Capítulo 08
O garoto do sorriso torto.
Por uma semana eu fiquei - como eu posso dizer - de “luto”. Passava o dia todo trancado no meu quarto, saindo apenas para comer, ir à escola e raras vezes ao mercado com minha mãe. Lugar que não me fez muito bem. Pois adorava ir ao Shopping com o Murilo. E sempre que íamos ao Shopping, era lei passarmos no mercado para ele me comprar algo, ficar ouvindo música nos novíssimos toca CD’s da época, comer tudo o que era oferecido pelas belas promotoras. Comíamos tanto que, às vezes, elas pediam educadamente para nós nos retirarmos do ambiente. Tirando os passeios pelo mercado, meu gosto pela diversão e pela vida, já não era a mesma coisa. Eu e o Murilo tínhamos uma outra visão de mundo. Nós tínhamos o nosso “mundinho”, como costumávamos dizer. Por isso, eu não conseguia achar graça ao sair com meus outros colegas do condomínio.
Sem falar que estava sentindo falta do meu irmão mais velho e super protetor. Agora eu estava sozinho. Uma semana após a partida do Murilo, fora aniversário do meu verdadeiro irmão. A festa estava boa e lotada de amigos, tinha até mais amigos que eu pude imaginar. Mas faltava algo. Faltava a única pessoa que importava para mim, o Murilo. Passei a noite toda olhando os carros e caminhões que corriam na rodovia de frente ao meu apartamento. De hora em hora, minha mãe vinha me chamar para me socializar com os amigos do meu irmão. Porém, o que ela não entendia, era que aqueles garotos não queriam estar perto de um pirralho como eu. Perto dos amigos dele, o Arthur ficava insuportavelmente chato. Ele permitia que todos seus amigos fizessem piadas sobre mim. Em especial, um garoto da sua idade chamado Breno.
O Breno tinha um irmão gêmeo, idêntico, chamado Bruno. Tão idêntico que por onde os dois passavam, eles arrancavam comentários em geral. Essa semelhança rendera aquele clichê básico de gêmeos, trocar de papéis. Eles sempre brincavam de trocar identidade, enganando meus pais, nossos amigos, professores, as meninas que eles paqueravam. Sempre sob o comando do meu irmão. O Arthur era o cara que planejava e o Breno era o que executava. O Breno e o Bruno poderiam,eternamente, passar despercebidos, se não fosse a diferença drástica de personalidade. O Breno era um garoto que adorava aprontar, mexer com as pessoas na rua, zoar em sala de aula, levava suspensões (sempre acompanhado com meu irmão), era conhecido como o Capeta em Pessoa. Já o Bruno, era um rapaz educado, falava baixo, ria pouco, inteligente, considerado menino exemplo pelos professores. Era adorado pelas garotas pelo seu jeito romântico de ser. Garotas que seu irmão fazia questão de sempre roubar dele. O Breno era o irmão que o Arthur queria ter, assim como o Murilo era o irmão ideal para mim. Quando Breno e Arthur se misturavam, não tinha lugar pra ninguém na roda.
Fiquei servindo de Bobo-da-corte por um tempo e, depois, decidi que aquele ambiente não era pra mim. Principalmente em ver como meu irmão adorava o Breno. Ver os dois tão unidos me fazia o coração doer.
“Será para sempre assim?”
Fui para o meu quarto e mal lembro como dormi. Acordei cedo na manhã seguinte, sentindo vontade imensa de sair de casa. Coloquei uma roupa confortável sai para caminhar até a pracinha do meu bairro. Gostava de ir caminha naquela praça, pois era bem arborizada, tinha uma pista de “roller” bem grande, um trailer onde vendia milho verde e água de coco, bancos de cimento ao centro onde casais de namorados passavam as tarde lá. Cheguei até praça e procurei uma arvore bem grande, onde eu e o Murilo costumávamos subir para conversar.
“Eu não sei ao certo de onde que vem essa paixão que eu tenho pela natureza, mas sei que necessito estar em contato com o verde ou qualquer coisa que me lembre dela. Natureza era outro ponto forte do Murilo. Não que ele gostasse e admirasse tanto quanto eu, mas ele arrumava uma maneira de nós irmos até um sítio ou chácara e se aventurarmos no meio da mata.”
Subi até o ultimo galho – e olha que aquela árvore tinha uns 04 andares de altura, daquelas com troncos retorcidos e grossos e fortes – e me sentei num tronco que parecia ser feito especialmente para sentar. Já o Murilo gostava de ficar num galho onde a copa terminava, assim ele poderia ter uma visão privilegiada de tudo.
Fiquei sentado por umas horas, ouvindo o som do vento fazia nas árvores, sentindo o perfume das folhas dos eucaliptos e da grama fresca. Observei a cidade acordar e a pracinha encher de gente. Bem ao fundo, jogando futebol na sombra de outras árvores, havia dois garotos com, mais ou menos, a minha idade. Veio mais uma vez aquele choro dolorido pelas lembranças do meu amado amigo. Respirei fundo e decidi que não queria viver mais com aquela sensação horrível de perda. Eu tinha que mudar, eu tinha que me mover, eu tinha que seguir a minha vida. Foi então que eu voltei a frequentar clube onde praticávamos natação e futebol, voltei a sair com os meus colegas que não tinha tanto costuma de sair e até com meu irmão, que era muito irritante, eu comecei a andar ao seu lado. Mesmo sendo estranho, mesmo sentindo que algo faltava algo, sair estava me fazendo esquecê-lo. E dois meses após a sua partida, eu conheci o Grande Amor da Minha Vida. Não daqueles que nos apaixonamos a primeira vista e, sim, aquele que conquistamos ao longo de uma vida inteira.
Era uma tarde de sexta-feira, pós-feriado e eu estava sozinho. Como de praxe, sempre que tem algum feriado em casa, minha mãe vai até a minha avó e o Arthur vai até a casa do Breno. Entediado por passar o dia inteiro trancado em casa, resolvi, mesmo que sozinho, descer até a piscina apenas para “tomar um ar”. Quando cheguei ao térreo do meu prédio, encontrei um garoto de cabelos ruivos e penteados, alinhadamente de lado, olhos negros como jabuticabas, pele clara, com poucas sardas no rosto.Usava vestes que aparentavam ser bem usadas. E o mais cômico, era vê-lo usando a camiseta dentro do short. Típico garoto criado pela avó. Fiquei encarando ele andar desnorteado pelo hall. Pelo jeito, era filho de algum funcionário ou algum parente da “Família Buscapé”.Fui até o mural que ficava de frente para o elevador, ler o recado que o síndico havia deixado. O garoto ruivo e desnorteado chegou até o elevador e ficou esperando o “mesmo” chegar em silêncio.
- Bão? – disse o moleque.
- Bão! – respondi sarcasticamente.
Virei novamente para o mural, fazendo força para não rir.
- Sou de Potirendaba – disse o moleque novamente as minhas costas.
- Ou seja, bem mais caipira que eu! – disse fazendo o moleque me encarar.
- Pre quê? – disse ele sem entender.
- Porque... – disse entonando bem à palavra para que ele pudesse entender o erro – Ah, esquece!
Ele continuava a me encarar não entendendo nada.
- E como posso chama-lo? – perguntei.
- Mi chama por aí de Alemão, mas meu nome mesmo, foi meu pai quem deu. Ele viu na tevelisão...
- Televisão – o corrigi.
- Nisso aí – disse ele sorrindo.
Apenas sorri bem amarelo, respirei fundo e fui em direção à saída.
- Oba? – estendeu a mão o garoto com sorriso largo.
“Oba? Em que mundo as pessoas se cumprimentam com um “Oba”?”
Eu virei para trás, par encarar aquela figura cômica e decidi ser um pouco simpático.
- Você já não tinha me cumprimentado com um “Bão” agora pouco? – perguntei.
- É!
- E lá em Potirendaba vocês só sabem se cumprimentar? – perguntei ironicamente.
- É que voice não disse teu nomi – disse ele olhando para os pés.
“Toma esse coice Alan Bortolozzo!”
- Oi – disse estendendo a mão para cumprimentar o garoto - meu nome é Alan – respondi com um sorriso forçado.
Ele, rapidamente retribuindo meu gesto, estendeu sua mãoe apertou a minha como se quisesse quebrar todos os ossos dela. Olhei para trás e fui direto para o mural, na tentativa dele não ver as poucas lágrimas que se formaramcom tamanha força.
- Por favô, cê sabe onde mora o síndinco? Tôa vinte minuto tentando encontrar o apartamento dele.
- O sindico mora no 32. É no terceiro andar, mas acho que hoje ele não está. Creio eu que ele foi viajar por causa do feriado.
- Vixe. Tô mudando hoje para cá e o moço lá da frente disse pra vim falar cumsindinco – disse ele estampando um sorriso.
- E por que o “moço” – disse fazendo o sinal de aspas – pediu?
- Uai, ele pediu pra vim falar cum sindinco pra pegar a chave duquartim das bicicreta
“BI-CI-CRE-TA?” repeti mentalmente.
- Espere só um segundo que vou dar uma verificada para você – disse saindo em direção ao estacionamento.
Procurei o carro do síndico e nada vi. Voltei e fui falar com o garoto que estava todo sorridente.
“Que bobo alegre!”
- É realmente ele não está. Deveria tentar na Segunda-Feira – disse indo em direção a porta – Bom, já estou indo – e virei as costas saindo rapidamente de perto dele.
-Alan, voicegostaria de dar uma vorta no condomínio? – perguntou o garoto com olhar de pedinte.
“Meu Deus, a velha história de fazer amigos novos. Que saco!. Passear? Passear? Vai atrás de arrumar sua mudança e aprender a falar português”.
- Desculpa Alemão, mas tenho que ir pegar a correspondência – eu disse me virando novamente rumo à porta.
- Posso ir com ocê? Queria conhece os condomínio e voicepudiamostrar ele para eu. – disse ele vindo em minha direção.
- E você não tem uma mudança pra fazer?
Ele apenas deu um sorrisinho de lado.
“Não sei o que era pior, ou se era aquele sorriso que ele dava ao completar casa frase ou se fosse a estúpida desculpa que eu tinha falado? “Ir pegar a correspondência” Que desculpa mais idiota”
- Alemão, preciso ir pegar a correspondência e depois irei à casa de um amigo que esta me esperando para jogar “Nintendo 64” com ele.
E nessa hora ele me olhou com uma cara de “Será que eu posso ir junto?”, mas antes que ele dissesse algo, eu me despedi, agora com mais veemência.
- Até mais ai... garoto! Qualquer dia te chamo para jogar com a galera.
- Tchau! – disse ele no centro do hall, com os pés voltados para dentro, cabeça baixa e um olhar que deixaria qualquer pessoa comovida.
Respirei fundo, contei até dez, olhei para os blocos e o pessoal na quadra, mas nada me tirou a necessidade de dar atenção aquele garoto.
“É Alan, todos temos que fazer a nossa “Boa Ação”” – disse a minha mesmo.
Voltei até o hall e vi que o garoto estava parado no mesmo lugar que eu havia deixado.
- Vamos? Vou conseguir a chave do bicicletário pra ti – disse arrancando um sorriso exageradamente largo.
- Bri-ga-domoço! – disse ele chegando ao meu lado.
- Poderia chamar o elevador enquanto leio mais uns recados? – perguntei fazendo aquele garoto que cheirava sabão de barra, ficar longe de mim.
Ele apenas assentiu com a cabeça. Fiquei de costas para ele, fingindo estar lendo, por um longo tempo. Tempo demasiadamente longo para um elevador descer. Virei para o elevador e vi que o garoto não havia apertado o botão.
- Alemão, te pedi para chamar o elevador? – disse rispidamente.
- Sim! – respondeu ele.
- Sim o quê? – perguntei não entendendo nada daquele linguajar.
- Eu entendi, mas é que eu não sei como faço isso? – disse ele abaixando os olhos para mim. Como se fosse um pecado ele não saber mexer no elevador.
Eu fui até a porta e apertei o botão para ele.
- Tá vendo? – disse pressionando o botão até ficar vermelho – É assim que se faz!
Ele concordou abrindo um sorriso. Entramos no elevador e fomos até a minha casa. Minha casa era um local sagrado para minha mãe. Ela não gostava de receber visita da molecada, com medo de sujar, quebrar e consumir as coisas em casa. Mas na sua ausência, a galera sempre chegava, entrava, abria a geladeira, como qualquer outro garoto. Mas aquele garoto ruivo não. Ele ficou parado ao pé da porta, me olhando como se precisasse da minha permissão para entrar.
- Vai ficar parado o dia todo? – perguntei num tom irônico.
- Posso entrar? – perguntou ele com a voz baixa e me olhando de baixo pra cima.
- Lógico moleque! – disse fazendo um sinal de “dã”.
- Com licença – disse ele ainda com a voz baixa.
Ele limpou bem os pés ao entrar no apartamento e veio até meu encontro.
- Vamos fazer o seguinte. Eu vou interfonar para o porteiro e perguntar se ele tem uma cópia do “Regulamento Interno” e uma chave do bicicletário para você – disse olhando para a cozinha antes de eu ver aquele irritante sorriso – Pode sentar no sofá – gritei da cozinha.
Liguei para o porteiro e pedi a ele para ajudar o garoto. Ao fundo, meu tefefone começou a tocar. Tocava, tocava, tocava e ninguém atendia. Eu tentava falar com o porteiro, mas o som do telefone me irritava profundamente.
- Alemão, atende o telefone? – pedi a ele.
Aquele barulho irritante parou.
- ALÔ? ALÔ? ALÔ – gritou o garoto desesperadamente.
Despedi do porteiro e fui até sala ver o que está acontecendo. Lá estava o garoto com o telefone na mão, porém, ele estava atendendo ao contrário. Não pude conter a risada.
“Como é um burro!”
Corri até o telefone e tomei das mãos do ferrugemalí.
- Não mãe, foi um mal entendido. Está tudo bem sim e com a vó? Tá certo! Isso mesmo – conversava com minha mãe enquanto observava o garoto me fiando sem graça.
“Por que ele tinha que me olhar daquela maneira? Como se estivesse prestes a levar uma surra do pai?”
- Então até mais. Um beijo e Te Amo – disse colocando o telefone no gancho.
- Cara, como você é burro! – disse dando uma gargalhada – Você não sabe o éque um telefone?
Ele apenas abaixou a cabeça, fazendo um leve biquinho de choro.
- Que foi agora Burro? – perguntei levantando aquele queixo.
- Eu nunca vi um desses de perto – disse ele ainda sem graça.
- De que roça você vem? – perguntei virando as costas e indo rumo ao chaveiro.
- Sapé – respondeu ele sem respirar..
- O quê? – perguntei sem entender.
- Ocê disse de que roça eu vim. Eu vim du Sapé – disse ele abrindo um sorrisinho de canto.
- Ah tá! – disse apenas concordando.
Queria que aquela situação acabasse logo. Eu tinha raiva daquela pessoa ignorante a minha frente. Tratei de pegar a chave e decidi acabar logo com aquela situação. Se ele não soubesse como apertar do botão do elevador, até poderia deixa-lo ir embora, mas como meu dia de ação de graça não havia terminado resolvi ir com ele até o bicicletário. Descemos em silêncio, mesmo sabendo que ele continuava a sorrir. Tratei de ir pelos atalhos do condomínio, pois não queria que ninguém o visse com aquelas roupas de palhaço.
- Cê sabia que essa árvri chama Farinha Seca? – perguntou ele passando a mão pelo tronco.
- Cê sabia que ocê é estranho? – disse imitando-o, fazendo aquele sorriso irritante desaparecer do seu rosto.
“Tomara que agora ele entenda que NÃO QUERO TER AMIGOS!”
Continuamos a atravessar os atalhos, passando por uma das churrasqueiras onde a galera estava em peso. Senti um gosto amargo na garganta por saber que a maioriatinha dito que ia viajar mas estava festejando ali. Senti um pouco isolado.
- Alan? – chamou o Guilherme.
- Fala moleque? – disse dando aqueles típicos apertos de mão, com vários toques.
- Só faltava você! – disse ele me chamando para o churrasco.
“E por que não me chamou antes?” perguntei furioso a mim mesmo.
Deixava-me muito cabreiro saber que todos estavam lá e ninguém tinha se lembrado de mim. E sentia ainda mais sozinho, porque se eu tivesse o Murilo, nada daquilo estaria acontecendo.
- Quem é aquela coisa enferrujada? – perguntou o Diego vindo me cumprimentar.
- É um morador novo. O cara é um burro – disse todos se entreolharem – Tão burro que nem soube como atender um telefonema.
A galera riu. O resto dela que estava nas churrasqueiras, escondidos ou sem graça por ter mentido para mim, vieram ao meu encontro.
- Quem é aquele caipira? – perguntou o Danilo medindo as vestes dele de baixo para cima.
- “Aquilo” lá será o nosso novo mascote – disse olhando aquele garoto bobo.
“Chamávamos de mascote, todos os garotos novos que entravam na turma. O papel de mascote era o mais humilhante possível. Pois mascote não podia opinar, mascote não podia escolher, mascote era sempre o ultimo a ser escolhido, mascote buscava as bolas perdidas, mascotes eram aqueles que ficavam sozinhos nas brincadeiras. Ou seja, mascote era para ser zoado e pronto. E os mascotes só era substituídos quando um novo garoto entrava na turma.”
- De todos os nossos mascotes, com certeza, esse será o melhor de todos! – disse num tom ameaçador.
- Ei? – gritei chamando atenção do garoto – Você mesmo Burro? – disse fazendo todos gargalharem.
Esperamos até que ele chegasse mais perto.
- Essa é a minha turma. Ou seja, a nossa turma agora. Quer dizer, você quer fazer parte dela Burro? – perguntei fazendo-o corar.
Ele balançou a cabeça levemente e estampou aquele odioso sorriso.
- Então, para entrar na minha turma – eu disse num tom superior – todo precisam passar por um teste.
Todos riram e começaram a gritar:
- TESTE, TESTE, TESTE, TESTE, TESTE – gritava todos.
- Você aceita fazer o “Teste”? – perguntei.
- Aceito! – disse ele sorrindo.
- TESTE, TESTE, TESTE, ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊE – comemorou todos.
- Eu te darei todos os motivos para você parar de sorrir assim, sabia? – disse dando um tapinha em seu rosto.
Ele, como de costumeiro, abaixara a cabeça. Assim como um cachorro abaixa a cabeça ao levar uma bronca.
- Isso mesmo! – eu disse quando ele mudou de bobo alegre para tristonho.
- VAMOS GALERA? – gritei chamando atenção de todos
- TESTE, TESTE, TESTE, TESTE – continuavam a gritar.