras do outro lado.
— Arthur! — Gritou o rapaz, olhei para trás e ele corria em passos atrapalhados atrás de minha sombra que agora estava parada a espera-lo.
O rapaz chegou próximo a mim, suas mãos tremiam, parecia nervoso. Tirou do bolso uma corrente bela e fina com uma cruz presa que balançava a medida que sua mão também balançava.
— Isso é da sua mãe, ela pediu para entregar a ti. Quase esqueci. — Eu sei porque ela não pode vir entregar a mim pessoalmente, porque de fato eu a quebraria em quantos pedaços me fizesse melhor. Estava sedento de ódio de minha mãe. Ela permitiu que eu fosse levado para esse horrendo lugar sem fazer nada contra. — Arthur, tem mais uma coisa que desejo lhe perguntar— Disse enquanto soltava cuidadosamente o crucifixo em minhas mãos — O que fizeste para ser levado a este lugar tão amedontrador? Quer dizer, ouvi histórias horrendas sobre esse lugar, sobre como é a vida por detrás desses muros.
— Eu empurrei minha professora da escada— Fui sucintamente direto, não tinha tempo para explica-lo qualquer coisa que fosse. O rapaz me olhou com os olhos arregalados e sussurrou algumas palavras em espanhol, do qual eu não consegui identificar pela rapidez com qual fez isto.
Virei e continuei a andar pelo cais. Cheguei ao jipe, onde os guardas me seguraram pelo braço e me colocaram sentado no banco de trás. Havia quatro guardas, todos usavam uniformes com a cor pura e forte do azul.
Azul esse que não encontrava mais nos céus. Azul esse que fora substituído, roubado dos céus e virado o cinza amedontrador da melancolia.
Começou a chover, o jipe sem teto andava acelerado, escalando pelas estradas a montanha até o alto, onde eu ficaria. Cortamos a selva pela estrada de barro, o verde e o marrom a minha volta se transformaram lentamente em cinza. As paredes começaram a aparecer, grandes e silenciosas, guardiães dos meninos que ali estavam perdidos.
Mais ao longe, uma grande placa indicava que estávamos sob as dependências do “Reformatório para Jovens Garotos São Pedro”. Era um sucinto adeus a todos os que deixei para trás: mamãe, papai e meus irmãos. Esses que nunca mais veria, nem quando saísse daqui, pois foram eles que me mandaram para esse inferno quando não lutaram com a justiça. Quando não lutaram para que eu ficasse.
Os primeiros humanos jovens apareciam no jardim. Um belo jardim, devo admitir. Por instantes pensei que o cinza fosse apenas uma ideia pouco elaborada da minha mente, quando vi as flores. Um painel colorido de flores, grande e belas. Podia sentir o perfume emanando de suas pétalas delicadas.
Havia garotos, garotos como eu, cuidando das plantas. Estavam armados com tesouras grandes e perigosas, cortando as flores, as modelando á medida que a fina chuva molhava seus uniformes tristemente cinza.
O jipe barulhento chamou a atenção dos garotos, à medida que passava despertava os olhares brilhantes dos meninos na chuva. Alguns deles riam, achando graça do desastroso desfile mortal que se punha naquela passarela pouco rica e pouco iluminada.
Àquela medida torcia para que fosse morto, estrangulado por algum garoto cinzento enquanto dormia, talvez assim meus pais se sentissem triste por isso e chorassem desesperadamente pela minha morte causada por eles.
Poucos minutos depois estava em uma sala onde um rapaz tirou minhas roupas e me examinou profundamente. Mandou-me abrir a boca, arregalar os olhos, levantar os braços, ficar de quatro e abrir o orifício anal. Do qual ele examinou com cuidado, enfiando seus dedos cobertos pelo plástico da luva. Sentia-me envergonhado, quer dizer, meu anus nunca fora explorado por dedos antes.
Quando acabou, o médico olhou para meu rosto, arrumou o óculos que pendia em seu nariz, e disse com um sorriso diabólico:
— Acha que isso foi embaraçoso? — Deu uma risada — Mal sabe o que te espera lá dentro— Deu um tapa em minhas nádegas nuas. Pus-me de pé, com as costas eretas. Aquela foi um assédio, podia denuncia-lo por aquilo.
— Seu pedaço de merda! — gritei alto. Estava com raiva, queria o destruir, pensei em pular sobre ele e arranca-lhe os olhos com os dedos. Mas não fiz. Controlei-me, pois como qualquer outro ser humano, eu tinha medo. Se pulasse sobre ele, provavelmente ficaria preso nesse inferno por mais alguns meses.
— O que? — Enfiou as mãos em meus fios capilares, puxou para trás com uma força descomunal, senti que meus cabelos marrons iriam ser arrancados do meu crânio — Pode gritar seu delinquente. Grite! Grite alto. Aqui ninguém vai te ouvir, nem os policiais lá fora, nem sua mãe e seu pai que devem estar agora agradecendo a Deus por ter se livrado de você. Ah, a propósito... — Puxou mais meus cabelos, senti a raiz se alongar e ser forçada pelos dedos — Achas que quando sair daqui vai contar a alguém que eu dei uma leve tapa em sua bunda? Pode contar seu merda. Conte para qualquer um desses policiais e leve um pau na bunda!
Aquelas palavras, frias e cruéis bateram na minha cara e causaram a pior dor que eu podia sentir. Ele me amedontrou, e a cada puxão que o médico dava em meu cabelo, sentia que as minhas esperanças saíram pela janela.
— Belo cabelo, você tem... — Disse o doutor, enquanto largava meus fios e me empurrava com violência indomesticável.
Atravessou a sala, enquanto pegava meus pertences: Minhas roupas e meu tênis que jaziam sob a mesa dobrada com perfeita singularidade. Gritou para os enfermeiros que abriram a porta rapidamente, me flagrando pelado e comprimido em um lado da sala.
Eles riram.
— Cortem o cabelo! — Ordenou o médico enquanto saia pela sala, sucinto e delicadamente calmo.
Olhei para os enfermeiros que me seguraram pelado pelos braços. Sorriam, maldosamente sorriam para mim. Como se fosse uma grande piada ser humilhado e cortar o cabelo para que vissem.
Meus cabelos, que batiam um pouco acima do ombro, eram de um loiro escuro que se confundia com o ruivo claro. Iriam tirar isso de mim. Cortariam meus cabelos. Era quase como arrancar minha beleza. Mas a essa altura não me importava mais, não me importo mais com nada.
Enquanto sentia a máquina passar rente em meus cabelos, silenciosamente sentia o medo se alastrando em meu organismo, como se por um milésimo de segundo eu fosse vazio, e então o medo constituísse todos os meus ossos e todo o meu sangue. Como se o medo me preenchesse dos pés a cabeça.
Tinha medo daquela ilha, e finalmente pude entender, enquanto caminhava até meu dormitório, enquanto observava os rostos dos outros jovens me olhando, todos quietos e seguindo filas indianas rápidas pelos corredores. Finalmente pude entender o que o marinheiro me disse mais cedo, sobre as histórias que eram contadas aqui.
E por momentos observei a alma de cada ser, que silenciosamente passava por mim. Via o sofrimento, o medo o terror em seus olhos brilhantes como a lua que se acendia por entre as janelas grandes com grades dos dormitórios.
E quando me deitei naquela cama, só pensei em dormir. Descansar e nunca mais acordar. A penumbra aterrorizante também se punha naquele quarto, passando pelo ar feito incenso, entrando em todos os oito jovens que ali estavam deitados ao meu lado.
E a lua, que por vezes, quando a observava da janela do meu apartamento há alguns dias atrás. A lua perdia seus tons brancos para dar espaço ao cinza.