Aquilo tinha sido mais que a minha primeira decepção amorosa, aquilo tinha sido a minha decepção com o ser humano. Todavia eu não poderia simplesmente ficar em casa, esperando passar o luto; tentei ser readmitido, mas o meu antigo chefe me disse um “não” magistral. Eu pensei em ligar pra minha família, mas a força deles vinha exatamente de mim, ao invés de conseguir ajuda, eu causaria um desequilíbrio.
Comecei a andar pela rua, me imaginando encenar uma ópera ao som das Gymnopédies de Erik Satie, na peça, a rua era a minha casa, mas eu não me sentia bem nela, o frio emanado pela atmosfera e principalmente pelas pessoas me era insuportável. Doía os ossos e a alma. A sensação era tão real que, por um momento, pensei que estava ficando louco. Entrei num bar e pedi uma cerveja -da mais vagabunda, dessas que dá dor de barriga depois. Queria aquela alegria ébria, que uns chamam vulgarmente de “brilho”, pra mim era bem mais que um brilho, era a única coisa que me impediria de cometer suicídio imediato; fiquei numa mesa, concentrado no gosto amargo daquela lavagem alcoolica.
Ao meu redor as mesas estavam cheias, gente conversando, rindo, falando alto, ostentando felicidade. Eis que meu telefone toca, meu coração acelera, minhas mãos tremem, sinto quase um deslocamento do meu espírito. No visor do celular, o nome de um ex-colega de trabalho -nunca fiquei tão decepcionado na minha vida, foi como ir do céu ao inferno em três segundos; esses poucos segundos foram mais significativos que as semanas de fossa que eu passara, pois só a possibilidade de ser Alberto, já me deixou extremamente feliz e, com toda a certeza, eu voltaria para ele sem repreendê-lo por nada, voltaria feliz. Só quem amou sabe como essa merda é, você perde toda sua dignidade. Apertei meu celular com força, em seguida atirei-o na parede do bar, o display se fragmentou inteiro e alguns pedaços dele se soltaram no chão como cacos de vidro. Isso gerou uma euforia no ambiente, todos me olhavam, o dono do bar veio até mim e me expulsou do local. Era um botequim sujo, não tinha sequer funcionários e a clientela certamente era acostumada a barracos piores, em poucos minutos tudo voltara ao normal.
Fui sentar na sarjeta -assim como o fiz no dia em que conheci o Alberto- acendi um cigarro para relaxar, exatamente como outrora. Por um minuto pensei, “é meu caro, voltamos ao ponto de partida”, só que dessa vez, eu estava bem pior. De repente sou tirado de meus pensamentos por uma voz, era tímida e parecia ter intenções benevolentes na prósodia das frases, até a pausa entre uma palavra e outra carregava um cuidado em dizê-las. Virei de costas e dei de cara com um homem mais velho, bem vestido, com cara de pai-de-família. Ele falou que gostaria de saber o que me ocorria, perguntou se eu me sentia bem e todo esse bla bla bla -eu quis mandá-lo à merda, essa mesma bondade tinha derrubado meu mundo, eu não acreditava mais nela. Parei um pouco, pensei: Por que não usar dela também? Posso usar dessa mesma arma e conseguir coisas, não é assim que fazem? Não foi o que fizeram comigo?
Ele se chamava Carlos, tinha 45 anos e era casado, pai e tinha emprego estável. Recolhi esses dados sem perguntar diretamente, eu jogava a isca e ele ia mordendo, contei-lhe parcialmente minha desgraça, escondi a parte sexual, disse apenas que tinha sido demitido e que era do interior. Logo estávamos no maior papo, ele se encantava com o que eu dizia, com minhas ideologias, parecia haver uma espécie de admiração por mim, de sua parte. Ele falava coisas óbvias, eu fingia que pra mim era a última novidade, ele era bem conservador e careta, notava-se pelo seu jeito, mas isso não impedia que me cobiçasse. Eu achava ele um grande hipócrita, um safado que queria foder e pagar de bonzinho no final. No fim das contas era foder que ele queria.
Vi que precisaria prendê-lo, ou então o perderia no mundo, então, disse-lhe que não tinha dinheiro pro ônibus e perguntei se ele poderia me dar uma carona. Fomos então ao seu carro velho, pensei em mil coisas antes de entrar, mas todas elas invariavelmente me levaria pra cadeia, então deixei pra lá. “Você tá legal pra essa idade...”, “Casar é ter sexo todos os dias?”, falava frases soltas com teor sexual, numa tentativa frustrada de ser sexy (não sabia o poder afrodisíaco do pudor), ele respondia de forma mecânica, mas eu tinha um plano B, comecei a me portar como um cara mimado e rebelde, no modo como estava sentado, na feição do meu rosto, no jeito como movia meu corpo... ele acabou passando a mão na minha perna. 1X0.
Ele desviou o caminho pra um motel, o que me deu raiva, pois comparei com a chácara foda que eu tinha ido. Fomos para um quarto de motel: impessoal, feito apenas para trepadas, previsível... como alguém pode ter tesão num lugar desses? Ele quis me beijar, tocar em mim, eu só tinha nojo, não gostava do seu toque, ele tinha mau hálito, não havia nada nele que não fosse medíocre. Eu me senti o tempo todo sendo abusado, me incomodava aquilo tudo, tinha vontade de batê-lo; mandei que me pedisse um vinho, ele aceitou, acabei com a garrafa em dois quartos de hora. Não lembro bem o que aconteceu, só lembro da sensação humilhante de estar com alguém por necessidade, todavia, eu trepei como uma máquina de fazer sexo, ele nunca fodeu nem foi fodido com tanto prazer. Ele adorava chupar, embora não soubesse fazê-lo bem, eu tinha que ensiná-lo e ele gostava desse jogo-de-aprender. Quando eu o chupava ele perdia a cabeça, era patético ver o quanto ele estava em minhas mãos ali, eu controlava seu prazer. A gente transou duas vezes, com camisinha; depois dormimos para, no outro dia, comermos torradas e café meio frio naquela pocilga. Ele me deu uma nota de cem e achou que eu o deixaria ir. O que ele não sabia -nem o caro interlocutor- , é que enquanto ele dormia, tirei algumas fotografias (pelo seu celular) de meu pau junto ao honroso rosto do pai-de-família, após as fotos, retirei o cartão de memória e o guardei no meu bolso. Agora precisava fazer a proposta. Faltava coragem pra abrir o jogo e contar da chantagem, eu não tinha esse cinismo, mas bastava lembrar do que Alberto me fizera que meu corpo se enchia de forças, o ódio me alimentava, eu não poderia ter pena de quem apenas me usou, ele era igual a Alberto, só que numa versão medíocre.
Era conseguir chantageá-lo ou ser despejado do prédio, penso que tive minhas razões, caso eu não o ferrasse, eu estaria indiretamente me ferrando. Antes da proposta, eu precisava de um lugar conveniente, não poderia ser em ambiente fechado, eu precisava de respaldo. Falei que queria que ele me deixasse no shopping, pois eu tentaria de novo a readmissão; ele foi glacial, disse que estava até atrasado pro trabalho, que me daria dinheiro pro ônibus, foi aí que vi o valor que eu tinha pra ele, foi aí que ele confirmou minhas suspeitas sobre sua canalhice. “Calma”, eu dizia pra mim mesmo, enquanto meu sangue subia. Pedi “por favor”, supliquei mesmo, como quem suplica pela vida.
No caminho para o shopping o silencio representava o que sentíamos um pelo outro, pura indiferença, mesmo depois de termos o contato mais íntimo que o ser humano pode ter. O sol fazia um calor insuportável, queria falar disso, mas ele era como um total estranho agora, e não se fala com estranhos por não haver intimidade, mas porra, nós fodemos ontem! Que mundo é esse que você transa com outro, mas desconsidera a existência desse “outro” como se você tivesse transado sozinho?
Desci do carro e falei que se ele não me acompanhasse até a praça de alimentação, eu mandaria pra sua família, fotos dele comigo no motel, expliquei a ele toda a situação. Ele começou a rir, ria largado; em tom glacial ele disse “que família? Você esta enganado, eu sou solteiro”. Então era tudo mentira, toda aquela conversa de ontem... não, ele estava blefando, com certeza. Eu falei que tinha pego números de seu celular, que enviaria as fotos para os números que pegara, mas ele não esboçou reação negativa, disse que não ligava, que eu fizesse o que quisesse. Enquanto eu estava perplexo, ele disse um “tchau” e vi seu carro indo, junto com a minha esperança de pagar o aluguel. Eu fiquei em pé por um bom tempo, vendo seu carro ir desaparecendo. 1X1.
Pensei seriamente em me jogar contra o primeiro carro que aparecesse, comecei a andar até o trânsito, mas quando estava na pista, uma mulher me puxou pra trás, aos gritos, desesperada, não sabia de quem sentir mais pena, se de mim ou dela. Começamos a chorar na calçada, abraçados em complacência com a dor um do outro. Ela me perguntava o que tinha acontecido e eu soluçava antes de formular uma frase. Eu sabia que por mais que ela quisesse, ela não me tiraria da lama, eu era muito pesado.
Em casa comecei a arrumar minhas roupas na mala, não tinha muita coisa, seria um trabalho fácil, se não houvesse a carga emocional de um fracasso. O moletom cinza fora canonizado diante das outras roupas, seu lugar na mala era privilégiado, não queria que ele se desgastasse, aos poucos fui vendo o quão ridículo isso era. Fui à cozinha, peguei uma garrafa de vodca e acabei com ela; vomitei toda a sala, fiquei no chão tendo delírios, com a cabeça explodindo de dor. Comecei a me repreender, eu iria acabar morrendo assim, eu ria, pensava se eu já não estava morto mesmo, se só o corpo resistira e se era uma questão tempo para que ele sucumbisse também. Meu olhar era pura melancolia, eu evitava encará-los no espelho, pois tinha medo do que eles poderiam me dizer.
Limpei a sala, tomei um banho, liguei o som, coloquei AC/DC; lembrei da sensação boa que senti com a cocaína, necessitava urgentemente de uma carreira, eu percebi que eu me viciaria em qualquer coisa que me trouxesse alívio, pois não dependia da química da droga, era a minha revolta com a vida que me faria dependente. Por essa razão, eu necessitava de uma droga que, apenas uma vez na vida tinha usado. Fiquei pensando em quando tinha uns cinco anos, quando eu soltava barcos de papel no rio, comia mangas embaixo da árvore do quintal e corria atrás das ovelhas que pastavam na frente de casa; peguei no sono com essas imagens.