"Me deixe entrar na sua escuridão momentânea
Eu nunca irei abandonar você
Eu estarei com você" (I'll Stand by you - THE PRETENDERS)
Cuidar, respeitar e amar uma pessoa portadora de uma doença incuravel nao era das tarefas mais faceis, convenhamos. E fazer isso tudo, suportando um genio dificil, era ainda mais complicado. Entretanto, o que me movia a fazer tudo isso com paciencia e compreensao era algo obvio: meu enorme amor por ele.
Haviam decorrido quatro anos desde a descoberta do virus, e durante esse longo tempo de extremo cuidado e tratamento rigoroso, Marcos pode se manter razoavelmente bem. A pneumonia que quase o levara, no primeiro ano com a doença ativa, felizmente nao retornou. Toda gripe ou resfriado era imediatamente contida, vigiada de perto no receio de que virasse algo mais grave, mas, por enquanto, estava tudo em ordem com ele, graças a Deus.
Seu temperamento irritavel, teimoso, mimado, me fazia buscar uma paciencia de monge budista ao lidar com aquele garoto. Perdi a conta dos xingamentos, das caretas, dos gritos de raiva quando eu queria que ele se alimentasse bem e seu permanente enjoo do medicamento impedia. Quando ele chegava a vomitar toda a refeiçao, me culpava, chorava de odio e frustraçao, ameaçando abandonar o tratamento enquanto eu, num silencio de pena e tristeza, amor e pulso firme, consolava-o no banheiro, limpando seu rosto na toalha, enquanto ele ainda chorava.
- Ate quando vou aguentar isso? _ sussurrava, apoiado em mim, um pouco tremulo de nausea _ Eu devia era ter morrido logo!
Ele fez um rapido gargarejo debaixo da torneira, e levando-o para a sala, me mostrei muito irritado com aquele comentario.
- Nunca mais repita isso. Nunca mais. Ou vou ficar chateado de verdade com voce.
Se calando, ele pediu desculpas. Uma meia hora depois, ainda o abraçando no sofà, sentindo a maciez perfumada de seus cabelos sempre revoltos, indaguei se ele conseguiria comer alguma coisa; respondeu que "mais ou menos". O enjoo era ciclico, uma onda irregular. Ocorria de ele ficar dias sem sentir nada, e em outros conseguia comer apenas salada de picles azedissimo e suco de laranja; ficar sem comer, nunca. Eu nao deixava. Preferia ouvir seus gritos de xingamento, mas que aquele sistema imune roido pelo virus se fortaleceria tambem com alimentaçao regrada, ah, isso sim. Para mim era uma obrigaçao, uma responsabilidade que quis assumir, e nao me arrependia disso.
Rapidamente, abri uma embalagem de sopa Knorr, a Sopa da Galinha Azul, juntei agua, acendi o fogo, e Marquinhos se encarregou de mexer a panela, devagar, enquanto eu o abraçava por tras.
Sim, eu me sentia um guerreiro no meio de uma batalha feroz. Ele era a causa daquilo tudo, e eu sabia da esmagadora responsabilidade de manter sua saude.
Eu era louco por ele, completamente louco. Em quatro anos, ele nao mudou nada, apenas emagreceu um pouco na epoca da maldita pneumonia, e nao recuperou o peso perdido. Era ainda aquele garoto lindo que, em 1987, conheci no antigo apartamento do centro, naquela noite regada à cocaina e loucura, num tempo de alegria e perdiçao de nossa juventude. O mar azulado-cinzento se abriu para mim e me afogou, quando meus olhos se encontraram com os dele e, ainda na porta, junto do finado Zeca e de Bruno, senti meu peito esquentar e formigar como nunca antes. Que moleque bonito! Nao foi à toa que Tony montou casa para ele e lhe deu de tudo. Um jeitinho de anjo e de safado ao mesmo tempo, magro e da minha altura, cabeleira castanha naturalmente indomavel, como sua personalidade (o que fui descobrir mais tarde), cobrindo testa, orelhas, umedecida depois pela transpiraçao que a droga causava; era um rosto quase androgino, e vi tambem que Bruno ficou atiçado com ele, o que me deu um ciume idiota e injustificado.
Com vinte anos nas costas, eu era um garoto timido, calado, com pouca experiencia sexual e amorosa, apesar da vontade. Nao levava muito jeito para paquera, e os garotos geralmente preferiam Tony e Bruno a mim. Naquela vez, a Aids se alastrava como uma sombra ainda pouco explicada, mas terrivel; nao imaginava que em pouco tempo teria que encara-la frente a frente como minha maior inimiga, a pior rival de minha vida.
Conheci Tony na biblioteca da faculdade que era, praticamente, minha segunda casa, e onde eu passava as tardes com a cara enfiada nos livros, minha maior paixao depois da musica e dos garotos, é claro. Como um bom CDF, sentia uma obrigaçao natural em atingir a nota maxima nas provas, e estudava com prazer e dedicaçao. Numa terça-feira, ajudei aquele homem forte, de uma beleza exuberante, um ar agressivo, a encontrar o livro que procurava. Nascia ali uma amizade meio negligente, pouco profunda, e nao demorou para que nos revelassemos como gays, numa identificaçao silenciosa. Eu achava-o soberbo, futil, e admirava sua extroversao ao mesmo tempo que odiava sua preferencia para brigas e sexo desenfreado; mas foi por ele que experimentei a cocaina e a paixao arrasadora pelo seu "caso", o Marquinhos. Amor à primeira vista, e me percebi aniquilado logo de cara, como um Romeu.
- Vou colocar um pouco de salsinha na sopa, amor, esta muito sem graça _ disse meu anjo mexendo na panela, refeito do enjoo e para minha satisfaçao, com apetite _ Pega pra mim ali na geladeira.
Cortei a salsinha lavada, com a tesourinha, espalhei sobre a sopa e ele mexeu a panela com a concha. Abracei-o por tras, de novo, sentindo a morneza cheirosa e familiar de seu corpo. "Que grude, Alex!", as vezes ele reclamava, sem que eu levasse a serio. Fechei os olhos, os oculos de grau incomodaram na tempora, a haste fina e prateada apertando. Seu cheiro era uma coisa quase citrica, desodorante de supermercado e xampu de aloe vera. Na primeira vez, ainda naquela noite no apartamento do centro, antes da cocaina, havia tocado "Unloveable", e enquanto ele sorria conversando com os garotos, eu me sentia como na letra da musica, pensando que ele fazia uma ideia ruim de mim, um cara calado, envergonhado, um garoto estranho. "Mas eu sei que voce iria gostar de mim/ Se ao menos voce me enxergasse/ Se ao menos voce se encontrasse comigo", eu cantava em pensamento, desviando os olhos dele, corando, balançando a perna de nervoso.
- Encha o prato _ falei em seu ouvido quando ele desligou o fogo _ E e' pra tomar tudinho, hein?
- Ainda estou um pouco nauseado _ ele nao se soltava de meus braços.
- Mas se esforce, por favor _ sussurrei _ Por mim, vai.
- Vou tentar _ ele sorriu, me beijando o rosto de leve.
Sorri, encorajando-o, observando ele encher o prato fundo de louça com duas grandes conchas da sopinha. Dessa vez, ele nao voltou a refeiçao. Que bom seria se fosse sempre assim!
- Pronto, gato _ disse ele, empurrando o prato vazio; sorriu, se levantou e foi pegar agua na geladeira _ Meu gato de oculos.
Dei uma risada. Ele ainda se acostumava com meus oculos, mas dizia que eu estava bonito. Bem, se antes eu jà tinha cara de rato de biblioteca, como diziam, agora ainda mais.
*
*
*
Certo, muitos devem achar super chato que eu "retome" uma historia que aparentemente foi encerrada. Entendo se estiverem de saco cheio disso, mas essa eh uma ideia que tenho a algum tempo, tentar contar "o que aconteceu depois". Quis fazer isso com uma historia que gostei demais de escrever, e revivo essa satisfaçao agora. Obviamente que muita coisa esta diferente, a começar pelo narrador/ personagem, o pacifico nerd apaixonado Alex. Espero que curtam ler, assim como estou curtindo escrever! :) E se nao gostarem desse remember, vou entender, mas nao encerrar ate o ultimo capitulo (sou teimosa! rs).
Isto dio, valeu, como sempre! Ate o proximo! :D