O tempo passava depressa em meio à vida corrida, ao trabalho intenso e à vigilancia com a saude do Marquinhos. Quando nos demos conta, o ano de 1994 jà tinha passado.
O ano seguinte começou com um problema que serviu de alerta para Marquinhos. Queixando-se de "ardido" na mucosa da bochecha, ele me pediu para olhar o que era, temeroso do tal Sarcoma de Kaposi, que sempre foi seu maior medo desde que adoecera. Usando uma lanterninha de bolso, vi uma inflamaçao avermelhada com pontinhos brancos, semelhantes à nata de leite; tomavam parte da bochecha dele e já estavam passando para o lado da lingua, alem de exalar um odor desagradável.
- Acho que e' sapinho, amor _ falei, para seu total espanto.
De fato era a candidiase oral, o popular sapinho. Como pegou no começo da infecçao, ele pode curar apenas com o bochecho de um medicamento anti-fungico, quatro vezes ao dia. Parecia algo simples, porem aquilo revelava que seu sistema imunologico estava um pouco mais enfraquecido, um risco para o aparecimento de outra doença grave. Da ultima vez, com uma baixa repentina das celulas CD4, a pneumonia fungica quase o matara; agora, o medico nao pensou duas vezes e aumentou a dose do remedio dele, alem de medicá-lo por um mes com Bactrim, um poderoso antibiotico de uso global e no caso dele, preventivo. Foi uma epoca de preocupaçao e cuidado, de extrema vigilancia. O "sapinho" tinha dado aquele alerta, e nos munimos de nossas armas para evitar algo pior; felizmente, logo as celulas CD4 atingiram o nivel ideal e razoavel de antes, o doutor suspendeu o Bactrim, mas continuou com a dosagem extra do AZT. Isso nao aborreceu tanto o meu anjo, o que o irritou mesmo foi a proibiçao de doces (principalmente chocolates) e beijos por uma semana, enquanto tratava o sapinho. Senti muita falta dos beijos dele nesse periodo, porem logo ele ficou bom, com a boca saudàvel, e para comemorar e agrada-lo, comprei um bolo prestigio numa padaria da rua onde moravamos. Mais tarde, foi dificil convence-lo a nao substituir o jantar por bolo, porem com jeito e paciencia eu consegui.
Minha mae nao quis mesmo falar comigo sem que eu tivesse "mudado de vida". Ao contrario da mae de Marcos que pouco a pouco reconquistava o respeito e o afeto do filho, tentando entende-lo e aceità-lo como era, com a minha o dialogo parecia algo inatingivel. Lamentei aquele jeito torto dela de encarar as coisas, mas eu nada poderia fazer. Agora eles estavam sozinhos no apartamento imenso, sem os dois filhos, pois Clarice tinha saido de casa para morar com Alan. Ele tocava baixo numa banda que se apresentava num barzinho da Augusta, a Banda Eureca, misturando rock new wave e o grunge, ainda na moda. Viviam entre brigas, reconciliaçoes, porem nao se largavam; agora Clarice trabalhava num atelie de roupas exclusivas, explorando seu imenso talento e criatividade. Ganhava bem, e como estava grávida, precisava mesmo de uma boa renda.
- Quero muito que meu filho se pareça com voce _ disse ela a Marquinhos, quando nos deu aquela noticia; agarrou-o toda louca de alegria _ Quero que tenha seus olhos, que seja lindo assim feito voce.
- Sua maluca! E por acaso esse filho e' meu para se parecer comigo?_ exclamou ele, entre perplexo e divertido.
- Nao, mas bem que poderia ser... _ ela fez uma cara de tristeza fingida.
- Està sendo ridicula, Clarice _ falei, sem esconder a irritaçao _ Tem hora que suas brincadeiras passam dos limites, poxa.
- Ah, livreiro, nao estraga meu barato, vai! Me deixe sonhar _ ela sorriu, alisando a barriga _ Estou feliz demais. O Alan ficou chocado quando soube, mas agora esta mais conformado. Quer que seja um garoto e que se chame Kurt, por causa do Kurt Cobain.
Marquinhos deu risada.
- Voces sao dois loucos, isso sim _ disse ele _ Tenho pena dessa criança.
- Nao, meu amor. Pensei ate num enxovalzinho estilo grunge para ele _ continuou Clarice, eletrica de entusiasmo _ Já pensou? Macacaozinho xadrez, camisetinha do Ramones... Vai ficar lindo!
Quando ela se foi, ainda atarantada demais pela novidade, acabou esquecendo o sueter verde fluor, que trazia preso á cintura. Guardei para ela no nosso armàrio, enquanto Marquinhos pegou uma Fanta geladinha, copos e um pacotinho de biscoitos de leite. Ligou a TV, o futebol ia começar, e gostavamos muito.
- Nao digo que a Clarice tem uma certa quedinha por voce? _ falei, pegando um copo com refrigerante e bebendo _ Olha as coisas que ela fala...
- Que horror, Alex _ ele riu, me oferecendo os biscoitos _ Deixe essa tonta. Quando o bebe nascer, ela nao vai pensar em outra coisa. A vida dela vai mudar totalmente.
- Com certeza _ olhei no relogio de pulso e bati de leve com a ponta do dedo no vidro, mostrando a Marquinhos; ele suspirou e foi buscar o frasco do AZT; agora era assim, sempre que podia bebia o remedio na minha frente, me mostrando as capsulas e engolindo; tomou com refrigerante e voltou para o sofá, encostando-se a mim e comendo os biscoitos, à espera do jogo. Eramos corintianos, sofredores.
Em abril ele completou vinte e nove anos. Nao aparentava ter mais de vinte, ainda com aquele jeitinho de moleque anjelical que me encantou de primeira. Vivia com o virus há quase sete anos, o mesmo tempo em que estavamos juntos. Sete longos anos em que a felicidade se mesclou à preocupaçao, à tristeza, à coragem e à sede de vencer, de superar. A cada aniversàrio de namoro eu o presenteava com alguma coisa, por mais apertado que estivesse nosso orçamento; nunca me esqueceria daquela data, em que o pedi em namoro num dia dificil para ele, quando Tony o flagrou com Bruno e o espancou, trincando seu braço. Foi no mesmo dia em que ele se declarou apaixonado por mim, me fazendo feliz como nunca antes ninguem tinha feito.
Querendo presenteà-lo com algo diferente dos CD's, tenis e livros das outras vezes, planejei desde o começo de 1995 ir juntando uma graninha para, em dezembro, poder viajar com ele. Durante minha infancia e adolescencia inteira viajei com meus pais, passando ferias nos quatro cantos do mundo, portanto havia muita coisa que eu conhecia; mas a familia do Marcos nao era tao rica, ele nao viajou muito. Planejei, portanto, convidá-lo a visitar Montevideu, no Uruguai. Achei que ele ia gostar, o lugar era bàrbaro, e nao ficaria tao caro assim a passagem e a estadia. Na hora certa eu daria aquela noticia a ele.
Durou apenas um ano o amor-perfeito que dei a Marquinhos, e embora ele soubesse que a vida daquela planta era mesmo curta, ficou um pouco triste com aquilo. Nao comentei nada, mas vendo-o assim cabisbaixo, comprei no dia seguinte uma planta nova para ele, dessa vez com flores de cor amarela, raiadas de roxo; ele ficou muito feliz, tanto como quando ganhava chocolates. Foi uma especie de terapia ocupacional para ele cuidar de plantas, ate porque depois dessa vieram outras que ele mesmo comprava ou eu quem dava: vasos de crisantemos, violetas, samambaias, e tambem tudo que a mae dele pode arranjar com as amigas dela, desde mudas de roseira à orquideas. Nossa sacada, pequena, ficou abarrotada, era um mini jardim que entretia meu anjo. Ele tinha mao boa para plantar, como todo taurino, e praticamente tudo vicejava nas latas e vasos; ao menos ocupava-se com algo melhor do que a TV, e evitava ficar pensando besteira.
Eu tinha ouvido o novo sucesso do Marillion no ràdio do carro. A musica se chamava "Beautifull"; comprei o CD, "Afraid of Sunlight", e mostrei a Marquinhos que torceu o nariz.
- Sabia que voce iria gostar dessa musica _ disse e sorriu _ E' melosa como voce gosta, gatinho.
Pedi para que ele a dançasse comigo, de rostinho colado, e ele aceitou, rindo baixinho meio arrepiado enquanto eu sussurrava palavras de amor ao ouvido dele, embalado pela musica. Quantas vezes ele nao me chamou de chato, de grudento? Agora gostava, caçoava mas gostava pois eu via que ele fechava os olhinhos e sorria consigo quando eu repetia que estava cada vez mais apaixonado, que ele era o amor da minha vida. Dessa vez, seria sexo do meu jeito, lento, romantico, sensual, um verdadeiro ritual de amor e adoraçao ao meu anjo.
Em setembro, o medico dele veio com uma grande noticia: a terapia antirretroviral ganharia mais remedios complementares, mais eficazes do que o AZT, que sozinho era razoavelmente eficiente. Fazendo uma analogia, seria como limpar uma casa: o AZT era apenas a agua, nao removia toda a sujeira, embora tambem fosse importante; os outros dois medicamentos seriam como o sabao, e juntos com o AZT promoveriam uma limpeza geral, mais profunda. Nao era a cura, claro, porem foi um belo gol contra o virus, e o melhor: tudo gratuito.
No primeiro dia do novo tratamento, Marquinhos ficou horrorizado com a quantidade de comprimidos: davam juntos para encher um pires. Prometiam menos efeitos colaterais, mas ainda assim eles viriam. A probabilidade era de uma reduçao de mais de 90% da carga viral no sangue, algo fabuloso e impensavel anos atras; e a expectativa de vida do usuario do coquetel tambem aumentou significativamente.
Ficamos ainda mais esperançosos dessa vez, parecia que tudo estava se encaixando, que agora nao havia mais receio, nem o minimo. Meu anjinho nao sofreu tanto assim com essa nova terapia, foi quase como antes; logo no primeiro mes tivemos um feliz resultado: a carga viral do sangue do Marquinhos estava praticamente indetectável. Fiquei tao feliz, e ele sem acreditar, sorrindo meio bobo _ era quase que um sangue limpo novamente, como antes da doença. Uma vitoria praticamente completa. Nesse dia fiz questao de levá-lo para jantar fora, para comemorar, num restaurante italiano. Ele já nao enjoava tanto, tinha as vezes uma tonteira, uma dor de cabeça, mas nao passava mal como antes. Era inacreditàvel que ele estivesse quase que inteiramente saudável outra vez... Que orgulho senti dele nesse dia! Ninguem tiraria o meu sorriso de felicidade.
O pequeno Kurt nasceu num feriado, ao meio-dia, pesando quase quatro quilos. Queriamos ter ido ao hospital ver Clarice e o bebe, porem meus pais estavam com ela, decerto, e achei melhor nao encontra-los. Esperei que ela fosse para casa para ver meu sobrinho, e Marquinhos estava super ansioso. Chegamos trazendo um presente, uma manta de croche verde, que a mae do Marquinhos estivera fazendo havia meses, a pedido dele.
Alan nos recebeu com certa simpatia exagerada. Ele nao era exatamente preconceituoso, mas exibia uma vergonha tao grande perto de nos que era como se estivesse nu na nossa frente; eu achava aquilo muito estranho. Em todo caso, que Clarice explicasse a ele que nada havia a se constranger sobre a gente.
Aquela maluca cumpriu o prometido, e encontramos o pequeno Kurt vestido numa mini camiseta dos Ramones, feita por ela. O bebe era lindo, gordo, rosado, com a cabeleira loura do pai. Obviamente que nao se parecia com Marquinhos, como ela esperava e sonhava. Como Clarice nos designara padrinhos do moleque, meses antes, quis tirar uma foto com Marcos segurando o Kurt, depois eu, e em seguida nos dois juntos. Quando meu anjo se posicionou para ser fotografado com o bebe, Clarice os observou e sorriu, muito comovida.
- Meu Deus... Que cena linda! Do jeitinho que eu sonhei _ disse, batendo a foto; achei estranho aquele comentario, mas era melhor nao pensar nas maluquices e devaneios da cabeça dela.
Como se aproximava a epoca de nossas ferias de final de ano, resolvi falar a Marquinhos sobre minha intençao de viajarmos à Montevideu. Contei a ele numa noite quente, tinhamos acabado de fazer amor e, na penumbra, deitado sobre as costas dele, ainda retomando o folego, entrelacei nossos dedos. Podia ve-lo sorrir levemente, de olhos fechados, a testa brilhosa de suor onde as pontas molhadas dos cabelos grudavam. Sete anos juntos. Na alegria, na tristeza, na saude e na doença. Mas a morte nao iria nos separar tao cedo, disso eu tinha certeza.
- Como assim Montevideu, amor? _ disse ele, se virando e me olhando com curiosidade _ Isso vai ficar caro pra caramba.
- Sou prevenido e responsavel, voce sabe. Juntei dinheiro o ano todo, meu anjo _ falei acariciando-o no rosto com o polegar _ Falta comprar as passagens e reservar o hotel... E entao? Quer ir?
- Evidente que sim! _ ele sorriu, largamente _ Nunca viajamos juntos, a gente so' vive para trabalho e mais nada... Vai ser da hora, Alex!
- Tenho certeza que sim _ beijei de leve sua boca, seu rosto, sua pele levemente salgada da transpiraçao _ Faz algum tempo, prometi a voce levá-lo um dia á Manhattan, lembra? Entao, ainda nao tenho condiçoes para cumprir essa promessa, mas nao me esqueci dela. Como agora voce esta bem melhor, com um prognostico otimo, e nao gastamos mais com remedios, vamos juntando um dinheiro e quem sabe, em um ano ou dois, possamos realizar esse sonho... Se prometi, vou cumprir.
- Sei que vai _ sussurrou ele, sorrindo, me beijando por longo tempo e em seguida ficando abraçado comigo em silencio, ate dizer bem baixinho _ Te amo demais... Mesmo que nao demonstre, que pareça ser orgulhoso, que brigue muitas vezes com voce, que queira ter razao sempre... eu sei que nao seria nada e que provavelmente nem estaria aqui se nao fosse por voce... Meu CDF mais lindo... heroi da minha vida...
Senti um no' na garganta, tentando esconder dele que fiquei emocionado, mas ele era esperto, percebia sempre e ria de mim, me apertando mais nos braços, beijando meu pescoço. Mais tarde, depois de termos nos banhado e voltado para cama, enquanto observava meu anjo dormindo, pensava que ele poderia me dizer aquelas coisas bonitas mais vezes, pois eu gostava de ouvir e ele sabia disso. Tanto tempo havia passado, e poderia passar muito mais, nada mudava meu ultra-romantismo, meu amor imenso por aquele rapaz que dormia tranquilamente ao meu lado. O mais belo dos vencedores, o meu anjo.
Bem, com certeza eu seria aquele CDF meio bobo e apaixonado ate o fim. Mas isso nao era assim tao ruim, certo?
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"Mensagem recebida
Alto e claro" (Unloveable, THE SMITHS)
Enfim, terminamos!! :) Espero que tenham curtido, pois eu curti escrever. Esses dois sao meus personagens preferidos, ate hoje tento entender porque. Mas sao.
Com a chegada do coquetel anti HIV, em 95, o soropositivo pode enfim levar uma vida ñormal, e sua expectativa de vida, eh atualmente, praticamente a mesma das pessoas saudaveis. Hoje, o coquetel tornou-se um medicamento 3 em 1, ou seja, todos aqueles comprimidos foram incorporados à uma unica capsula, que se toma a noite. Mas o efeito eh igual ao de 20 anos atras, quando o coquetel apareceu. Com tratamento regular, a carga viral no sangue pode chegar a zero. Ainda nao eh cura. Mas um dia ela aparece, tenho certeza.
Um beijo grande, galerinha!