"E eu tão acostumado a ter tudo na mão, tão acostumado a ter sempre razão, perdi a noção de tempo, espaço e direção..." (Acabou, Ricardo Chaves).
...
Senti um formigamento no rosto e ouvi uma voz que parecia me chamar de longe. Marcela batia seguidamente no meu rosto, tentando me acordar:
- Augusto! Augusto levanta!
Comecei a abrir os olhos, totalmente desnorteado.
- Mas que droga, velho! O que aconteceu?
Olhei lentamente para o lado, e aos poucos me dei conta de que estava sentado no hall, ao lado da porta do apartamento, apoiado em um vaso de planta que decorava o local. Apertei os olhos na esperança de enxerga-la melhor, mas tudo parecia rodar.
- Anda Augusto, vamos entrar! – ela parecia bastante irritada.
Fazia uma força descomunal para estender-lhe a mão, na esperança de que recebesse alguma ajuda para me reerguer. Marcela me puxava, mas as minhas pernas simplesmente não obedeciam. Tentei rastejar para dentro e, de uma forma totalmente desajeitada, alcancei o tapete da sala, a poucos centímetros da porta, onde me dei por vencido.
Sem saber ao certo quanto tempo depois, senti minha prima abrindo os meus olhos e acender uma pequena lanterna. Um clarão me invadiu, prejudicando ainda mais a pouca visão que me restava. Encostei a cabeça novamente no chão e percebi que ela se afastava.
...
Sentia tantas dores pelo corpo que não sabia exatamente como localiza-las. Abri os olhos outra vez e a tontura havia melhorado consideravelmente. Virei a cabeça para o outro lado e dei de cara com o pé do sofá. Ainda estava no meio da sala e fazia um calor fora do comum. Não fazia ideia de como tinha ido parar ali. Apoiei-me no chão para conseguir me sentar e fui atingido por uma nova onda de espasmos, fazendo-me gemer de agonia. Fiz uma rápida avaliação e identifiquei que ainda estava com o abadá do dia anterior, os pés imundos e um odor insuportável. Olhei para o travesseiro no chão e logo em seguida avistei um prato com um sanduíche (provavelmente já frio) em cima da mesa de centro. “Marcela...”, conclui.
Mais um impulso e consegui ficar em pé. Segui para a mesa e havia um recado ao lado do prato:
“Querida Bela Adormecida, saí para almoçar com uns amigos. Espero não te encontrar no mesmo lugar quando eu voltar”.
“Droga!”, sabia que precisava conversar com ela, provavelmente estava muito chateada. Tirei o tênis, caminhei até a área de serviço, joguei-os no tanque de lavar roupas e peguei uma toalha. Assim que entrei no banheiro, notei que meu estado era pior do que eu imaginava. Estava tão sujo que qualquer pessoa poderia ter me encontrado numa lata de lixo. Tirei a roupa, num misto de nojo e repulsa e me olhei no espelho. Não constatei nenhuma escoriação, o que já era uma grande satisfação. Vire-me de costas e, além de uma grande vermelhidão no meu bumbum, notava algumas áreas pegajosas na minha coxa.
Liguei o chuveiro e senti uma enorme sensação de alívio quando a água quente começou a percorrer o meu rosto. Procurava focar nos locais onde estava doendo, para então tentar relembrar o que tinha acontecido.
“Deita aí, vamos fazer uma brincadeira gostosa...”.
A frase de Alexandre ainda ecoava na minha cabeça, mas não sabia como a noite anterior tinha terminado. Apoiei a mão na parede e comecei a molhar o meu dorso. Quando a corrente atingiu minha bunda, senti um ardor tão forte que meus olhos lacrimejaram, fazendo-me fugir da água.
“Que porra é essa que tá acontecendo aqui?”, lembrei que em algum momento duas mãos seguravam os meus pulsos, e gelei. Desliguei o chuveiro rapidamente e saí do boxe. Virei de costas para o espelho mais uma vez e abri lentamente as nádegas. Uma dor latejante se manifestava ali, e não conseguia enxergar nada.
“Calma cara, a gente só quer fazer uma brincadeira com você...”.
Olhei ao redor atrás de uma solução, enquanto minha mente mergulhava no fundo da consciência em busca de respostas. No meio da busca desesperada encontrei um pequeno espelho, que minha prima usava para fazer as sobrancelhas e se maquiar.
Sem pensar duas vezes, sentei no chão gelado e abri as pernas o máximo que podia, apontando o objeto com um dos braços para a fonte do meu maior medo. Minhas coxas estavam doloridas, mas ainda conseguia alonga-las para melhorar a visão. Nervoso, constatei pelo reflexo que meu ânus estava bastante machucado, quase em carne viva. “Então quer dizer que você nunca deu o rabo? Bom, pra tudo tem uma primeira vez...”, prendi um grito de ódio, quase quebrando o espelho na palma da mão, de tanto que o apertava.
“Você vai ver o quanto é gostoso, ainda vai pedir mais...”.
Engatinhei e sentei no vaso sanitário, ensaiando uma lavagem com a ducha higiênica. A cada esguicho, travava os dentes evitando um gemido lancinante. Já não conseguia evitar as lágrimas escorrendo pela face. Depois de todo o processo, levantei e tirei a cueca de dentro da bermuda que estava usando. Havia pequenas manchas de sangue, mas felizmente não encontrava indícios de esperma.
“Olha o cuzinho apertadinho que esse cara tem. Vem ver gente...”.
“Quem vai dar umas palmadas para amaciar essa carne pra mim?...”.
“Opa, tapa na bunda é comigo mesmo...”.
Voltei ao boxe e girei a torneira. Debaixo da água quente, deixei a dor excruciante se revelar e me permiti chorar. Não conseguia acreditar no quão estúpido tinha sido.
“Relaxa, só vai doer um pouquinho...”.
Fiquei um bom tempo no banheiro. Quando já estava mais calmo e conseguindo respirar normalmente, voltei à área de serviço e joguei a roupa fora. Olhei para o tênis à espera de uma lavagem decente e, sem paciência, também o coloquei no cesto de lixo. Vesti uma bermuda folgada e fui escovar os dentes.
“Se você não calar a boca, ele vai enfiar o pau na sua boca...”.
“Tá louco? Ele vai morder minha pica...”.
“Bate com ela na cara dele então, pra ele parar de se debater...”.
As vozes ainda me assombravam como ecos na minha cabeça. Estava vivendo um pesadelo. Repeti a higiene bucal umas três vezes, na esperança de que algo de maior gravidade não tivesse acontecido. Peguei o celular no quarto e me dei conta de que já passavam de quatro da tarde. Liguei para Marcela, mas ela não atendeu. Resolvi mandar uma mensagem:
- “Sei que você tá puta comigo. Mas se possível, traz uma pomada para assaduras. Te pago quando você chegar”, foi a única solução que pensei, sem precisar entrar em maiores detalhes.
Passei um pano úmido na sala e no hall de entrada e comi o sanduíche que ela deixou. Olhei calmamente, averiguando se faltava algo a se fazer e me deitei na cama, sentindo uma breve sensação de relaxamento. Fechei os olhos, tentando me tranquilizar, e acabei cochilando sem perceber o tempo passar.
...
“Que bundinha deliciosa você tem. Tá gostoso, tá?”.
Tomei um susto ao sentir uma mão no meu ombro, me afastando rapidamente e quase caindo da cama.
- Toma... Sua pomada – Marcela me encarava com uma cara de poucos amigos, colocou a bisnaga no cômodo e começou a se retirar.
- Prima, espera! – me levantei rapidamente e senti novamente o ardor, me obrigando a diminuir o passo.
- O que foi?
- Me desculpe por ontem à noite. Eu preciso conversar com você...
- Se desculpar? Augusto, você tem noção do estado que te encontrei ontem?
- Onde você me achou? – arregalei os olhos.
- Na entrada do apartamento! Apagado, sujo, largado no chão...
Suspirei aliviado, imaginando que ela não sabia do meu paradeiro anterior:
- Eu sei, foi tudo um grande erro.
- Velho, se meu pai tivesse aqui, você levaria o sermão que nunca tomou na vida!
Mantive-me calado, enquanto ela prosseguia:
- Acho que você não tem ideia da sua situação. Suas pupilas ontem estavam muito contraídas, quase surtei com medo de não poder te ajudar! E se não tivesse jeito, como é que eu ia te levar para o hospital, já pensou nisso? Até o socorro chegar, você poderia ter um treco!
Marcela falava sem parar e eu continuava cabisbaixo, pensando no tamanho da minha irresponsabilidade, algo que nunca acontecera antes (o que me colocaria numa possível categoria de “pegador certinho”). Precisava abrir o jogo de alguma forma com ela, a única pessoa que eu poderia contar naquele momento, mas me vi em um terreno desconhecido da nossa intimidade.
...
Não dá para falar muito sobre os meus laços de família sem contar um pouco da minha história. Meus pais morreram quando ainda era uma criança, em um acidente de ônibus, enquanto viajavam para a fazenda da minha mãe. Foi um desastre que me tirou o chão e tornou muito complicado o meu processo de formação. Não pude vê-los uma última vez, mas lembro-me como hoje as vozes pacientes que pediam para eu me comportar, que logo eles voltavam. Tinha sete anos na época, e não sabia ao certo o que aconteceria dali em diante. Fui criado pelos meus tios Osvaldo e Rita – a irmã da minha mãe - que ainda cuidavam da filha única que acabara de completar o seu primeiro ano, e eram os únicos parentes que me restavam no mundo.
O trauma me levou para um estranho e obscuro caminho de isolamento de tudo e todos, e não tardou muito para que fosse o estranho da escola, sempre alvo de chacotas e brincadeiras impertinentes. Foi a educação dada pelos meus novos pais que me ensinou a jamais me deixar intimidar por algo. Meu tio Osvaldo não deixou a timidez ser uma parte gritante da minha personalidade, sempre procurando me mostrar que precisava estar pronto para a vida, seja qual fosse o rumo que ela tomasse. As aulas de judô frequentemente incentivadas por ele ampliaram a visão que eu tinha da minha própria capacidade e as posteriores aulas de natação, uma verdadeira paixão, ajudaram a desenvolver o meu corpo e moldar um porte mais atlético ao longo dos anos.
Sabia que aquele amor jamais substituiria a falta dos meus pais biológicos, mas eles sempre me trataram como um verdadeiro filho. Buscavam manter as mesmas tradições, me tiravam do mar de revistinhas em quadrinhos onde me refugiava quando batia uma carência (o que elevou bastante o potencial nerd no meu sangue), e me inscreviam em competições, clubes de matemática (a minha então matéria favorita) e até excursões de férias, no simples desejo que eu fizesse novas amizades. Tudo isso, é claro, foi muito positivo para mim e sou muito grato a eles.
A revelação da minha orientação sexual no fim da adolescência, quando ainda estava confuso quanto aos meus desejos, causara certa surpresa, mas eles nunca julgaram ou coibiram alguma atitude que viesse a expressar. A vida era minha, ponderara tia Rita na ocasião, e jamais teriam o direito de interferir nela. Ainda assim, eles nunca se sentiram à vontade para aprofundar o tema comigo, apesar de estarem abertos a qualquer dúvida que surgisse. Partiu deles, por exemplo, a solicitação para explicar a Marcela o porquê de nunca me ver com uma namorada, quando ela já estava com inúmeros pretendentes no colegial. O fiz com o maior prazer, falando com todas as palavras o que hoje não é um tabu para mim, procurando manter o clima de respeito mútuo naquela família.
O passo além veio quando atingi a maioridade. Um advogado reuniu todos e me explicou que Rita deveria ser a minha tutora e vigiar os bens e finanças dos meus progenitores até que eu completasse dezoito anos. Foi quando eu descobri que décadas de cuidados com a fazenda e o comércio de gado, além de produtos naturais, me rendera uma pequena fortuna. O negócio que meus pais cuidavam com tanto afinco foi continuado com muita cautela pelos meus tios, e agora estava sob a minha responsabilidade saber lidar com toda aquela situação, que nos sustentou durante anos. Meus tios aceitaram com tranquilidade e apreço a decisão que tomei em manter Osvaldo na gerência do empreendimento familiar e dividir com eles os lucros, antes também usados na minha educação. Foi a oportunidade de começar a construir planos para voar mais alto e manter firme o vínculo familiar. Todos saíram ganhando.
A chance de tomar as rédeas do meu próprio destino, pela primeira vez na vida, não me fez titubear em partir para São Paulo com o intuito de realizar um sonhado curso em Ciências da Computação. O fascínio pelo mundo da tecnologia e seus componentes me levou a arriscar e investir com sucesso na criação de uma empresa do ramo. Aprendi a morar e viver sozinho, errar e acertar, e crescer com o que sempre tivera vontade de fazer. Esse talvez tenha sido o meu maior feitoEu... Acho que fui dopado ontem. – interrompi a sua fala, respirando fundo.
Marcela ficou paralisada, com uma feição assustada:
- Como é que é?
- Creio que você errou de princesa no seu recado. Passei o dia tentando refazer todos os meus passos e só consigo imaginar que provavelmente fui vítima de um golpe, tipo “Boa Noite Cinderela”...
As palavras fugiam da sua boca, minha prima não sabia como reagir àquela notícia.
- Eu realmente não faço ideia de como vim parar na porta do apartamento, e de onde tirei forças para isso, porque eu não me lembro de nada.
Ela veio me abraçar, sentindo-se culpada pela bronca:
- Desculpa Guto, tô me sentindo uma idiota agora! Você tá bem? Fizeram alguma coisa com você?
- Eu tô ótimo, não fizeram nada. Meu rim ainda está aqui – tentei descontrair - Só levaram o dinheiro e a minha identidade – menti, sentando na cama, pensando em como explicaria tudo.
- Mas o que foi que aconteceu?
- Um cara no bloco. Estávamos conversando e não me dei conta quando ele trocou a lata de cerveja comigo, que devia estar batizada. Só percebi quando comecei a ficar muito tonto.
“É sua, trouxe pra você...”, me lembrei de César voltando sozinho.
- Caralho, a gente precisa avisar a polícia – Marcela me acordou do transe, preocupada.
- Não prima, eu mal lembro quem foi – me apressei em abortar a sua proposta - Não vai dar em nada. Foi só o susto mesmo.
- Que merda, velho – ela disse sentando-se ao meu lado, ainda chocada – Que bela maneira de começar o carnaval, hein?
- Pois é. Já tenho um sério candidato para desbancar aquele fiasco que foi a festa de– lamentei.
- Não fica assim! Você quer que eu te leve no hospital pra verificar se tá tudo bem?
- Relaxa, já passou.
- Então vou pegar o pedaço de torta que trouxe pra você. Ia esperar escutar um pedido de desculpas pra te entregar – riu.
- Tá vendo? É por isso que te amo – pisquei para ela.
Quando já estava quase alcançando o corredor após a sua saída, minha prima retornou com um semblante cheio de dúvidas:
- Mas vem cá... E pra que você quer essa pomada?
Fiquei paralisado, e precisava pensar o mais rápido possível:
- Minha coxa está cheia de assaduras. Inventei de estrear uma bermuda nova, com um tecido mais grosso e desde o início do percurso já estava sentindo arder.
- Quer que eu dê uma olhada?
Procurava não me incomodar com aquele excesso de zelo:
- Não precisa. Pode ficar despreocupada. Aliás... – alcancei a mochila, retirando um abadá e apontei em sua direção – Toma, chama alguma amiga pra sair com você hoje.
- Para com isso, Guto. Vou ficar com você aqui, te fazendo companhia.
- Ah não, tô falando sério. Não faça isso. Eu sei que você adora pintar o braço pra sair com a Timbalada. Foi um erro bobo meu, mereço todas as broncas. Só não vou sair porque essa assadura tá de matar. Vá curtir seu carnaval.
Marcela ficou pensativa:
- Tem certeza?
Fiz que sim com a cabeça.
- Eu só vou aceitar se você jurar que vai me ligar se estiver sentindo algo.
- Não que vá adiantar algo se eu telefonar – respondi rindo – Mas eu juro!
- Seu chato – ela veio me dar um beijo na bochecha, tirando o abadá da minha mão – Vou correr então para não perder o horário do bloco.
- Divirtam-se – disse já me dirigindo ao banheiro para passar a pomada, rezando a todos os santos para amenizar a dor.
...
O barulho dos trios elétricos vindo da rua estava ensurdecedor. Fechei as janelas e acionei o ar-condicionado, mas não adiantou. Fiz um pouco de pipoca, liguei a televisão e fiquei procurando algo interessante. Um canal de filmes me salvou do tédio, anunciando o início de um clássico: O Conde de Monte Cristo, a bíblia das histórias de vingança. Precisava de algo para prender a minha atenção e afastar as memórias que me perseguiam. Seria difícil, mas queria ao menos tentar. Tudo seguia bem, e estava conseguindo me distrair:
“Para todos os males, há dois remédios: o tempo e o silêncio”, dizia o abade ao futuro Conde.
- E Hipoglós na bunda também, meu amigo – respondi com a boca cheia para o vídeo, pensando alto.
Estava mais relaxado e começando a ficar sonolento quando, quase no ápice da película, uma fala me chamou atenção:
“Como eu escapei? Com dificuldade. Como preparei este momento? Com prazer...”.
O Conde olhava para a câmera, como se estivesse a me espreitar, apesar de se dirigir ao seu algoz. Alexandre Dumas era um mestre na escrita de frases de efeito e o enquadramento da cena me deu a clara sensação de que aquilo estava sendo dito para mim. Fiquei inquieto na cama, mergulhado em um turbilhão de pensamentos. Fui ao banheiro, joguei um pouco de água no rosto e aquela voz distante teimava em invadir a minha mente.
“Eu sei que você tava querendo, sente ele entrar todo. Caralho, que delícia...”.
Deixei o balde de pipoca na cozinha e segui para a sala, dando uma olhada no movimento. A rua estava lotada e a festa não teria hora para acabar. Lembrei-me de Adriano e toda a conversa que tivemos. “Será que ele estava preparando o terreno?”, olhava para o circuito, imaginando se ainda voltaria a encontra-lo no meio da folia, ainda que fosse bastante improvável. Fechei as cortinas e voltei ao quarto. Aumentei o volume da televisão e acabei adormecendo ao som da luta de espadas no auge do filmeComo é que é? Espera moço, só um instante – Marcela abafava o celular com a mão – Você não vai sair amanhã?
- Termina de fazer o pedido, eu tô com fome – sentei ao seu lado no sofá – Eles sempre demoram.
- Oi moço, desculpa – ela retomou a ligação – Sim, é nessa rua, traz troco pra cem. Se chegar antes de meia hora, tem uma pessoa aqui prometendo uma gorjeta legal pra vocês.
Sorri e logo depois ela desligou o telefone:
- Que história é essa, Guto?
- Sei lá, tô meio desanimado com o carnaval.
- Você tá falando sério? Vai jogar dinheiro fora? - e mais uma bronca era iniciada - Sabe quanto custa esse bloco?
- Prima, relaxa. Vende para alguma amiga sua, ou dá, sei lá. Fica de presente. Prometo que vou me animar mais para os outros dias.
- Eu não tô te reconhecendo... – ela me olhou de um jeito inquisidor – Aconteceu alguma coisa que eu não sei?
- Não – respondi incisivo.
- Vai sair com alguém?
- Não.
- Ficou apaixonado?
- Não.
- Para de responder “não” toda hora!
- Mas é você que está imaginando o que não existe! – ri, tentando fugir do assunto.
- Olha... Se for por causa de algum paquera seu, eu vou ficar decepcionada. Você sempre diz que amor de carnaval não vinga. Pega, mas não se apega!
- Você acha mesmo que eu teria capacidade de ficar com alguém anteontem? Passei metade do percurso todo assado, mal conseguindo caminhar, e a outra metade grogue, quase desmaiado – menti mais uma vez, e a minha consciência parecia me repreender com um olhar de decepção.
- Não brinca com essas coisas, Guto – ela ficou mais séria – Olha, se você estiver com medo, eu estarei do seu lado. Mas se você realmente não quiser ir, eu vou entender.
- Não tô com medo de nada – e realmente não estava – Só estou um pouco indisposto esses dias, prefiro ficar aqui relaxando.
- Ó, eu vou acreditar em você, tá? – apontou o dedo para mim.
Agradeci com o olhar e minha prima se desfez da feição sisuda e desconfiada, levantando-se para colocar a mesa.
...
No fim das contas, a indisposição do domingo se estendeu até segunda, e as amigas de Marcela pareciam vibrar a cada abadá que surgia. O ardor diminuiu espantosamente e já não sentia o incômodo de antes. A pomada fizera efeito e procurava desanuviar a mente assistindo filmes ou pesquisando novos aplicativos no celular, um dos meus passatempos favoritos depois das HQ’s.
Na terça-feira, dei o braço a torcer e acompanhei minha prima em um dos camarotes do circuito. Tentava ao máximo parecer animado, para não desaponta-la. Assim que nos acercamos, fomos conhecer o espaço e já me dirigia ao bar para nos abastecer (praticamente todos os camarotes do carnaval de Salvador funcionam em esquema “open bar”), até ter o copo retirado da mão:
- Na-na-não... Deixa a cerveja comigo e bebe uma água. Não me faça te dar outro sermão.
“Era o que me faltava, ser comandado por uma pirralha...”, revirei os olhos e pedi um refrigerante. Chegamos cedo e nos acomodamos na frente da varanda, uma área bastante concorrida de onde era possível ver a passagem de todos os trios. Aos poucos, muitas pessoas começaram a se aproximar, fazendo Marcela perder o interesse em ver o espetáculo, e querer procurar outro tipo de entretenimento dentro do recinto. Não faltavam homens bonitos ali, mas preferi ficar só assistindo os desfiles, liberando-a para a sua caça.
Quando o cortejo começou a passar, a sacada já estava toda ocupada. De repente, me vi sozinho com um copo de refresco na mão, assistindo a festa acontecer sem ao menos poder participar. Não da forma que sempre planejei. Concluí que teria sido melhor ter ficado em casa. Já tinha sido abandonado em definitivo pela minha companhia e estava decidido a não demorar muito ali, pressentindo a possibilidade de morrer de tédio. Vez ou outra ela passava para dar um “oi”, averiguando se eu estava bem, mas logo sumia novamente. Não poderia culpa-la.
Ver aquele aglomerado ambulante extravasando na rua começou a me fazer mal. O desânimo tomou conta do meu corpo e logo parecia cansado por estar em pé durante tanto tempo. O trio da banda Cheiro de Amor começou a se aproximar e determinei que assim que ele passasse iria me despedir de Marcela, voltando para o aconchego da minha cama posteriormente. É um grande sacrifício tentar atravessar uma agremiação inteira, e preferia aproveitar o espaço vago entre elas. Era o que eu faria.
O bloco estava bastante animado e os foliões pulavam sem parar. Fiquei olhando a sua trajetória, já bastante incomodado, quando uma cena me surpreendeu, deixando-me de olhos arregalados. Alexandre conversava animadamente com um desconhecido (pelo menos não o tinha visto na fatídica quinta-feira), abraçando-o e dizendo coisas ao seu ouvido. O impossível estava acontecendo, e no meio de milhares de pessoas, o reencontrei. Minha primeira reação foi dar um passo para trás, no simples intuito de não ser avistado, mas logo depois retornei. Permaneci quieto avaliando aquela situação que se desenrolava logo abaixo de mim. Meus olhos percorriam rapidamente à procura dos seus amigos, numa angústia similar a tentar encontrar Wally em um ambiente onde todos estão com a mesma roupa. Não demorou muito e vislumbrei Adriano que, apesar de próximo, parecia alheio ao clima de paquera do amigo.
Alexandre sorria, às vezes gargalhava, e o seu alvo parecia estar caindo perfeitamente na sua lábia. Queria saber aonde aquilo iria parar. Poderia ser outro amigo, ou uma conversa banal, mas algo em mim repetia que era algo muito além disso, sem saber justificar o porque da impressão. Poucos minutos depois, uma nova dupla conhecida se acercou aos dois: Cláudio e César, que coincidentemente portava uma lata na mão e entregou para a pessoa.
“É sua, trouxe pra você...”, tinha a clara sensação de ter lido a mesma frase saindo dos seus lábios.
Permaneci estático. O cara estava em perigo, eu sabia que estava. Dois goles depois, sob o olhar atento do trio que o envolvia, todos continuaram a caminhar. Estudei o cenário rapidamente, numa busca nervosa, e Adriano mantinha-se quieto no mesmo lugar. Não identifiquei o rosto de Júlio nas imediações, mas certamente deveria estar no meio daquela multidão.
“Vamos lá no apartamento, é aqui perto...”.
Olhei para os lados, e todos seguiam curtindo o desfile, sem notar a minha crescente inquietação. Comecei a criar as piores hipóteses: uma gangue do mal que toca o terror, explorando sexualmente pessoas desavisadas. “Tão jovens, e tão perigosos...”, pensei totalmente aéreo. Afastei-me da sacada e comecei a procurar pela minha parceira de farra. Eu precisava fazer alguma coisa, mas não compreendia ao certo o que. Não teria capacidade de enfrentar cinco homens reunidos, mas poderia ao menos alertar a vítima. Era o mínimo que cabia a mim. Saí apressado me desviando daquela imensidão de gente, e não conseguia encontrar a minha prima. Já estava cogitando sair sem avisa-la, quando avistei o seu rosto próximo ao bar, enquanto conversava com um cara que aparentava ser mais velho que ela, provavelmente uma das pessoas mais bonitas dali.
- Marcela!
- Oi Guto! Tá dando um giro?
- Não, tava te procurando. Encontrei um amigo meu de infância na rua. Vou lá embaixo falar com ele, certo? – inventei uma história qualquer.
- Claro, vai lá! Eu tô por aqui...
- Beleza! – respondi já me distanciando, sem dar muita trela ao seu acompanhante.
Andava a passos largos, ofegante. Não dava para acompanhar o ritmo do bloco, que percorria lentamente o seu trajeto. Subi uma rua transversal para pegar um atalho. Lembrava que eles estavam instalados próximos à minha casa, e a intenção era pega-los de surpresa, já não pensava mais nas consequências. “No pior dos cenários, eu corro e chamo a polícia...”. Estava suando, sem conseguir evitar um nervosismo aparente.
Alguns minutos depois, alcancei a portaria do prédio:
- Oi, boa noite, o Alexandre está?
- Alexandre? – o funcionário me olhou como se não conhecesse ninguém com esse nome.
- Isso. Ele está com um grupo de amigos de São Paulo, todos hospedados aqui.
- Ah sim, o turista! – exclamou rapidamente – Chegou agorinha, quer que eu interfone?
“Merda!”, lamentei calado por ter chegado tarde demais. Não ia anunciar a minha vinda, estava fora de cogitação. Agradeci e declinei, informando que não era necessário. O porteiro me fitava, analisando a feição perturbada que demonstrava e tentando buscar alguma lógica na minha presença ali. Já me afastando, escutei-o me chamar:
- Ei, espera!
Olhei para trás, ainda acompanhando a sua voz:
- Você não estava aqui na semana passada?
Vacilei momentaneamente, mas prossegui:
- Estava sim, por quê? – falei com sinceridade.
- Rapaz, você saiu tão azucrinado daqui que esqueceu sua identidade! – ele riu.
“Vamos fazer o seguinte: eu deixo a minha identidade aqui e logo desço para pegar, certo?”, lembrei-me de como driblei a norma do condomínio.
- Nossa, é verdade, me desculpe pelo descuido... – estava envergonhado, pressupondo o meu possível estado naquela noite.
- Imaginei que você tinha bebido demais, mas sabia que uma hora ia voltar para buscar. Tava aqui, bem guardada – se pendurou na janela da guarita para me entregar.
- Obrigado!
Pensei em dar um novo rumo à conversa com ele em busca de mais informações sobre o quinteto maquiavélico, quando percebi um vulto se aproximando no térreo. Abortei a ideia e despedi-me rapidamente, avisando que voltava outra hora, sem esperar resposta. Atravessei a rua e um pouco mais à frente, fiquei atrás de uma árvore, espionando. Logo em seguida, um homem saiu do prédio. Era a suposta vítima, e estava sozinha. Olhei para cima, averiguando se alguém observava aquela cena, e saí destemido do meu esconderijo para alcança-lo:
- Ei, você tá bem, cara?
- Me deixa em paz, porra! Não toca em mim! – disse me empurrando.
Levantei os braços e me afastei, sem querer chamar atenção. O rapaz parecia ter a mesma faixa etária dos seus opressores e estava claramente confuso, cambaleando em alguns passos. Olhei ele se afastar e decidi voltar para o meu posto de espera, antes que fosse surpreendido por mais alguém. Quase dez minutos depois, o portão se abriu outra vez, ecoando um barulho de metal rangendo, e um grupo de jovens surgiu entre risadas altas e movimentos incompreensíveis com as mãos, como se a avaliar uma brincadeira bem-sucedida, ou a celebrar mais um feito de carnaval.
“Filhos da puta”, balbuciei com os dentes cerrados, enquanto uma ira crescia dentro de mim.
(continua)
...
Oi pessoal! Feliz pra caramba por estar de volta! Drica Telles (VCMEDS), obrigado pela lembrança! O ruivo vai muito bem, ;)! Ale.blm, fico feliz que tenha curtido. Me esforçarei ao máximo para ele ter uma periodicidade fixa aqui. Mad Max (sou fã do filme), obrigado pelo elogio. Irish (minha leitora fiel!!), confesso que essa história é um pouquinho mais pesada, mas me alegra muito saber que gostou. Trager, prepare-se para fortes emoções, rs. @Kaahh_sz e Jeff08, obrigado pelo elogio! Docinho, também já estava com saudades dos seus comentários!
Como disse, estou planejando ter uma periodicidade fixa de publicações (sempre aos domingos e às quartas), assim consigo desenvolver melhor o resto da história, sem deixar nenhuma ponta solta. Mais uma vez, agradeço todos os comentários, votos e leituras. Abração!