Frequentemente as crises epilepticas deixavam meu irmao um pouco adoentado por pelo menos um dia apos o ataque. Ficava com um ar distraido, longinquo, reclamando de "peso na cabeça", precisando descansar bem quieto em algum lugar sossegado. Dessa vez nao foi diferente, e ele passou todo aquele dia no quarto, fatigado, o que considerei excelente pois assim poderia ir ver Paolo outra vez e voltar sem preocupaçoes. Tambem providenciei com Yedda a troca de quartos, reclamando daquele meu cuja porta nao fechava; ela responsabilizou os empregados pelo sumiço das chaves, e eu sinceramente nao imaginava que desculpa Rodolfo daria quando seus subalternos o delatassem à mulher. Felizmente consegui transferir-me para o outro quarto, levando agora a chave comigo.
Aquele principio de dia, entretanto, nao poderia ter se encerrado sem que eu conhecesse o sinistro Quin, o segurança de meu irmao. Ele tomava seu cafe na cozinha, conversando com a empregada mais velha, e a impressao que tive dele foi a pior possivel: começou pelo seu olhar negro, analitico e profundamente severo que me lançou, carrancudo. Era um homem beirando os trinta anos, queimado de sol, de cabelos castanhos, a expressao dura como a de alguem extremamente contrariado com algo; alto e muito forte, do tipo que "derrubaria" um touro segurando o bicho pelos chifres. Vestia-se todo de preto, feito estivesse de luto, e em sua cintura um revolver pendurava-se dentro de um coldre de couro trabalhado em arabescos.
O olhar dele me seguiu como o de um cao acostumado a vigiar o terreiro do dono, atento a todo e qualquer movimento estranho.Como eu já tinha avisado Yedda que provavelmente passaria o dia todo fora, sai com alivio daquela casa, respirando com prazer o ar morno da manhazinha. Esperava encontrar Paolo sozinho no armazem, no entanto havia por là algumas poucas pessoas comprando viveres e ele, apesar de ter aberto um sorriso fantastico (e ate mesmo perigoso) ao me ver, teve de atender toda aquela gente antes de me cumprimentar com seu abraço apertado, cheirando a lavanda e cafe.
- Vim passar o dia com voce _ falei, olhando-o de perto _ Posso?
- Mas voce ainda pergunta, Nano? Claro que sim! _ disse ele sem se caber de alegria, puxando um banquinho de madeira sem encosto e me oferecendo, ao lado do balcao _ Fique aqui, acho que nao vao se importar... Preciso fazer o levantamento dos produtos que estao faltando. Converse comigo enquanto isso, amore... Sabe, dormi muito feliz essa noite, em muitos anos.
"Amore", eu pensava, rindo sozinho. Foi espontaneo aquilo, e olhei para ele, encantado. Embora me pedisse para falar enquanto ele trabalhava, eu quase nao consegui. Paolo sempre foi muito falante, uma forte caracteristica do povo da sua terra, e comigo ali os assuntos eram infindaveis. Em familia eles sempre falavam alto, aos gritos, gesticulando bastante, mas comigo ele modulava a voz.
- Vendem figos em calda, aqui? _ perguntei apontando para a prateleira _ Eu gosto tanto!
Na mesma hora Paolo pegou o vidro do doce e me estendeu.
- Tome. Fique para voce.
- Quanto custa? _ peguei a carteira no bolso do paleto.
- Ora essa! _ ele ficou irritado _ Foi presente, nao percebeu? Leve-o porque vamos almoçar juntos outra vez.
E me fitou com um olhar profundo, brilhante. Sorriu e voltou para seu trabalho, deixando-me constrangido. Enquanto ouvia aquele amplo falatorio dele notei que do outro lado da rua passou muito lentamente, como quem nao quer nada, o capanga do meu irmao, o Quin. Lançou um olhar longo para dentro do armazem e para mim em particular. Cerca de quinze minutos depois passou outra vez, mas agora na rua em frente ao estabelecimento, me encarando com seu olhar ameaçador. Fiquei inquieto, compreendendo o caso todo: Rodolfo mandara-o me seguir e queria que eu soubesse disso.
- Enfim! Onze horas! _ disse Paolo pegando o gancho de ferro para correr a porta _ Passou depressa essa manha de trabalho. Voce devia vir todos os dias, Nano, nem vejo a hora passar aqui com voce.
Sorri um pouco sem graça, ainda preocupado com o sujeito que com certeza estaria me seguindo na rua. Ao sairmos vi de fato o homem encostado a um poste, fumando, mais afastado do armazem; temi que ele nos seguisse, porem, olhando para tras antes de dobrarmos a esquina, o vi no mesmo lugar, nos olhando de longe. Mesmo assim meu medo nao diminuiu e eu temia muito mais por Paolo do que por mim.
A intensa alegria dele, no entanto, me contaminava, e logo esqueci dos problemas nos braços dele assim que entramos na sua sala fresca e arejada. Sua boca sedenta e firme sugava com urgencia a minha, e suas maos foram mais ousadas, percorrendo meu abdomem e costas num reconhecimento esperado. Nesse ponto, tendo o toque sexual de um homem em mim, a minha velha tensao voltava e eu paralisava, respirando forte. Ele percebeu.
- Desculpe _ disse com um sorriso _ Estou indo um pouco rapido, nao?
- Esta indo como deveria ir _ falei bulindo em seus cabelos lisos e macios _ Eu que sou travado como uma donzela...
Rimos juntos, nos abraçando, e mais uma vez tive a certeza de que ele nao tinha se mantido virgem como imaginei. E porque nao? De certo modo aquilo me decepcionava um pouco, ou talvez eu fosse um tolo quadrado e convencional. Ele era um homem muito bonito, sensual, simpatico, claro que atrairia pretendentes.
Por ter dormido mal na noite passada no quarto de hospedes onde me enfiei, fugindo de Rodolfo, por volta do meio-dia comecei a sentir uma dor de cabeça bem aguda. Paolo tinha aspirina em casa e me fez beber o remedio, dando a ideia de que eu poderia passar a tarde na casa dele, sem problemas, pois ali estaria melhor do que no armazem e descansaria. Aceitei, aliviado por nao poder voltar para casa e enfrentar Rodolfo com sua loucura.
Passei toda a tarde deitado na cama dura, fria e limpa de Paolo, vendo pela janela aberta as nuvens correrem. Dava para ver um trecho da azulada Serra do Japi do quarto dele, coroada por nuvens baixas, e comigo na cama o gato Fausto tambem aproveitou para descansar.
As seis horas Paolo chegou com nosso jantar: pao e salame. Comentou sorrindo todo abobado que seria um sonho chegar todos os dias e me encontrar esperando-o em casa. Como eu jà melhorava da enxaqueca estapeei-o por brincadeira, perguntando se ele me via como uma dona-de-casa, como sua mulherzinha, e ele ria, de repente me segurando nos braços e me beijando vorazmente. Notei uma certa rigidez volumosa entre as pernas dele, e outra vez me veio aquela exasperante sensaçao de medo e repulsa.
Eu pretendia dormir ali com ele, sem qualquer outra coisa mais intima, mesmo estando fascinado por aquele homem grande que, de calçao e camisa regata brancos, lia estendido na cama, usando uns oculos de armaçao prateada. As pernas grossas eram tao peludas quanto os braços e o peito, e seu maravilhoso aroma pos-banho enchia o quarto, despertando em mim o desejo de ficar. Ele me olhou, sorriu e fechou o livro - uma encadernaçao barata de Flaubert.
- Entao? Resolveu se vai ficar hoje comigo, Nano? _ indagou de um jeito malicioso.
Minha vontade era a de responder que sim, que ficaria, contudo nesse exato momento praticamente esmurraram a porta da sala de Paolo. Entreolhamo-nos, intrigados: quem estaria batendo àquela hora?
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Me escrevam galera :
aline.lopez844@gmail.com
Um forte abraço e ate à proxima!