Inimigos silenciosos
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Especialmente para a "Casa dos Contos".
DEPOIS DE muito relutar a boa senhora resolveu ligar para a secretária e marcar uma consulta com seu clínico geral.
- Bom dia, doutor.
- Bom dia, dona Gertrudes, quanto tempo. Estava sentindo sua falta. A última vez que a senhora esteve aqui o Dr. Godofredo ainda gozava de boa saúde.
- É verdade.
- Por favor, sente-se. O que me conta de bom?
- Doutor, de bom... Nada. As mesmas baboseiras de sempre. Tenho, porém, um problema novo... Nem sei por onde começar... Nessa idade, quase beirando os 85... Sinto um certo constrangimento e... Bem, confesso, estou com vergonha do senhor.
- Que é isso, dona Gertrudes. Vergonha de mim? Tenho idade para ser seu neto. Ademais, leve em conta um detalhe importante: sou seu médico há mais de vinte anos.
- Nunca esquecerei desse detalhe. Mas o senhor deve ter em mente que das vezes anteriores os motivos eram outros e claro, não tão sérios.
- Vamos fazer o seguinte: faça de conta que no meu lugar a senhora está vendo seu marido, o falecido e saudoso Dr. Gertrudes, - que o Altíssimo o tenha em sua santa bondade. Abra o jogo. Não pense em mim... Concentre-se...
- Sabe o que é doutor?
- Só saberei se a senhora me contar o que está realmente acontecendo.
- Doutor... Misericórdia, que horror! Estou cheia de gazes.
- Isso é natural, dona Gertrudes. Todos nós temos problemas com gases. Eu, particularmente, minha esposa, minha secretária, até nossos bichinhos de estimação...
- Eu sei, eu sei, acredite doutor, não me aborrece a coisa, ou o fato em siEntão?
- O que me causa estranheza é que eles...
- Eles?
- Os peidos...
- Claro, os peidos...
- Nunca cheiram.
- Pois sim!...
- E são literalmente silenciosos.
- Silenciosos?
- Completamente, doutor. Não fazem barulho.
- Um bom quadro, dona Gertrudes. Um bom quadro. Silenciosos e sem odores acres.
- Odores o quê?
- Perdão. Quis dizer que não exalam mau cheiro.
- Ah! Pois bem, doutor. Desde que cheguei ao seu consultório, contando o tempo que passei na recepção -, soltei aproximadamente uns 30 puns. Sua secretária, tão amável –, serviu um cafezinho. Coitadinha, não reclamou, nem fez cara de deboche. Significa dizer que não sentiu nenhum cheiro esquisito nem torceu o nariz ao ouvir meus traques.
- Honestamente não vejo onde reside a sua preocupação, dona Gertrudes.
- Vou tentar ser mais clara. Posso?
- Por favor!
- Enquanto estou aqui a falar com o senhor, peidei... Desculpe... Soltei mais uns 40 ventinhos. O senhor não percebeu.
Sempre sorridente o médico prescreveu uma receita.
- Compre estas pílulas na farmácia e tome uma de duas em duas horas durante uma semana. Após esse prazo, retorne e marque um novo horário com a Fabiana. Vamos ver que progresso conseguimos.
- Fico muito agradecida, doutor. Passe bem.
Uma semana depois a velha Gertrudes retornou ao consultório.
- Doutor, não sei que droga me receitou. Por Nossa Senhora do Sagrado Coração de Maria. Meus peidos, desde então, passaram a feder terrivelmente. Um horror! Não estou aguentando ficar perto de mim. Todavia, devo esclarecer um detalhe importantíssimo: eles, ao menos, continuam silenciosos e comportados.
- Dona Gertrudes, graças a Deus embrenhamos pelo caminho certo. Conseguimos curar definitivamente a sua sinusite. Agora que vencemos essa etapa, vamos dar uma atenção maior e mais acentuada aos seus ouvidos.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 62 anos, é jornalista.