Capítulo 14
A árdua partida de futebol.
Por volta das três da tarde fomos jogar futebol e, como estava muito calor, todos nós preferimos jogar sem camiseta mesmo. O Burro, que há um bom tempo que eu não o via sem camiseta, estava bem mais moreno que o habitual e dessa vez estava todo depilado. Ele tinha me dito que precisaria se depilar para poder jogar futebol. Sem falar que ele estava usando um short que valorizava muito bem sua lordose, dando “aquela” empinada na bunda dele. O Murilo que no meio do aniversário tinha colocado a camiseta de volta - pois estava ficando com vergonha de tanta gente estar especulando sobre o físico dele - fez o favor de tirá-la para poder jogar. Ficou apenas com aquele short tipo street, bem largão, daqueles que fica mostrando a cueca. Só que o dele descia até quase o meio da bunda, mostrando a cueca branca.
Como era o meu aniversário, os garotos sugeriram que eu escolhesse os jogadores primeiro.
“E adivinhe quem eu escolhi? O Murilo, lógico!”
Dei uma olhada para o Burro que ao longe mostrou-se bem chateado. Acho que desde que eu o conheci, nunca havia deixado de escolher ele em primeiro lugar ou vice-versa. Até os garotos me zoaram, tipo:
“Puts, o Batman e o Robin não vão jogar juntos?” – falou um dos guris, fazendo o Burrão fazer uma cara amarrada.
“Agora que o verdadeiro Batman voltou, é melhor o Biesso procurar outro Robin. Já perdeu!” – disse um garoto que era amigo meu e do Murilo desde nossa infância.
Realmente, o que o Burrão não sabia, era que o Murilo tinha sido meu primeiro melhor amigo e nem adiantava ele fazer aquela cara de “coitadinho” que não havia necessidade. O Murilo, que estava rindo das piadas, correu para o meu lado.
- Por que você não escolheu seu outro Batman ali? – perguntou ele apontando com a cabeça.
- Se eu te falar que nem me lembrei dele, você acredita Murilo? – perguntei fazendo dar um sorriso maldoso.
- Pensei que sendo ele “O Ronaldo Fenômeno” de São José do Rio Preto, eu achei até que nem teria chances – disse ele não tirando olhos do Biesso, que estava trocando passes com outro amigo meu.
Mas para minha surpresa, o outro garoto também não escolhera o Biesso, ele escolhera o melhor amigo dele que era um excelente goleiro de futsal.
“Graças a Deus! Agora ninguém vai ficar chateado com ninguém” – pensei.
- Então o Biesso vem para o meu time – eu disse fazendo sorrir e correr para o meu lado.
- Não vale Alan. Tá você, que é ótimo zagueiro, tá o King – King é o famoso apelido do Murilo - que é ótimo lateral e agora o melhor atacante? Poxa, vamos mexe nisso ai? – disse um amigo meu que ficara bravo.
- Guilherme, ninguém mandou o Bruno escolher o Fernando. Por que então você não escolheu o Biesso? – eu disse para o guri que ficara bravo.
- Você que tinha que ter consciência que não vai dar certo – ele respondeu alterando ainda mais a voz.
- Isso é um problema de vocês, ué? Por que vocês não escolheu o melhor logo de cara? – eu disse apontando para o Burro, fazendo o Murilo soltar “Afff” de deboche e descontentamento.
O Murilo respirou fundo, passou por mim dando uma esbarrada e chegou perto do Burro e disse:
- Pode ficar sossegado Guilherme, no meu time não joga veadinho. Ainda mais veadinho de seleção futebol feminino – disse o Murilo dando uma daquelas patadas de urso que ele costumava dar nas pessoas e a turma caiu na gargalhada.
O Burrão me olhou por uns instantes buscando apoio, mas eu já estava na gargalhada junto aos meus amigos. Pelo jeito que ele virara as costas para mim, significava que ele ficara arrasado. Na verdade, quem não ficaria arrasado, sendo humilhado daquela maneira? E pior, o melhor amigo dele dando apoio ao inimigo.
Ele baixou novamente a cabeça e foi para o lado do Bruno (guri que estava escolhendo do time rival).
- Pode deixar, eu mesmo já mudei de lado – disse ele num tom baixo para o Bruno que assentiu com a cabeça.
- Agora vocês têm o melhor atacante e o melhor goleiro – disse o Ricardo, ou guri baixinho que estava no nosso time.
- Cala a boca Rick! A gente vê quem é bom no campo – disse o Murilo dando um olhar hostil para o Burro.
Corri até onde estava o Biesso.
- Por que você me encara assim? – perguntei enquanto ele me olhava descontente.
- Porque, em anos, eu não sei o que estou fazendo ao seu lado! – disse ele chutando a bola para longe.
- Só porque eu não te escolhi? – disse puxando o Burro pelo ombro.
- Só porque em 07 anos você sempre escolhe em primeiro lugar? – disse ele rindo de desapontamento.
- Puta que pariu heim? – disse o Murilo chegando ao nosso lado – Você não desiste cara? – perguntou o encarando o Burro.
O Burro percebeu que aquela conversa não ia dar em nada e voltou a bater bola com os meninos do seu time.
Pela primeira vez em sete anos que o Burro não jogava ao meu lado e a galera toda já percebera a rivalidade que estava rolando entre o King e ele. O que a galera não sabia, era que Burrão não estava nem um pouco afim de brigar com o Murilo. Porém, conhecendo o Murilo, eu sei que essa rivalidade toda que estava rolando, me deixava preocupado. Por mais que o Burro fosse forte, era nítido que, caso precisasse brigar, precisaríamos de no mínimo, de cinco garotos para derrubar o búfalo do Murilo.
“Ele era treinado para brigar, para se defender e para matar. Que chances um jogador de futebol teria contra um tanque daqueles?”
Quando a partida começou, soubemos logo de cara quão superior o Murilo era em relação à resistência física. Ele era forte, tinha arranque e ninguém ousava a tentar tirar a bola dele, com medo de levar uma prensa. Já o Burro era nítido quão superior ele era ao King e o melhor. Ele fazia questão de mostrar que não precisa ser um rinoceronte para ser jogador de futebol. Por mais que todos tivessem medo do Muca, sempre que o estava cara-a-cara com o gol, aparecia o Burro e roubava sua bola com facilidade. O Burro era o “Calcanhar de Aquiles” do Murilo e a galera estava gostando disso. Aos poucos, aquele Murilo fanfarrão, dava cara para um Murilo totalmente furioso. No começo da partida estava alegre, onipotente, brincalhão, agora ele estava com cara de quem ia arrancar um fígado, caso olhasse para ele.
O relógio apitou confirmando o final do 2º tempo. Aproveitamos que o calor estava quase nos matando e fomos beber água e passar uma ducha na cabeça. Eu estava colocando a cabeça debaixo da ducha quando o King, com seu jeito brutamontes de ser, entrou com o corpo todo debaixo da ducha, me fazendo desequilibrar, saindo fora do cercado.
- Valeu rinoceronte! – disse fazendo-o rir.
- Só você pra me fazer rir enquanto estou prestes a esquartejar alguém.
- Que foi Murilo? – perguntei já sabendo a resposta.
- Alan, vou quebrar aquele moleque – disse ele lavando bem o seu corpo enquanto apontava para o Biesso que jogava inocente com seus companheiros de equipe.
- Por que você quer quebrá-lo Muca? Só porque o cara tá te dando trabalho? – brinquei com ele.
- Não! Não está me dando trabalho.
- Então por que você quer “esquartejá-lo”? – perguntei sem entender.
- É que ele está se achando demais e, na minha terra, isso não é nada bem vindo. – ele me disse com a cara séria.
“Tá bom! E você quer que eu acredite que você não esta com ciúmes, só porque ele esta te humilhando?” pensei.
- É que ele é jogador de futebol profissional, né cara? É normal ele ter mais habilidade. Ele fica o dia todo treinando – eu disse fazendo fungar.
- Afff, você paga pau para esse idiota?
- Esquece moleque, é só um racha normal – eu disse segurando ele pelos ombros.
- Esquece nada, ele é um bostão e fica se achando.
- Mas que caramba, moleque! Ele está normal, é o jeito dele – eu dizia para tentar acalmá-lo.
- E ficar rindo a cada passe que ele da é o jeito dele? – perguntou ele vindo para cima de mim.
- Fala baixo que todos vão ouvir – disse abraçando ele.
- Tô cagando e andando para que todo mundo acha – disse irritado.
- Se você tivesse “cagando e andando” não estaria tão puto.
- Até você Alan? Que caralho! – disse ele me empurrando.
- Para de ser moleque Murilo e vamos jogar. Você é bom pra caramba – eu disse na esperança que ele abaixasse a bola um pouco – Olha aqui pra mim, vamos acabar logo, pode ser? –eu disse fazendo o rir.
- É que eu não curto pessoa que se acha – disse ele.
- Vocês dois são os melhores em campo. Pare de se preocupar – disse passando a mão na cabeça dele.
- Vamos ver quem pode mais – ele disse me dando um soco no ombro.
Quando ele me disse “Vamos ver quem pode mais” achei que ele não estava falando sério. Apenas achei que ele iria ficar puto e começar a usar a força física para barrar o Burro. Mas vindo do Murilo, eu deveria começar a dar valor em cada palavra. Quando voltamos para o terceiro e último tempo, a galera já não estava tão empolgada quanto no começo do jogo, tirando lógico, os dois fodões da resistência física. O calor já consumira quase todas as minhas energias. E o terceiro tempo continuou como os outros. O Murilo corria muito, driblava muito, mas quando chegava perto do gol ou perto do Burro, ele perdia a bola. Eu já não aguentava mais jogar e, pelo jeito, ninguém estava afim mais. Queria que acabasse logo para voltar para o churrasco ou ir nadar um pouco e, Graças a Deus, uma das garotas anunciou que estava quase no fim.
- Kingão faltam três minutos para acabar – disse uma menina que pagava pau para o para ele.
“Vocês não tem ideia como nós zoamos ele, durante a noite toda”.
- Obrigado meu anjo! – disse ele indo até o alambrado e dando um beijo na menina, que, “sem querer”, ela escorregou a mão pelo abdômen dele.
O placar marcava 08 X 06 para o meu time. Depois do Murilo perder mais uma bola para um guri, ele tocou para o Burro que correu como um raio e marcou seu quinto gol na partida e o sétimo gol do time dele. Placar agora marcava 08 x 07 para meu time. Todas às vezes que e o Bisso relava na bola, as meninas gritavam “Olé”. E mesmo nós estando ganhando por um gol de diferença, o Murilo não gostou nada daquela comemoração, muito menos, quando todos gritavam “Olé”. Era uma mistura de inveja e raiva por perder o reinado dele.
“Lembram que eu disse que ele amava ser o centro das atenções? Então, só o fato de ninguém olhar para ele como o Deus, o Rei, o King, estava matando. Única coisa que eu fazia, era rir da situação. O Burro era fodão no futebol e não adiantava o Murilo achar o contrário. O cara simplesmente era um artista em campo”.
Quando o Murilo passou por mim, fez uma cara de “Até você tá jogando confete?”, que me fez ficar sério na hora. Ele voltou para sua posição na lateral e esperou o tiro de meta. Faltava 40 segundos para o final quando o Burro, do centro do campo, soltou a bola para finalizar a partida. Todos os olhares estavam para aquele garoto ruivo que parecia dançar em cima da bola. Mas não era o Burrão que me chamava à atenção e, sim, o Murilo. Eu o observei firmando as mãos no joelho, olhando para Burro o fixamente. Lembrava-me um leão na espreita, esperando apenas o momento certo para atacar à presa. E foi quando Burro partiu a caminho do gol que eu vi ataque. Não era um tiro simples, que você sai correndo com o tronco e a cabeça inclinados para frente, como costumeiro. Era uma corrida de ataque, daquelas com o peito estufado, braços e face contraída. Prestes a atropelar o guri, ele abaixara seu tronco para que o mesmo servisse de alavanca para o ataque e, como um touro que se inclina para dar a chifrada, ele abaixara o peito para levantar a vitima, fazendo sua queda, ser pior que imaginava. Os momentos seguintes, fora de dor e agonia.
Com a velocidade que os dois estavam e com o impacto brutalmente calculado pelo Murilo, o Burro fora arremessado para o alto, fazendo ele além de cair de peito no chão, rolar por uns seis metros até parar. Parecia até uma partida de futebol americano. Para piorar, a nossa quadra estava desgastada e o cimento estava ralado.
Parecia um ralador de queijo, com pequenos pedregulhos. A euforia que tomava conta do ambiente deu lugar ao silêncio. As meninas que estava do lado de fora torcendo, vieram ao encontro do Burro. Os meninos pararam a partida para também verificar o que tinha acontecido.
“E eu?”
Eu estava em choque do outro lado do campo. Fiquei parado observando o corpo imóvel no chão e as pessoas conversarem ao pé do ouvido, apontando para o que restou daquele rapaz. Ele ficou mais de um minuto. Engoli seco e eu o vi se virando de barriga para cima. Suspirei aliviado. Procurei pelo Murilo que ao longe estava observando tudo, sentado no alambrado e olhando para baixo. Quem não o conhecia até poderia achar que ele estivesse sentindo culpa. Quando o Burro se levantou, pude ver o estrago que o King havia feito.
As costas inteira estava ralada e cheia de pedregulhos. Os cotovelos e joelhos sangrando. A testa estava cortada e a sobrancelha estava faltando um pedaço. Precisou de três guris para ajudá-lo a levantar e caminhar até os bancos que ficavam fora da quadra. O pior de tudo, é que mais uma vez ele não abrira a boca. Ficou ali, parado, olhando os ferimentos enquanto as garotas passavam sua camiseta úmida para tirar a terra e as pedrinhas. A galera em peso estava com cara de nojo. Sem falar nos olhares de desaprovação que davam quando passavam por mim.
“Agora “eu” tenho defender o Burro em tudo? Por que você não vão lá falar para o Murilo tudo que vocês pensam?” – pensei.
- Alan, já volto! Vou ajudar o Bruno e o Guilherme levar o Biesso para cima. Ele disse que os pais dele estão no seu aniversário e por isso ele vai aproveitar para se limpar. Já sabe como a dona Neusa é uma fera? - disse o Danilo.
Fiquei com o coração apertado e com vontade de estar com ele, mas eu tinha uma festa inteira pela frente. Imaginei apenas a cara da minha mãe caso eu sumisse. Ela me mataria também. Eu estava dividido entre apanhar e ficar com meu melhor amigo?
“Nossa, como eu queria levar ele para casa. Como eu queria poder dar um abraço e sentir chorar comigo. Queria poder dar conforto e assistência. Meu Deus, como é ruim isso!” – pensei.
Será que esse sentimento é sentimento de irmão ou sentimento algo mais? Até então não tinha certeza. O que eu queria agora era apenas estar com ele, porque, com certeza ia doer muito a partir de agora. Fiquei parado observando-o distanciar. Ainda bem que os pais dele estavam no meu churrasco, porque se não, ele iria ficar de castigo. Os pais dele, eram muito severos, por isso até eu estava agoniado em saber que ele teria que contar aos pais.
“Caralho! E o que ele vai falar quando os pais dele o virem ele sem um centímetro de sobrancelha?” – pensei.