Eu lembrava da primeira vez que vi o Daniel.
Garotinho pequeno e delicado, usando aquelas roupas enormes.
Eu estava indo pro trabalho de manhã e o Daniel estava indo ao mercado. Chovia um pouco e um garoto de guarda-chuva o empurrou em uma poça d'água e o chamou de "Puto!"
Fiquei no carro olhando-o se levantar e continuar a caminhar como se nada tivesse acontecido. A água agora corria por suas roupas, mas ele não deu importância. Tinha um sorriso discreto no rosto de "Não foi nada demais!", mas notei o olhar magoado dele e a sua vontade de chorar por aquela humilhação.
"Guri estranho!", pensei comigo mesmo e parti para o trabalho.
Não dei mais importância àquilo e isso não me incomodou mais. Eu era um idiota egoísta do caralho! Assim como todos que sabiam daquilo e não faziam nada pra ajudar.
Sempre via o Daniel na rua e, um dia quando fui ao mercado, tropecei nele sem querer.
Ele derrubou as latas de cerveja que carregava, pro seu pai, e as juntou rapidamente pedindo desculpas a mim. Fiquei olhando-o de cima, reparando no cabelo bonito que ele tinha.
Murmurou um "Boa tarde, senhor!" e sumiu da minha vista.
Depois daquele dia ele começou a me cumprimentar sempre com Bons dias, tardes e noites, me chamando sempre de "Senhor Lopes!" Não era raridade as pessoas saberem quem eu era, mas aquele guri me intrigou demais!
Quis saber quem ele era, inconscientemente reparando nele mas não notando a sua real existência. Ele, pra mim, me despertava uma leve curiosidade... nada demais.
Um dia eu estava buscando o jornal e o Daniel estava passando na rua. Perguntei discretamente ao vizinho quem aquele garoto era e ele me contou tudo sobre ele, inclusive seu nome que eu ainda não sabia.
A história triste dele me comoveu, mas me perguntei "O que eu poderia fazer?" Não fiz nada, porque pais deveriam proteger suas crias. O vizinho, que já havia pagado pra foder com o Dani, não se incomodava com o fato, porque, de acordo com ele, "O guri é muito gostoso e fode gostoso!"
Fui egoísta e pensando nisso enquanto via o Daniel desmaiado na minha frente me encheu de remorso. Se eu tivesse intervido mais cedo, será que eu evitaria aquela crise destruidora dele?
Eu jamais saberia.
Jamais!
O quarto estava destruído, com pedaços de quadros por todo lado. O corpo do Dani desmaiado no meio daquela bagunça.
Meu coração chorava e meus olhos ardiam com as lágrimas.
Eu não sabia o que era pior naquela situação toda. Se era o Daniel desmaiado no chão ou se era eu, tão horrorizado, que fiquei alguns intantes petrificado no mesmo lugar antes de me mover novamente.
Caminhei devagar na direção dele e meu coração pareceu rachar quando vi aquela expressão no rosto dele. Olheiras enormes, face contorcida em dor. Inconsciente. Perdido no próprio tormento.
Soltei um gemido de alívio quando o peguei no colo e o aninhei em meu peito. Sua respiração estava lenta e pesada. Ele não dormia fazia três dias e duvidava que acordasse em menos de vinte horas.
Seu cheiro era o mais natural possível e era um aroma tão agradável que me permeti abraçá-lo e chorar no seu ombro.
-Me perdoe. -choraminguei baixinho, nos balançando devagar.
Segurei um soluço na garganta e o tirei daquele quarto. Eu mesmo não aguentava ficar ali vendo partes daquelas pinturas macabras me encarando.
O pai do Dani era um monstro! O pior monstro que existe! Abusou tanto do pobre e indefeso filho que o machucou de uma forma incurável!
A raiva subiu lentamente a minha cabeça.
Ainda conseguia ouvir os risos infantis dele e as suas frases provando pra mim o quão traumatisado ele estava.
-Me perdoe, por favor. -choraminguei novamente, beijando delicadamente seu rosto. -Eu jamais quis que isso acontecesse.
Fechei a suíte e fui até o quarto de hóspedes revivendo mentalmente aquelas cenas. Estremici dos pés a cabeça. Que dia horrível! Aqueles últimos dias todos foram tensos!
Depositei delicadamente o Dani na cama, o cobri com um lençol e liguei o ar-condicionado para refrescar o quarto.
Era um dia particularmente quente e o sol estava no seu ápice... o Dani com certeza iria adorar ir a praia se não fosse esses últimos acontecimentos.
Pensar isso me deixou mais triste e novamente quis chorar, mas não o fiz. Controlei as lágrimas.
Desliguei as luzes e o quarto se jogou em uma escuridão acolhedora. Poucas luzes entravam pelas frestas da janela. Retirei as roupas, ficando só de cueca como o Dani, e ditei ao seu lado.
Me aproximei dele bem devagar e me cobri com o mesmo lencol dele. Fiquei ali, temeroso demais em abraçá-lo ou fazer qualquer outro movimento. E se ele acordasse? Ainda seria seu alter-ego traumatisado ou seria o meu Dani? Eu não sabia! Não podia arriscar.
Fiquei perto dele, mas o dei espaço. Se acontecesse alguma coisa... se ele tivesse pesadelos ou acordasse de repente, eu saberia. Estaria ali para ajudar. Para protegê-lo nem que isso custasse minha vida!
Fiquei minutos escutando a respiração dele, tranquila e calma, então notei que ele dormia em paz. Percebi o quão cansado e exausto eu estava, pois eu também não dormia direito.
Fechei os olhos e deixei o aroma do Dani me envolver. Um pesadelo me envolveu.
Sonhei que estava amarrado em uma cadeira, incapaz de gritar, vendo o Dani ser violentado pelo seu pai.
...
Acordei de sobressalto, sentindo o meu corpo todo em alerta. O quarto estava mergulhado na penumbra e isso significava que já era noite. O único som com que eu ouvia era os leves ruídos do ar-condicionado, deixando o quarto bem friozinho.
Virei a cabeça e meu coração pulou de susto. Quase gritei de pânico quando vi que o Dani não estava na cama.
-Dani! -gritei, sentindo minha voz mais rouca. -Dani! Dani!
Aonde ele estava?!
O sonho veio como um tapa na minha cara. Uma vontade de chorar de desespero invadiu meu coração. Aonde estava o Daniel? O meu Daniel?
Será que havia fugido?
Ou pior... se suicidado! Senti vontade de vomitar. Eu jamais iria me perdoar! Eu não iria conseguir viver sem ele!
-Daniel?! -gritei, levantando rapidamente da cama.
Quando ia saindo do quarto para procurar, ouvi um som no banheiro.
Um barulho bem baixinho, mas não passou despercebido.
Só podia ser ele no banheiro.
Por um lado fiquei aliviado de saber que ele estava ali, perto de mim, mas por outro lado...
Meu coração acelerou. Quem estaria no controle? O Dani ou seu trauma? Eu encontraria a criança infantil ou o meu Dani?
Caminhei até o banheiro e abri a porta lentamente.
Ela arrastou-se no chao e revelou aos poucos e interior do banheiro que estava iluminado apenas pela lâmpada acoplada no armário do espelho.
-Senhor Lopes? -a voz do Dani estava sonolenta e um pouco rouca.
-Dani? -meu coração parecia que ia sair pela boca.
-Tô fazendo o número um. -ele revelou, bocejando como um gatinho. -Tava apertado!
Ele sorriu um pouco.
-O senhor me acordou. Roncou tão alto que o vizinho veio reclamar!
Ele riu baixinho da própria piada.
Vi, completamente petrificado, ele se ajeitar, puxar a descarga e lavar as mãos.
O meu Dani estava ali. O guri que eu amava... sorrindo pra mim. Dizendo pelos seus incríveis olhos esverdeados que me perdoava.
Uma vontade enorme de gritar me invadiu. Recebi uma carga enorme de alívio que fez meus joelhos quase perderem as forças.
Corri até ele e o abracei com força, enterrando meu rosto no seu pescoço e enlaçando meus braços na sua cintura.
Sentir a pele dele com a minha parecia ser um sonho. Todo meu corpo relaxou ao tê-lo novamente pra mim. Senti-me.queimar de felicidade por dentro e por fora.
-Eu fiquei tão preocupado... -solucei. -Eu amo tanto você! Dani... me perdoe por tudo! Eu amo você...
Minhas lágrimas caiam ao lembrar de todos os acontecimentos. Eu estava fragilizado e não me importava de demonstrar isso a ele. Fiquei com tanto medo de perdê-lo... com tanto medo de não poder mais amá-lo. Sentia meu corpo chorar de felicidade ao ver que ele estava comigo novamente.
-Está tudo bem... Estou bem. -ele sussurrou, me abraçando também, com força. Sua voz era tão linda e cheia de paixão. -Me desculpe por aquilo tudo.
Ele estava referindo aos quadros e ao seu surto.
O abracei mais forte e solucei contra seu pescoço. Nada daquilo importava mais. Eu não imaginava mais ficar sem ele. Minha vida sem ele era como viver sem perspectivas... sem sonhos.
-Não me deixe nunca! -implorei. -Nunca! Não vou suportar ficar sem você... -mordi o lábio pra conter um gemido.
-Não vou a lugar algum. Nunca mais. Eu sou seu!
Ele fazia carinhos no meu pescoço me beijava naquela região de vez em quando.
Não dissemos mais nada. Ficamos em silêncio, ouvindo a respiração um do outro. Se eu morresse naquele mesmo instante, morreria como a pessoa mais feliz desse mundo.
Fomos abraçados até a cama e deitamos abraçados. Ele subiu em cima de mim e enterrou o rosto no meu pescoço. Eu enterrei o rosto no pescoço dele e assim dormimos.
Chorei de felicidade até pegar no sono.
Finalmente estávamos juntos de novo... e dessa vez seria pra sempre!