No principio do ano, houve uma otima noticia: o governo brasileiro distribuiria gratuitamente o AZT. Foi um alivio para nossa renda aquela novidade, pois muitas vezes passavamos um certo aperto com nossas finanças por conta do custo daquele remedio, mesmo com a generosa ajuda de Clarice. Agora, felizmente, nao teriamos mais essa preocupaçao, trabalhando apenas para a manutençao de nossa casa, como qualquer casal, sem enriquecer ainda mais a jà milionària industria farmaceutica.
Marquinhos trabalhava das oito às cinco numa editora chamada Modelo, de propriedade de um jovem milionario orfao e gay. Aliàs, o quadro de funcionarios era constituido por noventa por cento de gays e o restante mulheres em funçao de secretarias. Nesse lugar, meu anjo tinha um trabalho relativamente leve, um patrao que o conhecia e compreendia (e que mais tarde se tornou nosso amigo), muitos colegas e muitas bichas invejosas.
Buscava-o de carro todas as tardes, assim que terminava meu serviço no escritorio. No predio da editora, sentando no banco do saguao, ele sempre esperava junto com Renatinho e Davi, seus melhores amigos no trabalho, e que pegavam uma carona conosco. Quando me conheceram, no primeiro dia do emprego do Marcos, me constrangeram um pouco com aquela expansividade toda, pois ambos eram bem afeminados, um tanto espalhafatosos.
- Bicha, e' esse o seu marido? _ disse o garoto mais baixo quando sai do carro e abri a porta para Marquinhos entrar _ Estou perplexa. Que lindo ele! Tenho uma tara por homem de terno e oculos...
- Olha o respeito, Davi _ falou Marquinhos, entrando no carro, mas sorriu em seguida _ Nao querem uma carona? Vamos para aqueles lados mesmo...
Renatinho era o mais bonito, magrinho, cabelo preto cacheado, mas uma boca suja que fazia corar qualquer um. Observava meus cuidados e perguntas a Marcos e fazia uma vozinha de choro fingido.
- Ai, quero um Alex pra mim tambem! Onde encontro, meu Deus?
- Chupando pau nas sarjetas? Nunca, meu querido! _ respondeu Davi com acidez.
Brigavam muito entre si, porem se conheciam desde a infancia. Dividiam um apartamento pequeno, e segundo diziam, era um entra e sai de homem aos finais de semana que ate os vizinhos reclamavam. No entanto, às segundas-feiras, era o dia em que estavam de melhor humor pelas farras da vespera, noites na boate NostroMondo, saunas e sexo à vontade. Iamos à boate com eles algumas vezes, mas sempre voltavamos cedo para casa; muitas vezes a promiscuidade alheia me chocava, mesmo que os dois garotos jurassem que usavam camisinha sempre. Mas nunca gostei de presenciar isso e Marquinhos, que era como eles antes do nosso namoro, nao os recriminava nem elogiava, limitava-se a nao julgar.
Naquela tarde fria de sexta-feira, buzinei em frente à editora, estacionando o carro. Marquinhos e os outros dois sairam, ainda conversando. De sueter cinza, jeans e All Star vermelho, meu anjo usava a bolsa transversal de couro escuro, que lhe dei de aniversario. Lindo. Tomou assento no carro, ao meu lado, e os meninos entraram. Ele parecia cansado, suspirou, colocando a bolsa no colo.
- O que temos hoje, hein? _ indaguei, beijando-o no rosto rapidamente; dei partida e saimos.
- Um pouco de fraqueza... o dia todo _ respondeu ele, recostando a cabeça no encosto do banco.
- Ele esta desanimado assim hà dias _ disse Davi.
- A anemia voltou, tenho certeza _ falei olhando meu namorado _ Tenho percebido mesmo esse desanimo, e esta um pouco palido tambem... Vai ter que voltar para o sulfato ferroso.
- Ah, nao... _ resmungou Marquinhos, fazendo careta _ Daqui a pouco estarei tomando um quilo de remedio por dia!
Os dois garotos, unicos conhecedores da doença dele na empresa (alem do patrao), estavam por mim encarregados de vigiá-lo, observar se ele se alimentava bem e como passava com os efeitos do remedio. Um dia Marquinhos me contou furioso que quase batera em Renatinho porque este lhe dera um belo puxao de orelha num momento critico, de birra de meu anjo com o medicamento, ameaçando nao tomar nada, enjoado. "Nao mandei ninguem dar o rabo sem usar capa. Agora fica ai, dando trabalho para os outros, fazendo frescura, querendo jogar fora um remedio importante desses. Vai tomar essa merda sim, nem que eu tenha que enfiar na sua garganta!", dissera o baixinho, bravo pra valer. Brigaram, claro, mas Renatinho fez com que ele tomasse o medicamento; intimamente, admirei o pulso firme do garoto com ele.
- Ele almoçou direito? _ perguntei ao Davi que estava entretido com uma revista nova, produzida pela editora.
- Comeu tudinho, mas foi preciso brigar com ele, senao... _ respondeu Renatinho, e deu risada _ E agora? Ganho um beijo pela informaçao?
- Ganha uma sapatada na cara! Vagabunda! _ disse Marquinhos tentando bater nele, esticando o braço para tras; o garoto ria e se esquivava.
- Olha ai! Derrubaram minha revista, caramba! _ reclamou Davi.
A pequena briga terminava em segundos, com Renatinho se rendendo numa meiguice quase triste, abraçando Marquinhos esquisitamente, por tras do banco do carro, alisando seus cabelos.
- Ah, minha camelia linda, doentinha... Desculpa, vai! Te adoro! Nunca que eu tocaria no seu maridinho advogado gato, gostoso, intelectual romantico...
- Davi? Dà um tiro no Renatinho por mim, por favor! _ disse Marquinhos, sem segurar a risada, beliscando o amigo no braço.
Ele se distraia e se divertia com eles, eu gostava disso. Logo que fomos morar juntos, Beto era o unico amigo que possuiamos, exceto Clarice. Foi por ele que, ainda em 1989, soubemos da morte de Tony nos Estados Unidos. Um colega de Beto era aluno de um dos professores do Tony, e a noticia correu. Marquinhos ficou arrasado, chorou por muito tempo em meus braços; nao era tanto pelos ecos do carinho brando que sobrou da relaçao deles, era mais por ele ver ali, em um conhecido, um final cruel que se esforçava em nao vislumbrar para si. Foi como a realidade severa da doença se mostrando em toda sua crueza, sem piedade nenhuma, e ele temia ser o proximo. Demorou para ele esquecer aquilo, e briguei seriamente com Beto por ter trazido tao pessima noticia, te-lo desanimado daquele jeito. Ainda hoje nao nos falavamos direito por conta daquele episodio.
Deixando os meninos perto da rua onde moravam, fomos embora. Fazia um frio tipico de outono, um entardecer de luzes melancolicas e suaves. Marquinhos foi cantalorando baixinho para o banho, naquela alegria tao bonita que ele nao tinha perdido, apesar da enfermidade. Quando saiu, quente e cheiroso, colocou um CD do The Cure, e "In Between Days" rodava enquanto ele me ajudava com o jantar: faria laranjada e picaria cebolas para o molho de tomate que eu deixaria pronto, para os canelones ao forno, feitos com massa de lasanha pronta. Um momento depois, o telefone tocou e ele foi atender; respondeu breves perguntas que nao pude ouvir da cozinha, apenas os murmurios. De volta, me olhou com certo ar serio, retomando sua tarefa de passar as laranjas no espremedor.
- A mamae quer vir aqui amanha _ disse, sem me olhar _ Tudo bem pra voce, ne'?
- Claro _ respondi, lavando e secando as maos; abracei-o apertado pela cintura, ainda de camisa, gravata e oculos, os pes descalços no chao frio _ Acho que ela gosta um pouquinho de mim, sabe?
- Ah, voce e' um gentleman, Alex! Cativa as mulheres com facilidade _ disse ele com certo sarcasmo _ Caramba, me deixe fazer o suco! Homem mais carente, meu Deus...
- E' amor demais _ falei baixinho, beijando seu pescoço e fazendo-o se arrepiar e rir; ainda assim nao o soltei, viajando no seu cheiro, na consistencia de seu corpo maravilhoso; amanha, visita da sogra, a quarta visita em seis meses desde o reencontro. Me perguntei se haveria a mesma tensao constrangida das visitas anteriores, e torci para que nao tivesse.
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Obrigada a todos!
Abraços!