Capítulo 06
Minha primeira despedida.
E os dias foram se passando e o castigo acabando, até que fomos liberados. A história do acidente percorreu aquele condomínio como um raio. Todos os lugares que íamos, as pessoas vinham até nós querer saber sobre o acidente. O Murilo, que até então era o “vilão” da história, passou a ser considerado o herói que me salvava. Sem falar na história sobre o “Bortolozzo” que ele contara. O apelido colou tanto que toda a galera, incluindo os porteiros, seguranças, o pessoa da limpeza, os pais dos meus amigos, estavam me chamando pelo novo apelido.
“Era estranho um dia ter um nome e no outro ser chamado por outro, mas fazer o que? Apelido a gente não escolhe!”
Só que mesmo após o castigo terminar, o Murilo voltava a se trancar em sua casa. Passava boa parte do dia para estudar para passar no concurso do I.T.A. Quando ele estava prestes há completar 19 anos, chegou à mensagem que ele conseguira a tão sonhada carreira militar. Lembro-me como se fosse hoje o dia que nós recebemos a notícia. Eu estava sentado, comendo minhas famosas paçocas e assistindo meus amigos jogarem futebol quando ele apareceu com um envelope branco e timbrado. O rosto moreno dele estava branco que nem um fantasma e, sua expressão, era de alguém que fosse vomitar a qualquer instante. Engoli a paçoca goela abaixo e voltei minha atenção a ele.
- Eu não quero abrir – disse sentando ao meu lado – se eu não passar Bortolozzo, meus pais me matam – disse com a voz trêmula.
- Murilo, você é o cara mais “nerd” que eu conheço. Quando foi a última vez que você tirou um 9,0 numa prova? – perguntei o fazendo ficar pensativo por um tempo.
- É que dessa vez está valendo meu futuro – ele disse com a voz ríspida.
- Eu sei!
- Abre para mim Bortolozzo – ele mandou, jogando o envelope no meu colo.
- Nunca! – disse jogando no seu colo novamente, como se fosse uma granada prestes a explodir.
- Para de ser veado – disse ele devolvendo o envelope para mim.
Eu engoli seco. Não queria dar uma notícia ruim para ele. Se tinha alguma coisa chata nesse mundo, eram as crises de ciúmes Murilo, quando ele ficava ansioso. Pois, além de ficar insuportável – onde ficava horas desmerecendo a si mesmo. O colocando para baixo. Dizendo ser a pior pessoa do mundo – eu tinha que ficar horas paparicando-o para acalmá-lo. Respirei fundo e rasguei o envelope grande, tirando uma carta timbrada. Li atentamente a primeira página, mas só tinha baboseira de burocracia.
“Será que era mesmo a carta com o resultado?” – pensei.
Quando estava prestes a desistir, avistei o resultado no rodapé. Li umas duas ou três vezes para ter certeza do que estava lendo.
“APROVADO!” – pensei soltando o ar dos pulmões.
- Que foi Bortolozzo, quer me matar? – gritou bravo comigo, lembrava até um Pitbull raivoso latindo.
- “É com grande prazer que anunciamos que o senhor Murilo Rafael Garcia, foi aprovado no exame do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, I.T.A., no curso de Engenharia Aeronáutica” – quando acabei de ler a carta ele estava em choque – Viu seu besta? Eu disse que você ia passar – disse dando um abraço bem apertado – E olhe aqui, esta dizendo que foi em 2º Lugar! – disse o abraçando novamente.
Todos os garotos que estavam jogando futebol na quadra, pararam o que estavam fazendo e ficaram olhando aquela cena de novela.
“Imaginem, dois garotos rindo e se abraçando? Da para se ter uma ideia de como fomos zoados?”
- Graças a Deus, Bortolozzo! – agora posso voltar a dormir.
- Besta! – disse dando um soco forte no seu ombro – Você sempre foi o nerd da turma. Você tinha dúvidas que não ia passar? – eu disse fazendo-o rir.
E veio me abraçando apertado novamente.
- Ai bando de louco, passei no I.T.A. – ele gritou para o pessoal que não estava entendendo nada – JÁ ERA! AGORA SEREI PILOTO – gritou.
Todos vieram dar os parabéns a ele. Não com tanta emoção e intensidade que fora o meu, na verdade, era bem o oposto do que eu fiz. A galera chegava dando tapas mesmo, murros, fazendo o famoso “montinho” e outras brincadeiras que incluía força física. Mas o bom de tudo aquilo, era ver ele feliz.
“Bom, agora tenho um amigo importante, né?” – pensei.
- Vai pegar pouca mulher agora, Tourinho? – gritou um dos nossos amigos.
- Imagina a moral tua de uniforme, as “minas” vai chegar caindo em cima de ti? – disse o Diego, um dos nossos amigos.
- Ainda mais morando colado em Sampa – gritou outro guri.
O Murilo, que estava às gargalhadas, ficou sério quando gritaram que ele morar perto de Sampa.
Foi ai que meu “mundinho” caiu pela primeira vez.
“Como eu não tinha pensado nisso antes? Óbvio que o curso do I.T.A. não era em São José do Rio Preto. Como eu não pensei nisso antes? Como sou burro! Perder meu único melhor amigo?” – pensei.
Essa notícia era pior que tomar dipirona sódica misturado com chá de boldo. Sentei-me na grama e comecei a desamarrar e amarrar os cadarços do meu tênis, tudo para não ter que ficar olhando para ele.
- Qual é o problema Alan? – disse sentando ao meu lado.
- Vai me chamar de Alan de novo? – perguntei com sorrisinho sem graça – O que aconteceu com o Bortolozzo? – perguntei sem graça.
No fundo meu peito começava a apertar.
- Ai galara, vamos lá pra piscina porque a coisa vai ficar chata agora – gritou um dos guris num tom de zombaria.
- Parabéns senhor Garcia – disse olhando para o nada.
- Por que você está assim?
- Talvez seja assim que ficamos quando uma pessoa que gostamos muito tem que ir embora. Agora vou ficar sozinho! – eu respondi fazendo-o ficar em silêncio.
- Você não precisa ficar sozinho, olha quantos amigos nó temos? – ele disse dando um soquinho no meu joelho.
- Não Murilo, eles são meus colegas. Lembra o que você me disse sobre amigos? – ele apenas confirmou com a cabeça – Então, amigo mesmo só você – eu disse sério - Meu “irmãozão” de sangue.
Ele ficou me olhando, como se buscasse palavras para me confortar, mas acredito que não tinha o que ele fazer e nem eu queria deixa-lo desanimado.
- Eu pensei que você já soubesse que não era em Rio Preto – ele me disse com voz rouca.
- Eu nem tinha me “tocado” cara – eu disse com tom mais severo – toma aqui sua carta. Você vai ter que mostrar para seus pais e seus amigos – disse colocando o envelope sobre sua perna.
- Pelo menos faltam alguns meses para as aulas começarem! – disse dando um sorrisinho de lado.
- Pois é pelo menos tem isso – eu disse retribuindo com outro sorriso.
Ficamos olhando as sombras das árvores se rastejarem pelo chão, enquanto o pôr-do-sol ia chegando.
- Segundo lugar, heim? Sargento Garcia – eu disse fazendo-o rir.
- Nem tinha pensado nisso. Sargento! – ele disse olhando para o céu.
- Não começa que para ser sargento ainda faltam alguns anos – eu disse fazendo gargalhar – sem falar no outro apelido que vão colocar em nós. Zorro e Sargento Garcia e todas as duplas que envolver as forças armadas.
- Nem me fale! – ele disse dando outra risadinha.
Para ele, os dois meses que faltava para ingressar no I.T.A. fora de alegrias, festas, visita de familiares, jornais, revistas, outdoores, etc.
“Da para imaginar, o meu melhor amigo estampado em outdoor e dando entrevista nas TV’s locais?”
Já, para mim, era como se eu tivesse esperando a morte pela cadeira elétrica. Sem falar que, agora que ele ficara “famoso”, ele quase não tinha tempo para mim. E quando chegou à véspera do grande dia, os pais dele fizeram uma festa para nunca mais ser esquecida naquele condomínio. Lembro-me daquele dia chuvoso – na verdade parecia até um dilúvio – onde todos estavam desanimados em estragar suas roupas, maquiagem e cabelo. Fora aí que conheci o ditado “Não há nada que o dinheiro não compre!”.
Os pais dele colocaram um belíssimo toldo, desde e a entrada dos carros – que ficava fora da portaria – até a entrada do salão. Para as damas, um belo rapaz as acompanhava com guarda chuva até o local da festa. Para os Garcia, nada estragaria aquele dia tão especial.
Para começar, era obrigatório usar roupa de gala. O buffet estava impecável, a banda era a que o Murilo mais curtia. Nas paredes, painéis – por todo salão –com fotos do Murilo mostrando toda sua infância e adolescência, lógico que todos mostrando prêmio e seus méritos. Os convidados vinham de todos os meios. Tinha parentes, nossos amigos, amigos da sua família. Militares então? Nem se fale. Todos usando aqueles trajes militares, chiques, com inúmeras medalhas coladas ao peito. Todos cumprimentando e zombando o Murilo pelo fato que ele iria sofre no primeiro ano. As tias de longe estavam chorando, os amigos mostrando álbum de fotos da infância dele. E eu? E eu, aproveitei a festa com minha família e, apenas no final é que pude curtir a “estrela” da noite.
Quando a festa terminou, ele pediu a minha mãe para que eu pudesse dormisse na casa dele para nos despedirmos melhor. Com uma festa daquelas e com um menino exemplar,minha mãe nem pensou duas vezes em dizer “sim”. Já no quarto dele, passamos boa parte da madrugada chorando. Na verdade, choramos a noite toda.
Choramos ao lembrarmos todas as façanhas que fazíamos juntos nesse pouco tempo de amizade. Era triste saber que meu melhor amigo, amanhã, não estaria mais comigo. Que eu não acordaria e correria até o interfone para acorda-lo e ouvi-lo resmungar que ainda estava com sono. Não teria mais aquele cara que me ajudava nos afazeres do colégio. Não teria mais aquele cara que ia a pé ao shopping comigo, que curtia as mesmas músicas, que praticava os mesmos esportes. Não teria mais meu irmão de sangue.
“É, a partir de amanhã será apenas o Alan Bortolozzo. Bortolozzo? Até isso eu vou sentir falta.” – pensei.
A única coisa pior que se despedir de um amigo tão importante. Era brigar com ele. E naquela noite tão especial, fizemos a única jamais tínhamos feito. Um briga. E para piorar, fora por minha causa. Tudo porque eu desisti de leva-lo a rodoviária no dia seguinte.
“Se fosse hoje leitores, jamais deixaria de despedir de um amigo. Ainda mais da importância que ele tinha para mim. Só que na época, eu detestava despedidas”.
Ele ficou tão bravo, que chegou acordar os pais dele que vieramnos dar “A” bronca. Quando os pais dele voltaram para o quarto, ele chegou bem perto e, com uma voz bem baixa e séria, fez a seguinte condição:
- Bortolozzo, eu juro, se você não for me levar na rodoviária, nunca mais falo com você! – ele disse fechando os olhos e fungando alto.
- Desculpa Murilo! Eu não gosto de despedidas e pronto! – eu disse deitando no colchão virando de costas.
Ele ficou em silêncio por um momento, talvez pensando na maneira de me atacar.
- Isso inclui dormir em casa – disse ele num tom grave.
- Você vai me mandar embora da sua casa de madrugada, nessa chuva? - Perguntei atônito.
Ele não respondeu.
- Tá certo então, pode deixar – eu disse com o choro na garganta.
Ele ficou sentado na cama esperando eu arrumar minhas coisas. Mas era difícil de arrumar e ajeitar qualquer coisa com lágrimas nos olhos. O tempo todo ele só olhava para a porta do seu quarto, mudo, como se quisesse ficar o mais despercebido o possível. Quando por fim arrumei a minha mochila, sai do quarto rumo a porta da sala, esperei-o abrir a porta e, quando eu me virei para falar umas boas para ele, ele simplesmente batera a porta na minha cara.
Aquela atitude tão inesperada me fez tremer o corpo inteiro de nervoso e sentir aquela pontada aguda no estômago, enchendo meus olhos de lágrimas e comecei a chorar. Apertei o botão do elevador e fiquei observando pela janela da lateral o temporal cair. Eram 04:00 da manhã, estava chovendo demais e, para ajudar, estava fazendo frio.
“E podem apostar leitores, ele cumpriu a promessa de não falar mais comigo. Não pelo menos nos últimos 07 anos. Mas essa parte fica para depois. Contando a vocês, hoje, me sinto um babaca, mas eu era moleque e era muito orgulhoso também.
O Murilo é um cara que participará demais da minha vida quando eu for adulto. Queria poder falar direto sobre ele, mas não posso deixar de contar o que aconteceu durante esses 07 anos de ausência. “Principalmente porque poucos dias após sua partida, entraria o outro protagonista da minha história.”