Capítulo 04
“Irmãos de sangue”.
Ele pegou a avenida que fica às margens do rio Preto. O rio que dá o nome a cidade. Era uma avenida extensa e larga. Naquela época, o rio era muito mal cuidado. Tão mal cuidado que lembrava até um brejo em meio a um matagal. Sem falar que todo o esgoto da cidade era despejado naquele rio. Não havia semáforos nos cruzamentos, não havia faixas de sinalização, não havia muretas de contenção, não havia iluminação adequada. Aquele é o local perfeito para dois garotos, sem habilitação, passar sem ser vistos.
- E como foi lá? – perguntei “quebrando gelo”.
- Já te disse, nós transamos, ela cheirou um monte de pó, tomamos banho e, quando fomos no trocar, ela caiu no chão, começou a tremer e babar. Entãonós saímos correndo dali – disse ele sem paciência.
- Isso eu já sei Murilo! Quero saber da transa? – disse me segurando na alça da porta.
Ele me encarou por um momento, talvez achando que eu tivesse o zombando.
- Ah cara, ela chegou, já abaixou minhas calças e começou a “pagar” boquete – disse ele dando uma pegada na mala – como eu estava cheio de tesão, pedi para que ela parasse e colocasse a camisinha porque eu já estava quase gozando.
- Nossa, que rápido Murilo! – disse dando uma longa gargalhada.
- Cala a boca! Você se gaba, porque faz isso há anos. Hoje foi minha primeira vez, oras – disse ele ficando carrancudo.
“Ele me encantava com seus gestos e mania. Desde daqueles mais básicos como: um sorriso, um cafuné, uma piada besta ou sua vontade de me ensinar matemática. Aos mais brutos, como: quando ele ficava irritado, bravejava com os outros, fazia suas excepcionais amostras de força.”
- Ai, dei umas bombadas, de quatro, e gozei. Você acha mano, ela é muito sacana. Ela sabe que de quatro a gente goza rápido – disse ele balançando a cabeça de indignação – Muito cuzona!
“Você tem ejaculação precoce e a culpa é da puta?” – pensei.
- É mesmo uma pena! – disse segurando com todas as forças para não rir – Mas que foi rápido foi – disse rindo por dentro.
- Cala a boca Alan!
- Ah meu, contando o tempo que você ficou dentro do quarto...
- Uns 20 minutos – interrompeu ele.
- Isso! Nesses 20 minutos, você: transou, tomou banho, se enxugou, colocou a roupa, a viugarota ter uma overdose. Então mano, sua transa não durou nem 02 minutos – disse caindo na gargalhada.
- Há, há, há... Muito engraçado Alan – ironizou.
Ele começou acelerar o carro, sentido a uma curva.
- Murilo, sei que você não quer ser pego pela polícia, mas nos matar? – disse fazendo uma força absurda para meu corpo não prensar na porta – Toda nossa alegria de hoje seria em vão.
- Aqui é piloto, Alan! – disse ele dando aquela bagunçada nos meus cabelos.
Ao final da curva, perto de uma saída que dava para os bairros, apareceu um cão negro que parou no meio da avenida ao ver o carro vindo em sua direção. Engoli seco quando o Murilo não freara e tentou desviar indo em direção ao rio. Em 05 segundos, o carro bateu no que o “popular” chama de “tartaruga”, capotou por umas vezes, caindo de ponta cabeça dentro do rio. Apenas 05 segundos fora suficiente para nos colocar entre a vida e a morte. O carro bateu pelo lado do Murilo, trincando a janela de vidro.
- ALAN? – gritou ele me chacoalhando.
Eu estava zonzo da cerveja e fiz força para poder me concentrar no que estava acontecendo. O carro ainda estava de ponta cabeça. A água não estava entrando. Funguei aliviado por não ter acontecido nada. Um estalo fez com que as luzes do carro apagarem. O motor desligou. Ficamos em silêncio para entender o que estava acontecendo. Mas para meu pânico, ouvia o som da água entrando pelo ar condicionado.
“Agora ferrou!”
- Meu cinto tá duro para soltar – disse ele urrando.
Sem pensar, apertei o meu sinto e consegui me soltar facilmente. Cai de cabeça no teto do carro que já estava com um pouco de água e tateei até chegar ao seu cinto. Apertei, apertei, apertei e nada de soltar.
- ESTÁ QUEBRADO! – gritei sentindo a água fria sobre minhas pernas.
Se continuasse a encher assim, afogaria o Murilo em menos 01 minuto.
- O CARRO É ZERO. NÃO PODE ESTAR EMPERRADO – bufou ele.
Apertei freneticamente o botão que não dava sinais de funcionamento.
- ALAN? ALAN? ALAN? – gritou ele me fazendo parar – A ÁGUA ESTÁ SUBINDO RÁPIDO. PEGA O COOLER E QUEBRE O VIDRO.
Coloquei a mão na sua cabeça e a senti molhada.
- MAS A Á GUA TODA VAI ENTRAR.
- ELA VAI ENTRAR DE QUALQUER JEITO E NÃO QUERO MORRER AQUI– disse ele sem respirar – AGORA, PRESTE BEM ATENÇÃO. QUEBRE O VIDRO E, COM UM DOS CACOS, CORTE O CINTO.
- MAS NÃO VAI DAR TEMPO, PORRA?!
- EU SEI QUE NÃO! POR ISSO, RESPIRE FUNDO E MANDA VER – disse ele passando a mão no meu ombro – VAI LOGO COM ISSO PORRA! VAI DA CERTO.
Sem pensar, bati com todas as forças o fundo do cooler contra a janela, fazendo o vidro estourar, inundando o carro em poucos segundos. O plano dele dera errado. Os vidros espatifaram e os cacos se perderam junto à água que entrara no carro. O carro afundava pelo motor, inclinando a parte traseira, dificultando ainda mais meu equilíbrio. Agarrei o banco do passageiro e subi até parte onde ainda tinha ar. Tentei controlar meu fôlego, mas o desespero era tanto que não contive o choro. Choro por saber que não tinha mais o que fazer para salvar o Murilo. Choro de alguém na escuridão que estava prestes a morrer dentro daquele carro. Choro de alguém que nunca mais ia ver sua mãe e seu irmão. Choro que fora contigo logo que senti o mão forte do Murilo agarrando meu tornozelo.
“Murilo? Eu tenho que fazer algo!”
Respirei fundo e desci até a parte da frente do carro, onde procurava cegamente pelos malditos cacos de vidro. Vibrei de alegria quando meus dedos se cortaram por um objeto afiado e pontiagudo. Agarrei o braço do Murilo e fui rasgando a primeira alça que encontrei. Abracei aquele corpo pesado e empurrei com todas as minhas forças para cima, mas algo ainda o impedia de sair. Faltava-me ar, assim como faltava para ele. Agarrei a sua cabeça, colei minha boca a dele e soltei todo ar que estava nos meus pulmões. Nadei até a bolha de ar, respirei fundo e desci, procurando exatamente o ponto que o prendia. Peguei o caco de vidro e cortei com toda a força o sinto de segurança. Senti suas pernas debaterem. Ele estava livre. Subi até a parte do carro que ainda havia ar e o encontrei ofegante. Com um estrondo seco, senti o carro bater no fundo do rio.
- Obrigado Alan! Obrigado Alan – dizia ele chorando.
Meus ouvidos estavam tampados pela pressão d’água.
- Murilo, o que vem agora? – perguntei sentindo que o carro estava afundando.
- Espera um minuto? – disse ele afundando.
- Murilo? Cadê você Murilo? – perguntei em vão.
Esperei por uns segundos, enquanto a água ocupava cada espaço de ar que ainda havia. Meus ouvidos estavam submersos e logo tive que ficar apenas com a boca para fora. Meu coração estava aceleradíssimo. O Murilo me agarrou pelas pernas e me puxou com força para baixo. Meu corpo passara com dificuldade pelos bancos do motorista e do passageiro, quando dei por mim, já estava em cima do volante. Mais uma vez ele me puxou, agora em direção à janela quebrada. Achei um ponto de apoio e impulsionei meu corpo rumo à porta para ajuda-lo. O meu pulmão pedia por ar.
Enquanto atravessava a janela, senti novamente o Murilo me puxar com força, o que fez meu braço enroscar na porta, rasgando a parte interna do meu bíceps. Meu braço começou a arder demais, mas nada era comparado com a vontade de respirar. Ele continuava a me puxar e não parou até chegarmos à superfície. Respirei o máximo de ar que conseguia quando minha cabeça ficou para fora da água.
- Você tá bem? – perguntou ele quando viu que eu tinha saído.
- Tô sim! – disse respirando desesperadamente aquele cheiro forte de esgoto.
O Murilo agarrara meu braço novamente e nadou até a margem. Saímos andando em direção a um poste.
- VOCÊS ESTÃO BEM? – perguntou um rapaz que corria em nossa direção – EU VI O ACIDENTE E FIQUEI DESESPERADO POR NÃO SABER ONDE VOCÊS ESTAVAM?
- PRECISAM DE AJUDA? TEM MAIS ALGUÉM LÁ? – gritou o rapaz.
- SEI LÁ DO QUE PRECISMOS, MAS ESTAMOS BEM! NINGUÉM SE MACHUCOU – respondeu o Murilo.
Minha visão começou a escurecer, minhas pernas ficaram fracas e cai de quatro no chão, sentindo o sangue quente escorrer pelo meu braço gelado.
- ALAN? – perguntou espantado o Murilo vindo ao meu encontro.
- Meu braço arde – disse quase sem voz.
- MEU SANTO DEUS! UMA AMBULÃNCIA? ALGUÉM CHAME UMA AMBULÂNCIA? PELO AMOR DE DEUS? – gritou o Murilo me deitando e me virando de barriga para cima.
Ele rasgara a minha camiseta e, com ela, apertou com toda força o meu braço.
- Murilo... – disse quase sussurrando – dói demais.
- Você ter um corte profundo no braço. Deve ter pegado a artéria braquial – disse ele fazendo força para conter o choro.
- Isso é sério, né? – perguntei vendo seu desespero.
Ele não respondeu.
- PELO AMOR DE DEUS, UMA AMBULÂNCIA? – gritou ele com choro forte.
- Eu vou morrer, não é?
- Nunca. Não depois de você ter me salvado! – disse ele passando a mão no meu rosto.
Fechei os olhos para descansar.
- Não feche os olhos, pelo amor de Deus! – pediu ele chorando cada vez mais forte.
- Está frio – disse olhando para cima e sorri ao ver a estrela que a minha avó me dera.
- ALGUÉM ME TRAGA ALGUMA COISA PRA COBRI-LO – gritou ele em meio ao choro.
A última que eu me lembro daquele local, fora de uma mulher trazendo umas toalhas que usou para me aquecer. As lembranças a seguir, fora dos flashes dentro do hospital, da mesa de cirurgia e de vozes que não reconhecia. Lembro-me de acordar com a cabeça pesada, com um dos braços enfaixado e, o outro, dolorido por estar amarrado a cama. Demorei um tempo para entender que tudo o que eu achava ser um sonho, na verdade, havia acontecido. Fitava a parede branca, com as sombras das janelas retorcidas, quase chegando ao fundo do quarto. O que indicava estar bem tarde. No canto da sala, embaixo das cortinas, estavam dois rapazes dormindo. Um deles era o Arthur e o outro era Murilo.
- Arthur? – chamei com a voz rouca.
Ele não acordara.
- Arthur? – chamei novamente.
Mas dessa vez ele se assustara. Olhava para os lados, como se ainda estivesse dentro de um sonho muito estranho.
- Aqui Arthur? – chamei, balançando o pouquinho que eu podia balançar da minha mão.
- Graças a Deus Alan! – disse ele vindo num pulo até aminha cama.
Ele se aproximou e me deu um beijo na testa. Senti o choro chegando à garganta.
- O que aconteceu comigo? – perguntei sentindo um dor forte por todo corpo.
- Não faça força! – disse fazendo carinho no meu peito – Vocês sofreram um acidente grave – completou com os olhos marejados.
Eu não sei de onde vinha aquela saudade imensa do meu irmão. Era uma saudade tão grande que me fazia chorar. Era como se nunca mais eu fosse vê-lo. Talvez fosse o efeito dos remédios, não sei.
- Você cortou o braço, perdeu muito sangue e precisou operar – disse ele engolindo seco – Perdeu tanto sangue que se não fizesse uma doação urgente, você poderia ter morrido.
- Eu ia morrer? – perguntei sentindo meu coração apertado.
Ele veio ao meu encontro e me abraçou por uns segundos.
- Poderia, mas não morreu! Graças a ele – disse ele dando um passo para o lado, mostrando o Murilo deitado no sofá – Ele lhe colocou no melhor hospital da cidade, com o médico da sua família. Se dependesse do nosso plano... – disse colocando a mão na frente para evitar o choro - ... Deixa pra lá!
Esperei até que ele melhorasse.
- Ele não se machucou? – perguntei.
- Nadinha! Apenas tomou algumas injeções, por causa do rio poluído e ficou em observação por apenas um dia.
- Apenas um dia? Há quanto tempo estou aqui? – perguntei espantando.
- Por 07 dias! – disse ele fechando os olhos.
- Estou dormindo há 07 dias? – perguntei atônito.
- Você perdeu muito sangue. Perdeu tanto sangue que eu, a mãe e o pai precisamos doar sangue par você.No terceiro dia, seu machucado inflamou, onde tiveram que abrir para fazer punção, uma nova limpezae você precisou de mais sangue. Dessa vez foi bem menos – disse ele fazendo uma cara de nojo – Você teve febre e mais febre. Então decidiram que era melhor você ficar dormindo para seu corpo recuperar mais rápido.
- Entendi! – disse respirando fundo.
- Mas agora está tudo bem. Ontem os médicos decidiram tirar os tranquilizantespara que você pudesse acordar. E deu certo.
- E a mãe e o pai? – perguntei sentindo que ia chorar novamente.
Acho que muitos remédios nos deixam frágeis. Talvez por isso eu quisesse chorar a cada momento.
- A mãe quase “foi” junto! – disse ele olhando dentro dos meus olhos –Ela reveza comigo todos os dias. Já o pai vem nas horas de visita. Está sempre viajando e sempre ocupado.
- Entendi!
- A mãe fica contigo no período da manhã e tarde. Já à noite sou eu.
- Obrigado por vocês dois ficarem comigo – disse dando um sorrisinho xoxo.
- Quer dizer, a mãe, eu e o Murilo – disse ele com uma cara de deboche.
- Como assim? – perguntei não entendendo aquela careta.
- Ele ficou com você desde o dia que recebeu alta – disse dando um sorriso falso.
- Ele fez isso?
- “Isso”, que você fala, se chama culpa! – disse ele num tom sério.
Balancei a cabeça negativamente. Ele foi até o sofá e tirou de dentro de uma sacola de supermercados um pacote de paçoca.
- Sei que você ama paçoca, então pedia aos médicos se você poderia se enfartar com isso?
- E eles deixaram? – perguntei ao ver sua cara de satisfação.
- Lógico que não! Por isso, coma isso rápido antes que chegue alguém – disse ele colocando o pacote em cima do meu colo.
Havia um papel colado dizendo: “Para o maior irresponsável de todos!”
- Poderia desamarrar minha mão? – perguntei.
Ele desamarrou a minha mão e abriu um sorriso largo. Comi três paçocas de uma só vez e logo ele guardou-o debaixo do meu travesseiro.
- Ele bem que poderia dormir menos – disse meu irmão ficando cada vez mais carrancudo.
- Eu quis sair com ele Arthur! – desabafei – era meu aniversário e eu quis me divertir também.
- Você tem apenas 14 anos Alan. O cara tem quase 19 anos. Ele já sabe o que é certo e o que é errado. E ele sabia que era errado sair contigo – disse o Arthur ficando vermelho de raiva – Você poderia ter morrido.
Não respondi. Sabia que qualquer argumento que usasse, não seria o bastante para o Arthur. Fiquei calado enquanto o Arthur massageava meu pulso machucado pelas amarras.
- Essa conversa não ficará assim! A polícia virá conversar contigo – disse ele sério – E se você mentir, para defender seu amigo, eu juro que lhe dou umas porradas.
Eu fui criado para sempre respeitar os mais velhos e jamais responder. E foi o que eu fiz. Calei a minha boca e me virei de lado, sinalizando que não queria mais ter aquela conversa. Ouvi o Arthur sair do meu lado a passos largos.
- Acorda aí – disse o Arthur ao fundo, dando um chute no sofá, assustando o Murilo.
O Murilo,ao ver acordado, veio caminhando devagar, com as mãos tremendo, segurando o choro. O Arthur nos deixou a sós.
- Me desculpa Alan, me desculpa? – disse ele segurando a minha mão que estava machucada – Eu não consegui sair daqui sem falar contigo. Eu não ia conseguir ficar em casa até que você acordasse.
Eu, frágil do jeito que estava, comecei a chorar com ele.
- Não tem problema Murilo. Está tudo bem comigo – disse puxando seu queixo para me encarar.
- Não está não. Você, por minha causa, poderia ter morrido – disse ele com a voz grave, chorando desesperadamente alto.
Uma das enfermeiras veio até o quarto para saber o que se passava.
- Até que enfim você acordou - disse a bondosa enfermeira, sorrindo ao meu ver – Já estava mais que na hora. Assim que o doutor chegar, eu o chamo para lhe visitar.
- Tudo bem! – disse retribuindo o sorriso.
- E esse garotão aqui? – disse ela chegando ao lado do Murilo – Por que está chorando? – disse fazendo carinho em suas costas.
- Por tudo o que fiz a ele – choramingou o Murilo.
- Ele está muito bem. Seus exames de sangue mostraram que ele está reagindo perfeitamente aos antibióticos. Há dois dias que não apresenta um quadro de febre. Ele está tão forte quanto você.
Ele mudou de choro de desespero para um choro misturado a risadas.
- Você errou e isso você não pode deixar de admitir. Mas você também foi lindo ao ajudá-lo. E cá entre nós Murilo, seu sangue é porreta!
Ambos caíram na gargalhada. Olhava aquela cena sem entender o motivo de tanta graça.
- Obrigado! – disse e Murilo já parando de chorar.
- E você Alan – olhando para mim, me fazendo corar. Principalmente por ela saber meu nome – Tem que agradecer por ter um amigão desses ao seu lado. Agora quero ver somente sorrisos aqui dentro dessa sala, tá certo?
- Pode deixar! – ambos responderam juntos.
Caímos na gargalhada enquanto a enfermeira saía do quarto.
- Você não tem ideia como eu fiquei? Hoje foi o primeiro dia que consegui dormir desde o acidente – seus olhos estavam ficando vermelhos – Até rezar eu aprendi.
- Não quero que chore. Deixemos isso pra depois. Se for pra ficar aqui que seja pra fazer o que você mais sabe fazer, me aporrinhar.
Ver aquele garotão carrancudo abrir um sorriso de canto a canto, não tinha preço. Era algo que me contagiava. Era minha alegria.
- Sem falar que a enfermeira disse que eu estou muito bem! Que estou respondendo aos medicamentos.
Ele caíra na gargalhada.
- Viu? Disse que rir é melhor que chorar – disse rindo com ele.
- Não é isso Alan! – disse ele rindo ainda mais alto.
- O que foi agora? – perguntei sem entender.
- Lembra de quando eu disse que queria ser seu irmão de sangue? – rindo.
- Lembro! – respondi ainda sem entender.
- Acho que pedi tanto isso a Deus que ele me atendeu.
- Do que você está falando Murilo? – perguntei não entendendo aquela piada de mau gosto.
- Porque, parte do sangue que corre em suas veias, hoje, é meu – disse ele abrindo um sorriso lindo – Agora, além de irmão de coração, você é meu irmão de sangue.
Por mais que eu achasse tudo aquilo esquisito. Meu coração pulou de alegria com aquela notícia. Olhei para meus braços e me senti tão importante por ter o sangue dele em mim.
- Tenho seu sangue? – perguntei rindo como criança.
- No dia do acidente, você precisou de muito sangue, mas eu não podia doar. Ainda estava em observação aqui no hospital. Mas, quando você precisou de sangue novamente, eu fui até o Hemocentro e fiz uma doação para você. Agora esse sangue que corre nas suas veias é meu também. Agora você é meu verdadeiro irmão de sangue – disse ele passando a mão nos meus braços.
- Que bom! – disse sorrindo que nem bobo.
- Esse será o nosso segredo Alan! Ninguém pode saber que fiz isso, ok? – disse ele estendendo o dedo para mim. Ele queria que eu fizesse um juramento.
- Mas eu acho isso tão bom. Que mal tem nas pessoas saberem que você doou sangue para mim?
- Porque, eu havia ingerido muita bebida alcoólica e caí num rio poluído, ou seja, em teoria eu não deveria doar sangue. Como seus pais e seu irmão haviam doado sangue no dia do acidente, eles jamais poderia doar de novo. E seu quadro de infecção piorou tanto após o acidente, que no terceiro dia você precisou ser operado. Eles apelaram para seus parentes e amigos, mas nenhum se prontificou a ajudar naquele dia. E como sangue é caso de emergência, eu fui até o Hemocentro e fiz uma doação para você. É tanta gente que entra e sai desse hospital, que eles jamais iriam me reconhecer.
- Mas a enfermeira sabe? – disse atônito.
- Sim, ela fez a coleta! – disse ele sorrindo – A enfermeira e sua mãe sabe desse segredo.
- Entendi! Então somos verdadeiros irmão de sangue?
- Sim. Somos irmãos de sangue! – disse ele dando um abraço apertado, deixando aquele perfume amadeirado contagiar minhas narinas.
Tenho que para mim, ele se orgulhava tanto disso quanto eu me orgulhava. Ele fazia questão de mostrar suas veias a cada 05 minutos e lembrar que eu era parte dele agora.
“Sei que o fato de ele ter doado seu sangue para mim, não significa, biologicamente, que tornemos “irmãos de sangue”. Mas para nós não tinha importância. Não interessava o que a biologia dizia. Interessava aquilo que nós queríamos acreditar. E de fato nos fazia muito bem.”.