Capítulo 09
Meu melhor castigo.
Mal chegamos ao hospital e o guri fora levado às pressas para atendimento. Temiam que ele pudesse entrar em estado de choque anafilático a qualquer momento. E, entrar em choque, além de ser perigoso, poderia render uma noite inteira dormindo no hospital. Xandy, como era chamado o pai do Guilherme, apareceu após uma hora inteira dentro do consultório. Ele era um rapaz 27 anos. Muito jovem para ser pai, já que o Guilherme tinha apenas 14 anos. Era treinador da categoria de base do time de futebol do Rio Preto. De descendência turca, tinha pele clara, cabelos, barba negra e olhos verdes claros. Mas aquela altura, aparentava além de mais velho, muito cansaço.
- Ele vai ficar bem! – disse o Xandy sem esboçar qualquer sorriso – Deram uns antialérgicos e agora ele ficará bem. Só queria saber o que leva um guri de apenas 12 anos a subir naquela arvore?
“12 anos tem o Burro?” – pensei atônito.
- Foi culpa minha Xandy – disse olhando para os meus pés.
- Sua? – perguntou ele espantado e agora voltando toda sua atenção para mim.
- Na verdade, não é tão minha assim! Eu também passei por isso, lógico, sem marimbondos, mas eu passei.
- Do que está falando? – perguntou ele balançando a cabeça sem entender.
- Temos um acordo nosso...
- Nosso quem? – cortou ele.
- Meu, do King e do resto da turma...
- King, o filho do sargento, aquele rapaz de 18 anos que capotou o carro no rio e quase te matou? – cortou ele novamente, corando a face e aparentando cada vez mais nervoso.
Por mais que o King tivesse ido embora há dois meses, eu ainda sentia como se ele fizesse parte da minha vida. Deixava-me triste e sempre que suas lembranças vinham, eu precisava reunir todas as forças para não chorar.
- Alan? – me chamou o Xandy com um estalo dos dedos – além do King, quem mais está incluído nesse tal “teste”
- Eu e toda a molecada – disse desviando meus olhos daqueles olhos verdes.
- Isso inclui o Guilherme? – perguntou ele puxando meu queixo para encará-lo.
Retribui o olhar por uns segundos, sem responder nada. Apenas fitei-o balançando a cabeça negativamente e vi que as têmporas pulsavam freneticamente com a nossa conversa.
- O Guilherme com aquela mania de judiar das pessoas – disse ele após longos minutos analisando os dedos das mãos.
- Com todo respeito, mas o Guilherme não participou dessa vez! – disse arrancando um sorriso de deboche.
- Dessa vez Alan? – continuou a sorrir ironicamente.
“Sabe aquele ditado Alan “Em vez de ajudar, piora”? – pensei comigo mesmo – Deveria calar a boca de vez!”
Minutos após outro longo silêncio, entrou uma mulher desesperada.
- CADÊ MEU FILHO? – gritou ela pra recepcionista.
Engoli seco e senti meu estômago pesado. A recepcionista segurara a mão da moça que aparentava estar em choque e a fez sentar. Segundos depois, entrou o meu irmão pela porta de emergência.
“Puta que pariu. Agra fodeu!” – pensei abaixando minha cabeça na esperança que ele não pudesse me ver.
“Sabe leitores, aquela sensação eu temos quando nada mais poderia piorar, aí vem algo que menos esperamos e nos surpreende? Era exatamente o que estava para acontecer!”
Meu irmão parou ao lado daquela senhora que estava chorando muito. Deveria ser a mãe do garoto. A porta se abrira novamente e, por ela, passaram meus pais.
“Pronto. É o fim do mundo!” – pensei comigo mesmo – Pelo menos o lado bom de estar no hospital é que após a minha surra, serei medicado!”
A sala de espera da emergência daquele hospital era muito grande. Se não a maior de São José do Rio Preto. Só a sala de espera deveria ser, no mínimo, do tamanho de uma quadra poliesportiva. Tamanho suficiente para me esconder dos meus pais e do Arthur. Para os meus pais que eram separados, estarem juntos, era porque os dois deveriam estar muito, mais muito bravos comigo. Meu rosto e minhas orelhas começaram a pegar fogo.
- Seus pais chegaram – disse o Xandy abrindo um sorriso de alívio.
- Que bom! - ironizei.
O Xandy estava aliviado por estar indo embora, já eu, prestes a vomitar ao pensar ser pendurado na forca.
- Arthur? – chamou o Xandy.
“Valeu seu filha da mãe! Vai com Deus pra casa.” – gritei desesperadamente dentro de mim – Por que esse imbecil não fica quieto? Logo o meu irmão?”
- Fala Xandy – disse meu irmão quando se juntou a nós – Como está o menino?- perguntou ele, sentando ao lado do rapaz, fingindo nem me ver.
- Bem ele não está, quer dizer, ele está estável. Quase entrou em choque anafilático.
- Puts, além de tudo ele era alérgico? – perguntou meu irmão espantado.
- Arthur, mesmo uma pessoa sem alergia a picada de marimbondos, ficaria muito mal após 87 picadas.
- OI-TEN-TA-E-SE-TE? – gritou simultaneamente, espantados, eu e meu irmão.
- Sim, tudo isso mesmo! É muita sorte ele não ter morrido.
Agora sim eu entendia o que estava acontecendo. Agora sim eu tinha entendido quão ruim eu era.
“Por que eu não contentei apenas em vê-lo subir na árvore?”
Meus pais vinham ao meu encontro com semblante sério. Fazia anos que eu não via os dois juntos para me castigar. Primeiro eles cumprimentaram o Xandy, até mesmo para poder liberá-lo e, após a sua saída, minha mãe veio até mim e me abraçou.
- Você está bem meu querido? – perguntou ela com olhos marejados.
“O QUÊ? SERÁ QUE EU JÁ MORRI E NÃO PERCEBI?” – disse a mim mesmo.
Eu esperava por uma chuva de humilhações e pancas, mas não. Olhei para o Arthur que estava com a maior cara de bosta do mundo.
“Sim, ele quer que eu confesse o que fiz!”
Eles sentaram e me explicaram tudo o que havia acontecido. Ao fundo, a mãe do guri entrava na sala onde ele possivelmente estaria. Meus pais contaram uma versão toda distorcida dos fatos. Disseram o que Burro subiu até a árvore e, na hora de descer, esbarrou na caixa de marimbondos. Disse ainda mais. Disse que eu tentei impedi-lo, mas que ele fora teimoso e quis subir. Fim!
- Foi isso que ele disse? – perguntei atônito.
- Foi meu querido! Não quero que fique assustado e nem preocupado. Apenas viemos prestar solidariedade aos novos vizinhos. Fico feliz por você estar aqui, ajudando ele.
“Caralho, agora entendi porque eu o chamo de burro!”
Ficamos esperando por alguma notícia durante umas 02 horas, até a mãe do garoto reaparecer pela porta.
- Lá está ela – disse o Arthur fazendo todos acordarem.
Esperamos até ela chegar perto de nós. Tinha cabelos bem armados, vestido longo, mas surrado, o que aparentava não ter tido tempo de se trocar para vir ao hospital. Minha mãe se prontificou e foi logo ao seu amparo. Pelo semblante das duas, dava para notar que estava tudo bem. Foi ai que eu pude respirar aliviado.
- Você é o Alan? – perguntou ela me fazendo sair do tranze.
- Sou! – respondi assustado.
- Ele me falou de você. Disse que você tentou impedi-lo de subir – disse ela vindo me dar um abraço – Meu filho sempre foi de subir em árvores e, vindo pra cidade, não achei que ele iria fazer isso tão cedo. Enfim, ele acordou e disse que quer vê-lo.
- Posso ir junto? – perguntou o Arthur.
- Sim querido! É o quarto 202, o último à direita – disse ela dando um sorrisinho de conforto.
Confirmei que tinha entendido e esperei pelo meu irmão.
- Vem Alan – disse ele pegando no meu ombro e me levando até o quarto.
Ele me empurrava a passos-largos sentindo ao corredor que estava com as luzes meio apagadas. Acredito que era para os pacientes dormirem.
- Como você consegue? – perguntou ele sem olhar nos meus olhos.
- Do que você está falando? – perguntei engolindo seco.
- Não sei o que é pior, o que você fez ou tentar fingir que não sabe do que estou falando.
- A única coisa que eu sei é que você está quase arrancando minhas panturrilhas.
- Como você consegue mentir dessa maneira?
- Achei que estava me saindo bem? – disse atônito.
- Cara, você poderia muito bem ter matado ele e ainda por cima sai como o herói da história?
- E daí?
Ele ficou tão furioso que sentou o tapa na minha nuca.
- Aí seu veado, idiota, jumento – disse esfregando minha nuca que ardia.
- Que foi? Tá achando que você vai sair na melhor? – disse ele me agarrando pelos cabelos e me levando até o chão.
- Me solta seu idiota – disse segurando seu punho pesado.
- Ei, ei, ei, EI? – gritou um dos enfermeiros – Que está acontecendo aqui?
- Levanta seu pivete – disse ele me levantando pelo couro cabeludo.
Vendo aquela cena, o enfermeiro veio correndo até nós.
- O que está acontecendo aqui? – disse ele entredentes – quer que eu chame a segurança?
- Não precisa, não! – disse o Arthur – eu e meu irmão já terminamos nossa discussão.
- Você chama essa palhaçada de “discussão”?– perguntou o enfermeiro ficando vermelho.
- Me desculpe? – disse meu irmão me empurrando rumo ao quarto.
Continuamos a passos largos até o quarto 202, quando entrei, levei o maior susto da minha vida. O garoto estava completamente inchado pelas picadas dos marimbondos. Chegava a lembrar até o Slot do filme “Os Goonies”.
- Oi – foi à única palavra que consegui pronunciar.
- Oi – disse ele forçando um sorriso.
- Olá, sou o irmão dele, Arthur – disse ele cumprimentando o Burro que estendeu a mão gordinha, inchada pelas picadas.
Ele apenas sorriu. No pé da cama estava a ficha com o histórico médico dele. Bem ao lado esquerdo estava estampado seu nome e sobrenome.
“Biesso? – franzi a testa quando me perguntei sobre aquele sobrenome – Não me é estranho!”.
- Que foi pirralho? – perguntou meu irmão tomando a ficha da minha mão.
“Educado como um rinoceronte!” – disse a mim mesmo.
- Biesso? – perguntou meu irmão espantado – você é italiano, então?
- Sô! – disse ele forçando novamente o sorriso.
- Sobrenome bonito. Também somos italianos, somos da família Bortolozzo – disse meu irmão estufando o peito.
“Meu irmão nem sabe da árvore genealógica da família para se sentir tanto, mas há algo que ele me diz quando jogamos conversa fora: “Um dia, o nome Bortolozzo será muito conhecido”.
Pela careta que o Burro fez, deveria não estar entendendo nada do que meu irmão estava dizendo.
- Bunito... também... o nome... querdizê, sobrenome – disse ele fazendo forças ao falar.
- Meu irmão aqui – disse meu irmão me empurrando para eu ficar mais perto do rapaz – meu irmão aqui quer lhe pedir desculpas.
- EU O QUÊ? – perguntei ficando roxo de vergonha, mas antes que pudesse dizer outra palavra, meu irmão logo me estapeou na nuca.
O garoto estava assustado.
- Vamos Alan, todos aqui sabemos que você errou – disse ele apertando meu ombro.
- Tá, tá, tá. Eu peço desculpas – disse me virando para o Slot – Me desculpa Burro e blá, blá, blá... – disse me virando, mas logo recebi mais um tapa na nuca.
- Nossa, por que você não bate agora nas minhas costas? Porque eu já estou com a nuca anestesiada.
O garoto agora esboçava um leve, sei lá, sorriso. Até tentei retribuir, mas acabei levando outro tapa na nuca.
- Vamos Alan, você só sai desse quarto depois de pedir desculpa – disse ele apontando para o guri – E que sejam sinceras.
- Olha Bur...
- Alan? – interrompeu meu irmão.
- Eu ia dizer “Biesso”, jumento – menti.
- Alan, você quer mesmo que eu use a força contra você? – perguntou ele enrugando a testa.
Enrugar a testa não era um bom sinal do Arthur. Virei-me novamente para o garoto e senti que precisava realmente me livrar daquele peso que estava no meu estômago. Fechei os olhos, senti o ar sair e entrar lentamente pelos pulmões e comecei a falar:
- Olha Biesso, eu, hoje, fui um ignorante, um moleque, um irresponsável e invejei você por conseguir algo que só eu e mais uma pessoa havia conseguido...
- Fale mais alto – cortou meu irmão.
Ele tinha o poder de me irritar e agora ele estava conseguindo veemente.
- Biesso, me desculpe por tudo, eu fui um idiota e prometo jamais fazer algo de tamanha irresponsabilidade na minha vida.
“Pela cara de espanto, tinha certeza que ele não estava entendendo bulhufas do que eu queria dizer!”
- ALAN? – me chamou uma voz que roubou todo calor do meu corpo.
Fiz uma força gigantesca para me virar pra ver quem era.
“Puta que pariu! – funguei – Não a minha mãe?” – disse a mim mesmo.
Parados a porta estavaà mãe do Biesso, meu pai e, a pessoa mais mortal da face da Terra, minha mãe.
- Você quer dizer que é sua culpa ele estar aqui? – perguntou ela com as veias do pescoço saltadas.
“Minha mãe era uma verdadeira dama. Mais pra frente vocês conhecerão um pouco mais sobre ela, mas o que precisam saber é a capacidade de ela me fazer tremer apenas com sua voz e o seu olhar. Aquele olhar de quem poderia me esmagar como um inseto a qualquer momento. Aquela voz serena, mas aos meus olhos e os olhos do meu irmão, já significava quão encrencado eu estava.”
- Alan foi você quem fez isso? Responda a sua mãe – ordenou o meu pai.
- Foi pai! – respondi sentindo o choro na garganta.
- E você mentiu pra nós, por quê? – perguntou a minha mãe, com a voz ainda mais baixa.
- Eu não queria desmentir o Biesso mãe – disse agora começando a chorar.
- É coisa de garotos Dona – disse a mãe do Biesso.
- Olha Neusa, eu eduquei meus filhos para jamais fazer algo do gênero e muito menos a mentir.
- Mais tia, eu quis subi na arvri – disse o Burro.
- Tá vendo Dona, o meu filho também é arteiro, nunca para quieto – disse ela tentando tirar os olhos de águia da minha mãe de cima de mim.
Saí de perto da minha mãe e do meu irmão e fui até o pé da cama, longe do ouvido de todos.
- Olha cara, me desculpa de verdade – sussurrei pra ele.
- Tá tudo beim Alan! – disse ele dando um sorriso.
- É verdade tudo o que foi dito aqui Alan? – perguntou a minha mãe friamente.
- Sim! – respondi fechando os olhos para poder ouvir a sentença.
- A dona Neusa tem uns negócios pendentes para resolver na cidade dela. Enquanto isso, o filho dela ficará em casa, de castigo, junto com você.
Soltei o ar aliviado por não ser nada pior.
- Bem feito pivete – cochichou meu irmão ao pé do meu ouvido.
- E sob a supervisão do Arthur – completou-a.
- O QUÊ? – gritou espantando ele – EU NÃO FIZ NADA.
- Você apenas ficará de olho nos dois enquanto eu tiver fora.
- O QUÊ? O DIA TODO?
- Arthur, se continuar a gritar assim eu juro que extraio todos seus dentes na chinelada – disse ela sem mover um único musculo.
- Mas mãe, tem futebol à semana toda – disse ele chegando perto dela.
- Então, estamos combinados? – perguntou ela olhando dele para mim.
- Mas mãe? – disse ele quase chorando.
Eu apenas sorri pra ele que quase me furou com os olhos.