Parte XI – Piadistas
Os dias foram se passando, e minha rotina continuou a mesma. Isto é, pelo menos na parte básica, já que várias coisas novas aconteceram.
A primeira mudança significativa foi que, agora, o grupo do Brandon e o nosso estavam praticamente sempre juntos, parecendo às vezes até mesmo um grupo só. Não que a Andressa e o Danilo tivessem toda essa intimidade com os outros, embora já se pudesse dizer que éramos todos "quase amigos" (eu já expliquei porque demoro para considerar alguém a nível de amizade). Não, o nó central desse novo grupo era Brandon e eu.
No primeiro dia de aula após aquela vez em que saímos, eu cheguei na sala e, como de costume, me sentei com Danilo e Andressa no canto direito. Estávamos conversando normalmente quando Brandon chegou com Gabriel. Mas dessa vez, ao invés de se sentar no canto oposto, como era de costume deles, ele deu uma olhada para o canto em que eu estava, sorriu e logo se juntou a nós. Deu pra ver que o Gabriel achou meio estranho, mas nem disse nada e veio também. Quando os outros começaram a chegar um por um, acabaram também por se sentar com a gente.
E foi assim que começou nossa amizade. Passávamos horas conversando sobre variados assuntos, desde os meios para beneficiar grupos minoritários desprovidos de seus direitos até qual era a maior maravilha do mundo: bacon ou chocolate. Nossas conversas eram totalmente naturais, e nunca faltava assunto. Foram poucas as pessoas com quem me sentia tão a vontade no nível em que me sentia com ele. Na verdade, Henrique e Letícia eram os únicos com quem eu me sentia tão confortável, e Brandon já estava superando eles neste quesito.
Minha amizade com Danilo e Andressa continuava firme, mesmo com isso tudo. No começo houve um estranhamento por parte deles, um certo ciúmes da situação. Mas, depois, também para eles se tornou natural. Eu sempre tirava um tempo para eles. Em certos dias saíamos apenas nós três, em outros Brandon ia junto, e em outros o grupo inteiro. Mas nunca me afastei deles. Tudo pareceu se encaixar, de uma forma que eu podia conciliar minhas relações com cada um deles. Nada de abrir mão de um pelo outro.
E, é claro, a segunda coisa que aconteceu nesse período foi que a cada dia que se passava eu gostava mais de Brandon. Aquela pequena atraçãozinha inicial evoluiu para algo mais forte, e minha quedinha por ele só aumentava. O jeito dele me fascinava e me atraía de uma forma incrível. Tudo que ele fazia parecia interessante, e cada momento com ele era mais... real. Não era paixão, ou pelo menos ainda não.
Com essas "pequenas" mudanças, a minha rotina sofreu uma adaptação. Eu acordava de manhã, me preparava para a faculdade e tomava um café, ou em casa ou na padaria da Elisa. Depois, andava até a universidade (sim, me decidi por andar, mais saudável e menos canseira desnecessária com ônibus). Durante as aulas, ou estava absorto na matéria ou estava conversando com Brandon, e às vezes com os outros. Depois dos dois primeiros horários, saíamos para almoçar, e na maioria das vezes íamos todos os dez. Os horários da tarde se seguiam como de manhã, e nos intervalos nos sentávamos nas áreas gramadas para conversar e descansar. Por fim, íamos embora e no outro dia tudo recomeçava.
Claro, agora saíamos bastante, pelo menos uma vez por semana, muitas vezes com o restante da turma. Logo já conhecia os melhores lugares para sair a noite, e já não estava tão perdido assim na cidade. E nos finais de semana, ficava em casa à toa, fazendo o que quisesse, ou saíamos novamente, o que já era quase um costume também.
E minha vida seguia assim, socialmente e universitariamente estável, já que estava conseguindo manter minhas obrigações em dia. Nesse dia, quarta, estávamos sentados nos gramados da Faculdade de Direito, à sombra de uma árvore. Estava com a cabeça no colo da Andressa, meio que cochilando, enquanto Brandon, Danilo e os outros conversavam animadamente. Abri os olhos e, num dos corredores, vi Bruno e seus fiéis companheiros. Andressa soltou um suspiro, e eu apenas revirei os olhos. Ia recomeçar a cochilar quando percebi que andavam em nossa direção.
Conversavam sobre alguma coisa e riam bem alto, até que chegaram onde estávamos.
- Müller! E aí, cara! Porra, faz um tempão que não conversamos – Bruno disse e se inclinou para apertar a mão do Brandon.
- Po, Brunão, fazer o que né, tu sumiu! - Ele respondeu enquanto se levantava. Depois de cumprimentar o Bruno, se virou para os outros. - Vocês também, né. E aí, Thiago, Gustavo, Vinícius. E o Renato, cadê ele?
- Ahh, ele estava logo atrás da gente... ali ele vindo pra cá.
Renato tinha acabado de virar o corredor e vinha na nossa direção. Ele era alto, corpo forte, e tinha cabelos pretos e olhos da mesma cor, e tinha a pele clara. O rosto dele não era muito bonito, mas o corpo dele tinha tudo no lugar. Assim como os outros quatro. Pareciam todos ratos de academia, todos fortes, mas Renato era o mais tonificado, embora a diferença não fosse lá muito grande. O Thiago era o mais baixo, a pele negra, cabelos pretos e olhos castanho-escuros. Já o Gustavo tinha cabelos loiros e olhos castanhos, e era o mais bonito de rosto. Por fim, o Vinícius tinha o cabelo num tom quase ruivo e olhos castanho-escuros, e era o mais alto. Já tinha reparado várias vezes no Bruno, no Gustavo e no Renato, mas os outros dois nunca tinham me chamado muito a atenção. Mas até eu tinha que admitir que eles eram todos bem descolados, talvez pela autoconfiança excessiva, que muitas vezes chegava a ser irritante.
- E aí, galera! Müller! Achei que nunca mais ia falar contigo - Renato disse quando chegou, dando uma palmada no ombro do Brandon.
- Ahh cara, vocês que sumiram, nem vem - Brandon respondeu e se sentou de novo.
- E aí, o que vocês estão fazendo aqui? - Gustavo perguntou.
- Só passando o tempo até a próxima aula.
- Ah, só. Cara, acho que nem vou nessa aula hoje não, to meio sem saco pra isso - Bruno falou, cruzando as pernas.
- Eu preciso assistir, cara, as provas já vão começar daqui a uma semana - Brandon falou, dando de ombros.
- É, vendo por esse lado... mas depois eu recupero, até porque não vai fazer diferença se eu for ou não nessa aula, já que eu vou dormir o tempo inteiro - Bruno falou.
Brandon riu com ele e eles começaram a conversar sobre algum outro assunto, e eu apenas fechei os olhos e relaxei, enquanto a Andressa bagunçava meu cabelo com os dedos, me fazendo um cafuné.
- Ou, vou indo lá então. Depois a gente se fala - Bruno se inclinou para apertar a mão do Brandon, que ainda estava sentado. Nisso, quando ele se inclinou, Thiago deu uma lapada na bunda dele com a mochila.
- Ooohh, virou a bunda de quatro é porque quer - e eles riram.
- Ficou maluco, meu?! Larga de ser viado, e tira o olho que aqui ninguém se mete não - Bruno se fingiu de ofendido.
- Hmm, bichinha nervosa - Vinícius falou numa voz de falsete, causando risadas em todos novamente, inclusive em Brandon.
Depois disso, foram os cinco embora. E essa conversa me deixou perturbado. Tudo bem, eu entendo que brincadeiras assim aconteçam, e que nem sempre são sinal de preconceito. Piadas nesse estilo geralmente são usadas apenas para descontrair, e embora não seja eticamente correto, não é algo a que eu daria muita bola em situações normais. O problema é que, vindo deles, elas me deixaram perturbado, com um gosto amargo na boca, e um desconforto diante de tudo. Já disse que não me sentia a vontade perto de Bruno e seus amigos, e isso só serviu para aumentar ainda mais minha cautela com eles.
Mais alguns minutos ali e nos levantamos para ir para nossa próxima aula. Estava andando ao lado do Brandon, meio perdido em meus pensamentos, quando sou despertado com ele chamando o meu nome.
- Lucas... ei, Lucas - ele disse, passando a mão na frente do meu rosto. - Tá vivo, cara? Fala comigo.
- Foi mal, tava viajando aqui.
- Percebi... Então, tá a fim de fazer alguma coisa esse fim de semana?
- Ahh cara, sei lá, se vocês quiserem sair pra fazer alguma coisa, por mim tud...
- Não, não - ele me interrompeu. - Eu estava pensando em talvez você ir lá pra casa, aí a gente vê uns filmes ou coisa assim.
- Ahh, por mim tudo bem. Aliás, onde é que você mora? - Nunca tinha parado pra pensar em onde o Brandon morava.
- Po, eu moro um pouco mais afastado. Era para eu morar num dos blocos aqui perto, mas nem tinha mais nenhum para alugar quando eu vim com os meus pais procurar, e o apartamento da minha irmã é pequeno e não dava para eu ficar no mesmo dela - Ele também era de fora e veio depois do ensino médio para fazer um cursinho, no qual ficou por um ano.
- Ué, então se você achar melhor, vai lá pra casa sexta depois da aula. Sei lá, leva umas roupas, daí você já passa o final de semana lá.
Ele pareceu parar para pensar um pouco, refletindo sobre a ideia.
- Se não for atrapalhar em nada...
- Cala a boca, Brandon. Eu moro sozinho, to com a matéria em dia e vou passar o fim de semana arranjando coisa pra fazer. Você acha que vai atrapalhar o que? - Disse com ironia, dando um sorriso de lado.
- To tentando ser educado, seu idiota - ele riu, me dando um soco no ombro. - Então fechou, sexta eu vou contigo. Mas depois não reclama, hein. Vai ter que me aguentar o fim de semana inteiro.
- É, se bem que pensando por esse lado... - e fingi preocupação, até que ele me empurrou e começamos a rir de novo.
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O restante do dia passou sem nada de interessante. A noite, antes de ir embora, fui com Brandon, Andressa e Bianca num dos comércios perto do campus, para comermos uma pizza. Os outros já tinham ido embora, então fomos apenas nós quatro. Comemos, conversamos e rimos muito, até que já eram nove horas da noite. Depois, nos despedimos e fomos cada um para sua casa.
Quinta-feira foi entediante e pareceu demorar um século para passar. Acho que isso tinha bastante coisa a ver com o Brandon estar indo para minha casa na sexta. Não, eu não estava com segundas intenções, apenas estava na expectativa para um final de semana que, eu sabia, seria bastante divertido.
Mas o que importa é que quinta passou com a velocidade de uma tartaruga paraplégica. Em algumas das aulas, prestei um pouco de atenção na turma do Bruno e, mesmo assim, não consegui aliviar minha sensação e incômodo com relação a eles. Não tinha como negar, aquelas brincadeiras idiotas deles me atingiram, pela primeira vez. Mesmo não tendo nenhuma suspeita a meu respeito, eles tinham conseguido me perturbar de uma forma que há muito tempo não acontecia. Estava revoltado com isso.
Ao correr do dia, no entanto, acabei por relaxar, e decidi apenas esquecer aquilo. Não tinha motivos para ter raiva deles, e não iria deixar uma bobagem daquela causar isso em mim.
Finalmente, o dia acabou. Eu já estava deitado em minha cama, esperando o sono chegar e refletindo sobre meu dia, enquanto ouvia Debussy dedilhar seu piano maravilhoso. Primeiro, pensei nos assuntos levantados nas aulas,mas passei pouco tempo nisso. Logo depois, refleti sobre a brincadeira idiota deles no dia anterior, e me permiti analisar melhor a situação. Não é incomum que tais brincadeiras surjam no meio de jovens em uma conversa informal, mesmo que o autor não seja homofóbico. São formas de descontração, sem a intenção direta de ofender. Contudo, até que ponto pode-se justificar essas piadas com esse argumento? Piadas com negros não são totalmente incomuns, e as vezes não indicam racismo, mas isso não impede que as vejamos com maus olhos. Por que as piadas com os gays deveriam ser vistas de forma diferente?
Soltei o ar longa e audivelmente. A existência de tais piadas indicavam apenas uma coisa: ser gay ainda é motivo de chacota para muitas pessoas por aí, de mente limitada; e mesmo para as pessoas mais instruídas e sem preconceito, ainda há esse estigma ofensivo, seja quanto a "dar a bunda" ou quanto a "ser bicha", dentre outras expressões. Me senti um pouco triste nesse momento. Será que um dia ser chamado de gay deixaria de ser uma ofensa? Não tinha resposta para isso.
Pensei mais um pouco no assunto, e finalmente me rendi à exaustão, escolhendo apenas não me atormentar com isso. Contudo, quando já estava quase dormindo, uma frase me veio à cabeça, algo que eu ouvi numa das minhas aulas de filosofia. E sorri. Quem sabe, um dia, talvez o mundo mude. Já mudou tantas vezes, por que não mudar quanto a isso também? Não devia tratar tais piadas com indiferença, e a partir daquele momento, não iria. Não era a alternativa perfeita, mas foi o melhor em que pude pensar. Talvez, no futuro, eu pudesse ajudar mais no assunto, mas por enquanto, teria que me contentar com lembrar disso. Portanto, sussurrei a mesma frase para mim mesmo.
- Tente mover o mundo. O primeiro passo será mover a si mesmo - Platão, obrigado por me lembrar disso.
E adormeci.