Capítulo 02
Murilo
Murilo era o guri mais respeitado da turma antes da minha chegada. Ele era conhecido por ser filho de militares e família rica, por sempre estudar nos melhores colégios, pela prática intensa de esportes (desde os 06 anos de idade), pelas caras viagem,todos os semestres, para o exterior e por todos os pais sempre o fazer de menino exemplo. Aos 15 anos, já era triatleta na categoria amador olímpico, isso, sem falar no judô e karatê. Com 18 anos, já era um colecionador com mais de 90 medalhas, uma musculatura fora do padrão da sua idade e reconhecido pela sua inteligência que rendera prêmios de melhor aluno da cidade. Todos esses quesitos o tornavam outro Rei dentro do condomínio. Por isso logo o apeldaram de King. No começo,eu o achava metido e irritante, pois ele era aquele tipo de cara que, além de tirar sarro em todo mundo, não aceitavaque nós revidássemos suas brincadeiras. Nossa aproximação começou quando ele ouviu dos garotos que eu, aos 13 anos, não era mais virgem. E foi aí que eu o conquistei.
Para o Murilo, tudo aquilo que ele conquistara nesses árduos anos de incansáveis rotinas de estudo e esporte, não tinha o menor valor se ele, aos 18 anos, não tivesse transado com uma garota. E foi numa dessas conversas sobre transa que nossa amizade foi ganhando força. Ele parecia uma criança quando chega a um parque de diversões quando eu dizia tudo que eu havia feito. Mesmo eu tendo que mentir sobre quem eram “minhas” parceiras sexuais.
“Imagine eu tendo que explicar tudo que fiz, mas, ao mesmo tempo, tendo inventar que meus primos eram mulheres?”
Lógico, tive que inverter todas as histórias, mas, como eu tinha propriedade naquilo que eu estava dizendo, eu conseguia enganar muito bem um cara que nunca tivera relações sexuais. Em pouco tempo de convivência, nos tornamos melhores amigos. Fazíamos tudo juntos, desde jogar futebol, brincar de esconde-esconde, ir ao cinema, sair com nossos pais aos finais de semana, acampar com sua família, visitar o exército, até coisas mais íntimas como tomar banho e dormimos um na casa do outro. Sem falar que tudo o que nós dois quiséssemos fazer o resto da trupe fazia. Em um ano de amizade, tinha o que até então posso dizer, uma admiração avassaladora por ele. E o que deixava esse sentimento ainda mais forte, era o fato de ser completamente correspondido. Ficava maravilhado com o modo que ele me tratava. Sempre em primeiro plano. Sem falar nas crises de ciúmes que ele tinha quando eu dava mais atenção para outros garotos a ele. Como eu disse esses sentimentos de me fazer único e seus ciúmes, me deixava encantado.
O Murilo era moreno, de 01 metro e 70 centímetros (O que o tornava mais baixo que eu), praticava inúmeros esportes e isso o deixara com um corpo bem forte para idade. Uma musculatura maciça que dava a sua pele, a impressão ficar lustrosa, mas ao mesmo tempo, macia quando tocada. Não era considerado com um garoto bonito, pelo contrário, poucas pessoas que tinham coragem de zombá-lo, logo procurava o atingir pela sua falta de beleza. Algo que o deixava extremamente irritado. Acredito que o grande desejo em esculpir seu corpo, se dava ao fato de todos não o acharem belo. “Já que eu não ganho as pessoas pela beleza, ganharei pelos músculos”. Já eu me encantava com o seu sorriso. Para mim, ele perdia toda aquela fama de feio quando abria aquele largo e contagiante sorriso. Talvez por ser o único momento que ele não ficava carrancudo.O Murilo não tinha pelos por todo o corpo (O que era raro para sua idade) e usava os cabelos raspados, dando ar de malvado. Garoto que detestava andar mal arrumado, sujo ou mal cheiroso.Com estatura baixa e corpo muito forte, logo o apelidaram de Touro.
E, por ser um cara orgulhoso, era obvio que ele amava e fazia questão de ser chamado pelo seu novo apelido. Era ótimo o ver jogando futebol e depois tomar uma ducha ao seu lado. Deixava com uma imensa vontade, quase irresistível, de “brincar” como ele quando eu o via de cueca ou até nu. Até as senhorinhas que ficavam papeando no jardim ao lado da quadra, paravam tudo o que estavam fazendo e voltava-se para aquele garoto.Com pouca idade e muitos músculos, pessoas que não o conhecia o “Famoso Murilo”, sempre o acusava de fazer uso de anabolizantes. O que lhe causava grandes problemas com sua rígida família, sérios descontentamentos de seus treinadorese grande constrangimento com os pais de seus amigos. Os mesmos pais que sempre o usava como garoto exemplo. O problema era que ninguém, além de mim, seus pais e treinadores, sabia da sua rotina de exercícios. Lembro-me das dores que ele sentia pelo o excesso de exercícios físicos.
Aquelas dores que nós ouvimos os atletas na TV sempre reclamarem que tem. Todos os dias quando ele chegava do ginásio onde ele treinava judô e outros esportes, eu subia com Murilo para o apartamento dele, onde eu enchia vários sacos com gelo e forrava suas costas, braços, mãos, pernas, pés e o deixava descansando por vinte minutos. Após quase congelar, ele ia direto para o chuveiro e ligava na água fervendo. Só de olhar me dava arrepios. Depois, eu ainda ajudava a passar pomadas anti-inflamatórias e, só assim, ele estava pronto pra sair comigo para brincarmos com os outros garotos.
Um ano se passara entre aquele fatídico dia que meu irmão pegou e eu e meus primos fazendo “troca-troca”, ser castigado pela minha família junto ao com meu irmão, conhecer meus novos amigos e ser reconhecido pela garotada como um Rei, o começo da minha amizade e o grande fortalecimento dela com o Murilo, até o meu aniversário de 14 anos. Após a festinha, apenas para os amigos mais chegados, dada pela minha mãe e meu irmão, o Murilo decidira que seu presente seria algo que fosse para marcar a minha vida.
“Como eu já tinha feito tudo – ao meu ponto de vista – de mais importante na vida de um garoto de 14 anos pudesse ter feito, o que mais faltava eu conhecer?”
Algo que, com toda certeza, me deixava tão ansioso ao ponto de sentir um buraco no estômago, só de tentar imaginar.
“Para vocês entenderem melhor o formato do meu condomínio, vou lhes fazer um breve resumo:Na lateral Leste: Ficavam os 08 blocos de prédios com 07 andares cada. Cada par de blocos, sua lateral, tinha um conjunto de 04 churrasqueiras que lembrava uma pequena casa com chaminés. No lado oposto as churrasqueiras, ficavam os contêineres que guardavam todo o lixo que era retirado diariamente e levado para uma lixeira gigantesca do lado de fora. Na lateral Oeste: Na parte baixa do condomínio ficava a portaria e o bicicletário. Na parte central, ficava uma área arborizada, com árvores nativas e pomares, formando uma pequena e clara “mata”. Também ficava um grande caramanchão, onde tinha bancos e mesas de cimento para sentarmos. Nessa parte também ficava “A Árvore”. Na parte alta, ficavam: a quadra poliesportiva, a quadra de tênis e o campo de futebol. Na lateral das quadras, ficavam os vestiários e as duchas. Na extremidade Norte: ficava a piscina, salão de festas e o playground maior. Na extremidade Sul: Ficava o playground menor. E, para finalizar, tinha a pista de corrida que percorria o condomínio todo. Era um condomínio muito bem iluminado, tirando o fato que, após as 22 horas, ficavam apenas os postes das ruas acesas. O que tornava aquele lugar, tentador para brincadeiras”.
Meu bloco era o último da extremidade sul. O Murilo sugeriu que fossemos até as churrasqueiras que ficavam de frente ao seu bloco, localizado exatamente no primeiro bloco da extremidade norte. Percorremos os 800 metros que distanciavam meu bloco do dele, já com as luzes do condomínio apagadas e paramos na churrasqueira que ele disse onde a festa começaria. Ele me fez subir pelos pilares laterais e ficamos sentados em cima das telhas metálicas. No começo, achei meio sem nexo tudo aquilo, mas após ele tirar o pano que cobria uma caixa branca, eu descobri sobre o que se tratava a tal festa. Sem falar que eu e o Murilo descobrimos que subir em cima da estrutura, nos proporcionava um belo de um esconderijo. E que seria lá onde nos esconderíamos quando quiséssemos sumir da galera. Seria o nosso segredo, nosso lugar e combinados que somente eu e ele saberíamos da existência daquele lugar, o nosso refúgio.
- Esse ano, o seu presente inédito será seu primeiro porre de cerveja – disse ele me abraçando como um rinoceronte.
- Caralho! Você sabe o tamanho da sua força? – falei soltando o ar.
Ele apenas riu. Ria porque ele sabia que era gigante para um ser humano normal.
- Como você sabe que nunca tomei um “porre”? – perguntei o fazendo rir.
- Então, você contou milhares de histórias e muitas delas melhores que às minhas...
- São diferentes Murilo! – disse interrompendo.
- Tá certo, diferentes das minhas! – disse ele dando um aperto no meu ombro – porém, nunca ouvi você dizer nada sobre álcool?
- Na verdade eu já experimentei – disse olhando entre meus joelhos.
- E?
- E que eu não gostei nada dessa coisa amarga – disse o fazendo gargalhar – O que há de engraçado nisso? – perguntei.
- Porque você está dizendo que não gosta do meu presente de aniversário! – disse ele me fazendo ficar sem graça.
Tão sem graça que sentia o sangue queimando o meu rosto e minhas orelhas.
“Que idiota que eu sou!”
- Me desculpa Murilo, não quis falar mal do seu presentão, é que... – ia dizendo quando ele colocou a mão na minha boca.
- É que nada meu irmão! Você não gosta e pronto – disse ele me fazendo um cafuné.
- Sério mesmo, me desculpe? – disse eu rindo pela besteira que tinha dito.
- Não precisa se desculpar por ser sincero! Na verdade eu prefiro assim – disse ele abrindo um sorriso largo –Vamos, talvez eu ainda consiga consertar o seu presente – disse ele se levantando.
Mas antes que o Murilo pudesse se movimentar, o segurei pelo bração e o fiz sentar.
- Eu quero o seu presente! – disse estendendo a mão para ele me dar uma lata.
- Não precisa fazer isso Alan. Podemos sair e comprar outra coisa. - disse ele dando um sorriso.
- Eu quero experimentar o seu presente. Quem sabe eu não mude de ideia? – disse dando um sorriso.
Ele deu de ombros e abriu o pegando uma lata gelada de cerveja. Segurei aquela lata pesada e gelada, tão gelada que fazia a ponta dos meus dedos ficarem duros. Engoli seco por não saber como eu iria reagir ou por medo de ser pego pelo meu irmão e mãe. Abria a lata naquele “cleck” que só a lata de cerveja faz. Coloquei na ponta dos lábios, sentindo aquele aroma de cevada e...
- Não irmão! – disse ele abaixando a minha mão, derrubando uns pingos na minha roupa – temos que fazer um brinde antes, não sabia? – perguntou ele abrindo a sua lata.
- Você é louco! – exclamei fazendo-o arquear a sobrancelha.
- Cara, é seu aniversário, estou trazendo para nossa festa, nossa bagunça e você ainda espera que eu agisse normal? – perguntou ele as risadas.
- Então Murilo, faça seu brinde!
- Hoje, no dia, quero lhe desejar muitas felicidades, muito sucesso, muitas aventuras, muita grana, muita viagens, muita mulherada e, lógico, tudo isso sempre ao lado do seu melhor amigo aqui. Amigo seu que queria ser seu verdadeiro irmão de sangue – disse estendendo a lata para o brinde – Num gole só, heim?
- Valeu! Mesmo que não somos irmãos de sangue. Saiba que eu o considero como meu irmão de coração – disse batendo minha lata na dele – num gole só.
Ambos colocaram a lata na boca e beberam até esvaziar. Ao final, eu soltei um grito misturado a uma risada e puxei o Murilo para um abraço.
- Gostou? – perguntou ele rindo, encostado no meu pescoço.
- Demais! – disse o fazendo soltar uma gargalhada.
- Agora fodeu! Eu induzi um menor a tomar álcool. Será que serei preso?
- Não! Se fosse o caso poderíamos fugir, o que acha?
- Tentador! Mas pra onde dois adolescentes iriam sem grana?
- Quem disse que eu não tenho grana?
- Olha só, descobrindo segredos do Alan – disse ele pegando mais duas latas e jogando uma para mim.
- Pois é! – disse bebendo um longo e gelado gole de cerveja – Tenho R$ 250 Reais na minha poupança.
O Murilo, ao ouvir aquilo, cuspiu e engasgou com a cerveja. Depois de passar a crise de tosse, ele começou a rir, a ponto de soltar lágrimas dos olhos.
“Por mais que R$ 250 Reais em 1996 valessem umas quatro, cinco ou até seis vezes mais que os R$ 250 Reais de hoje, era de se esperar que o Murilo reagisse daquela maneira!”
- Que eu disse de errado? – perguntei ao meio das gargalhadas.
- R$ 250 Reais não da nem pra passar um mês.
Eu abaixei a cabeça e a coloquei entre os joelhos.
- Alan? – disse ele puxando meu queixo para cima – Por que essa cara?
- Porque tu deve me achar uma criança! – disse fazendo bico.
- Nem a pau! Você é meu melhor amigo e não admito que diga isso.
- Só quis agradar! – disse virando o resto da lata – Você com seus 18 anos andando com um garoto de 13. Ops, 14 anos agora!.
- Caramba, desse jeito você vai ficar bêbado rapidão! E não – disse ele segurando minha latinha insinuando para eu ir devagar – Não tem problema algum você ter apenas 14 anos.
- Você me ensinando a beber rapidão, rapidão você será preso – disse insultando-o.
- Então teremos que arrumar um jeito de levantarmos grana pra fugir – disse ele virando a sua lata também.
Eu sabia que ele estava querendo me agradar. Afinal, ele andava me agradando durante o ano todo. Talvez por ser filho único e, seus pais não lhe dar muito atenção, ele fosse carente de figuras paternas e até de um irmão. Por isso, acredito que ele tenha me adotado como um irmão. E o melhor, eu estava gostando muito.
- Para onde iriamos, caso a gente fugisse? – perguntou ele pegando outra cerveja edeitando sobre o telhado.
- Não sei! Mas pensei em algo como Patagônia, Bariloche, México ou qualquer parte das Cordilheiras dos Andes – abri a minha lata e deitei ao seu lado.
- Tudo muito frio, você não acha?
- Eu prefiro assim! Muitas montanhas, muito frio e neve para nós esquiarmos. Tudo aquilo que eu nunca vi e só vejo em revistas e filmes, entende? – disse olhando o céu estrelado acima.
- Credo Alan! Lugar assim é só pra férias. Eu gosto mesmo é de praias. Muito calor, muitas festas, muita mulherada, muita curtição. Esse lance de mato e frio não é comigo – disse ele sem olhar nos meus olhos – Deitar numa areai sob o sol escaldante é o meu lance.
- Podemos fugir pra praia e passar férias nas montanhas, o que acha? – perguntei sentindo o cheiro amadeirado do seu perfume.
Ele me fitou sério, às vezes, até me parecia carrancudo, mas logo abrira aquele sorrisão que contagiava.
- Pra mim, perfeito!
E viramos novamente para o céu. Ficava abobado imaginando a magnitude de tudo aquilo. Como se formara algo tão colossal que fugia até da compreensão do homem? Tudo no céu me encantava. As galáxias, estrelas, planetas, cometas, meteoros, meteoritos, constelações. Acostumava ficar horas com a minha amada avó, apontando e dando nomes as estrelas. E no universo da minha avó, eu podia escolher qualquer uma. Tenho uma paixão avassaladora por temporais. Adoro quando o tempo escurece como se fosse noite, daí vem o silêncio de milhares de seres vivos esperando por aquele espetáculo. É um silêncio de medo, daqueles que nos faz ascender uma vela para orarmos, pedindo que nada nos aconteça. Mas para mim não. Quando maior e mais forte for o temporal, mais belo se torna. Pode soar um pouco esquisito, mas sinto toda a força da natureza quando ela nos manda uma tempestade.
- Que tal fazermos a nossa primeira aventura? – perguntou ele quebrando um longo silêncio.
- Que tipo de aventura? – perguntei me levantando.
- Daquelas que ficará pra história! Daquelas que iremos contar lembrar pro resto de nossas vidas. Pelo menos eu vou.
Fiquei sem entender.
- Sabe de uma coisa, vou levá-lo para dar um role de carro na zona – disse ele se levantando e encarando o chão.