- O seu guarda-costas nao veio? _ abordei-o, jà furioso.
Mauricio recuou, perplexo, olhando para os lados como se temeroso de que percebessem aquele principio de confusao. Avancei para ele, tomado por uma raiva represada havia algum tempo.
- Vamos! Onde ele esta? Diga! Quase nunca o vejo sozinho, e depois daquele dia... _ engoli as palavras, sufocado _ Ainda temos muita coisa a esclarecer, nao acha?
- Que coisas? _ ele largou o livro o qual olhava, um volume grosso de capa verde ; fitou-me com irritaçao, aceitando a briga_ Esta tudo acabado, nao percebeu? Acha necessario um recado mais claro do que aquele?
- Desgraçado! Voce me traiu sem necessidade! _ eu jà falava alto, e algumas pessoas olhavam para nos, chocadas _ Bastava dizer que nao queria mais, que nao estava dando certo... Mas nao! Foi mais facil dar para outro...
- Cala a boca! _ gritou ele, me empurrando _ Vai falar assim com suas negras, seu otario! Foi um alivio me desvencilhar de voce, da sua dependencia sentimental, desse amor ridiculo que voce sentia... Tao cego que nao percebeu que eu nao o amava hà tempos!
- Infeliz ..._ sussurrei, com odio e dor, sentindo as lagrimas vindo _ Eu te amava...
- Ei! Nao podem brigar aqui dentro! _ falou severamente um funcionario da livraria _ Vao fazer as confusoes de bicha de voces là fora!
- Vai se foder! _ esbravejou Mauricio para o cara, e me olhou com desprezo _ E voce tambem!
Saiu esbarrando em nos, furioso. Afastei-me dali, notando as pessoas me olharem com um ar de espanto e reprovaçao. Fabinho me fitava com pena, calado, e nos seus olhos vi que sofria por mim, pela minha tristeza. Meio atrapalhado sai da livraria, e ele me seguiu.
- Vou pedir um suco de maracujà para voce. Vai acalmar _ disse ele, parando outra vez na praça de alimentaçao.
Nao recusei, bebendo meio distraido o suco. Sentia uma angustia gigantesca, uma sensaçao de inutilidade, de humilhaçao, de perda irreparavel. Vi o quanto desnecessario tinha sido confrontar Mauricio, ouvir coisas que me machucaram, me humilharam. Para que? Para ter certeza de que ele nao me amava mais?
- Acho que nao há mais clima para o cinema _ disse Fabinho assim que terminei o suco.
Concordei, perguntando entao o que ele gostaria de fazer. Convidou-me para sua casa, os pais estavam fora e talvez apenas sua irma, Leticia, estivesse presente. Reclamou que nao se sentia muito bem da gripe, que queria descansar um pouco, mas ao meu lado. Nao vi como recusar o pedido dele e voltamos para o Itaim Bibi.
Eles viviam num certo tipo de luxo clean, copiado da capa de alguma revista, sem personalidade nem proposito. Tudo como que montado para ser fotografado, mas nao para deixar alguem à vontade. Encontramos por là a irma de Fabinho, uma moça gorducha de vinte anos, jeito de fleumatica; estava acompanhada do namorado, Renato, um cara moreno, da minha altura, sexy e com cara de cinico. Fabinho o odiava, e sempre falava mal dele para a gente.
- Arrumou homem agora, cunhadinho? _ disse o sujeito assim que entramos; deu risada da propria frase ridicula.
Fabinho o ignorou, chamando a empregada deles e pedindo que nos preparasse alguns hamburgueres.
- Nao precisa, Fabinho _ falei, meio avexado _ Alem do mais, nao como carne, lembra?
- Ah, claro! Tinha esquecido... Entao vou pedir um pouco de pipoca ...
- Tem que comer carne, rapaz! _ disse Renato, espichado na poltrona de design moderno, como se estivesse em sua casa _ Comida de homem. Mas agora todas as bichas sao vegetarianas...
- Conhece tantas bichas assim? _ encarei-o, revoltado.
- Eu nao! Sai fora! _ ele riu alto, depois me olhando nos olhos de um jeito esquisito _ Eu nao...
- Deixe os garotos quietos, Re _ falou Leticia, sem energia, ainda olhando para a tela da TV, onde passavam videoclipes.
Enquanto a pipoca era feita, Fabinho me mostrou seu quarto, sua coleçao de gibis e fitas de filmes. Achei interessante o fato de ele dormir com um boneco de veludo roxo- purpura que imitava um poodle; tinha ate mesmo uma fita branca de cetim no pescoço do boneco, com um nome bordado: JUAN. Nao comentei nada sobre isso, observando-o colocar no videocassete o filme Gremlins, dizendo que eu tinha que ver uma coisa. Sentamos em sua cama e notei que seu colchao era de agua, algo que eu nunca tinha experimentado, conhecendo apenas de revistas; achei que chacoalhava demais, era ate divertido, mas nao imaginei como ele aguentava dormir naquilo. Parecia o mesmo que passar a noite dentro de uma tigela de gelatina.
- Olha, olha! _ ele riu, me mostrando na tela onde o filme rodava, o ator principal do filme Gremlins, de 1984 _ Veja se esse tal de Zach Galligan e voce nao sao a cara um do outro! Identicos! Ate esse queixo partidinho, bonitinho...
Fazia muito tempo que eu nao assistia aquele filme que fez, na verdade, parte da infancia de um punhado de crianças. Fiquei meio espantado com a semelhança, sorrindo tolamente.
- Adoro esse filme tambem por isso _ disse Fabinho me olhando.
- Palhaço _ murmurei meio constrangido, e para disfarçar o ataquei com cocegas na barriga, derrubando-o na cama cujo colchao bamboleava, esquisito; ele nao resistiu dessa vez, começou a rir todo sem folego por conta da gripe, de subito envolvendo-me com as pernas e os braços, me fitando bem de pertinho e parando as risadas; ficou vermelho, mordeu os labios e eu me abaixei, beijando-o na testa _ Esta febril outra vez.
- A Maria quem guarda meus remedios na cozinha, numa gaveta _ disse ele, afundando os dedos em meus cabelos _ Pega com ela uma dipirona pra mim, por favor. E traga nossa pipoca.
- Tudo bem _ sai de cima dele, um pouco atrapalhado _ Acho bom se cobrir, veja como esta esfriando.
Deixei-o se ajeitando entre as cobertas, balançando no colchao d' agua. Ao sair do quarto topei com Renato que, no corredor, tinha um jeito suspeito, como se estivesse ouvindo atras da porta. Olhou para mim com um arzinho debochado.
- Jà traçou o moleque? _falou baixinho, chegando perto _ Ele sempre faz cu doce, nem deixa a gente se aproximar...
- Agora entendo porque ele odeia voce _ sussurrei estupefato e com nojo.
- Odeia porque tem vontade de virar mulherzinha na minha mao, mas nao admite _ disse ele rindo e mordendo o labio _ Voce tambem... Tem uma carinha de quem engole ate as bolas. Bichinha gostosa...
- Seu nojento! _ resmunguei entre nauseado e irritado, deixando-o para tras e indo buscar o remedio do menino; imaginei se a loira tonta da namorada dele percebia aqueles assedios que de tao descarados deviam ser muito frequentes, muito mal acostumados; decerto nao, ela preferia ver MTV do que vigiar o namoradinho gilete enrustido.
Voltando com o remedio de Fabinho e a pipoca, encontrei o garoto dormindo com a televisao ligada, encolhido na coberta como um bichinho friorento. A febre estava baixa, mas assim mesmo o acordei para que ele tomasse o remedio, pingado por mim num pouquinho de agua no fundo da xicara cor de tijolo.
Assisti ao resto do filme com ele ali na cama, e depois a programaçao normal da TV. A dipirona deixava Fabinho sonolento e ele se encostava em mim, dormindo de tempos em tempos. Como a tarde jà avançava, decidi ir embora e deixa-lo descansar um pouco.
- Da proxima vez estarei melhor e entao iremos ao cinema, ok? _ disse ele corado do calor das cobertas, jà sem febre ; soergueu o corpo, me dando um tipo desajeitado de meio-abraço, falando em meu ouvido _ Adorei a tarde que passamos juntos.
- Na verdade, fiz voce passar vergonha là naquela livraria _ murmurei meio constrangido, apertando seu corpo leve e quente nos braços _ Uma baixaria, nao?
- Ao menos voce falou o que estava atravessado na garganta e o confrontou _ disse Fabinho se deitando com um suspiro de cansaço _ Fiquei com a impressao de que tudo se encerrou definitivamente ali.
Eu tambem tinha aquela dolorosa impressao, mas nao gostava de pensar nela e nao queria analisà-la tao cedo. Dei um "tchau" carinhoso a Fabinho e sai de sua casa, sem ver o Renato nojento e sua namorada boboca. Dirigindo de volta à mansao, as palavras de Mauricio vinham ate mim como areia trazida pelo vento, me ardendo os olhos. Ele era um esnobe apreciador de operas, porem gostava de "Well I Wonder"; dizia que parecia garoa caindo pela calçada numa tarde cinzenta, mas daquelas garoas tao finas como neblina. Porem a propria musica tinha um som de chuva no final. "Please keep me in mind", ele cantava, me olhando. (Por favor se lembre de mim) .
- "I half die" _ sussurrei acelerando a moto, sentindo o vento me levando as lagrimas para longe, arrancando-as como se tivesse raiva delas _ "Eu quase morro". Quase morro, Mauricio.
*
*
*
*
Obrigada, gente! Abraços em cada um!
Ate o proximo :D
